quarta-feira, 15 de junho de 2011

Estado e capital contra os povos da Amazônia


Israel Souza

A votação do “Novo Código Florestal” foi o primeiro grande teste político do Governo Dilma. Muitos foram os que atentaram para o fato, bem como para o embaraço que ele, agora ao lado da queda de Palocci, representou para a sucessora de Lula. Tanto quanto os limites de influência do Planalto sobre o Congresso, a referida votação mostrou também uma polarização. Duas figuras reuniram em torno de si as atenções e os debates: Aldo Rebelo (PC do B - SP), relator do projeto, e Marina Silva.
Tributário de certo produtivismo - que alguns pretendem socialista -, Rebelo defende que a proposição do Código é necessária para garantir o desenvolvimento do país e afirmar a soberania nacional. Os senhores do agronegócio e os ruralistas exultaram com o projeto. Afinal, ele traz a real possibilidade de anistia das multas, a desobrigação de replantar áreas desmatadas e, de quebra, permite até ampliar a área de desmatamento. Com um comunista assim, mui amigo, quem precisaria de capitalistas?         
À frente dos ambientalistas, Marina argumenta que, como votado na Câmara dos deputados, o projeto representa um “retrocesso” no que tange à legislação ambiental. Por isso, através do Comitê Brasil em Defesa das Florestas e do Desenvolvimento Sustentável, ela e consortes resolveram tomar parte na campanha que pretende coletar 1 milhão de assinaturas no intuito de se contrapor ao Novo Código.
E assim, o debate se viu refém de algumas polarizações: Marina X Rebelo, Ambientalistas X Ruralistas e outras congêneres. Infelizmente, a superficialidade com que o tema é assim abordado encobre o fato de essas “antinomias” serem falsas e coloca na sombra o que realmente importa.
Rebelo está certo ao denunciar os vínculos de Marina com certas ONGs estrangeiras e a atuação neocolonialista destas no país e, de modo mais destacado, na Amazônia. O deputado ignora (ou oculta?), porém, que também ferem de morte a soberania nacional o pagamento das dívidas interna e externa e a política de juros altos do Banco Central. Pesa no mesmo sentido o fato de o “agronegócio nacional” ser significativamente composto por capital estrangeiro.
Em verdade, o agronegócio pode até ajudar nos saldos positivos da balança comercial, mas concentra renda e terra, esteriliza os solos, envenena as águas, destrói as florestas, semeia a morte. Quanto a este ponto último, não foi casual que deputados da bancada ruralista vaiaram o anúncio da morte de lideranças da luta pela terra. E hoje os assassinatos e as ameaças de morte campeiam na Amazônia.
Mais ocupado em manter as aparências e livrar-se da culpa, o governo federal prefere ver apenas uma coincidência entre a discussão do Código e as mortes. Todavia, vale dizer do que realmente se trata: são os beneficiados com o projeto procurando aplacar as resistências.          
De seu lado, Marina tem razão ao postular a defesa do meio ambiente. Mas sua postura é demasiado ambígua, para dizer o mínimo. Critica duramente o Novo Código, sem nada ter dito da aprovação da Lei de Florestas Públicas (11.284/2006). Esta lei foi aprovada quando ela era ministra do meio ambiente, e colocou milhões de hectares de florestas à disposição das grandes madeireiras. Alguns chegam a falar de algo em torno de 50 milhões de hectares. Desse modo, a experiência de mercadificação-privatização das florestas que o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) havia posto em marcha no Acre desde 2001 foi ampliada para toda Amazônia, apesar dos malefícios de tal política já serem patentes em terras acreanas.
O silêncio da ex-ministra sobre reforma agrária, hidrelétricas, hidrovias, mineração, demarcação e homologação de terras indígenas e quilombolas, é outra coisa comprometedora. Como é amplamente sabido, esses são temas cujas implicações sociais e ambientais são tão inegáveis quanto as do Novo Código Florestal.  
Em face disso, é lícito afirmar que as posturas de Rebelo e Marina são igualmente parciais, amigas do capital e inimigas das populações locais da Amazônia. O fato de chamarem tanta atenção no debate que hoje toma conta do Brasil é sinal da mediocridade dos termos com que o problema vem sendo tratado. E isso não faz outra coisa a não ser encobrir o mortífero avanço do capital em curso na região amazônica.
Com efeito, os problemas que hoje ameaçam a região e seus habitantes devem ser analisados em suas interconexões e dentro do “neodesenvolvimentismo” atualmente em voga. Por esse prisma, veremos que o processo que se desenrola sob nossos olhos é marcado pela presença de capitais diferentes (monocultores, mineradores, madeireiros, empreiteiros, financeiros/banqueiros etc.) e de suas respectivas “personificações” (aqueles que expressam e defendem seus interesses) lutando por mais espaço dentro de um projeto pró-capital sustentado jurídica, política e economicamente pelo Estado.
O Estado é, portanto, o grande desencadeador da onda de violência que campeia na região. Impotente ou hipócrita, a tentativa de conter a violência suscitada através de ações paliativas apenas o confirma.
Ao fixarmos nossa atenção apenas nas figuras, supostamente portadoras das únicas vias possíveis, fechamos os olhos para o que realmente ocorre: a guerra do Estado e do capital contra os povos da Amazônia. Nessa guerra, a pilhagem é o fim e o estabelecimento de um “estado de exceção permanente”, o meio. O que se pretende com isso é “limpar o terreno”, deixá-lo livre daqueles que representam “obstáculo ao desenvolvimento”.
Por isso, alguns são expulsos de seus territórios, caso dos atingidos pelas obras das hidrelétricas; outros, ainda que permaneçam em seus territórios, têm seus direitos drasticamente feridos, não podendo usá-los segundo seu ancestral modo de vida. Sobre este ponto, lembremos das condicionantes da decisão judicial sobre a Raposa Serra do Sol e daqueles que são constrangidos por certos aspectos da legislação ambiental; outros, cuja luta atemoriza “os de cima” e inspira “os de baixo”, têm que ser silenciados.
Nesse contexto, parece que o “pecado nativo é simplesmente estar vivo, é querer respirar” (trecho de Meu cordial brasileiro, música de Belchior, grande compositor brasileiro). Conquanto importante, o Novo Código Florestal é apenas um passo na acelerada marcha do capital sobre a região; apenas mais uma peça nesta complexa engrenagem e Rebelo e Marina, não mais que isso.


Israel é professor e um dos mais influentes pnsadores sobre a realidade amazônica;

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