sábado, 22 de dezembro de 2012

''Belo Monte é de todo inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser''. Entrevista especial com Dom Erwin Kräutler

“Evangelizar implica primeiro no testemunho de uma fé arraigada na Palavra de Deus e na convicção de que esse mesmo Deus é um Deus que anda conosco pelas estradas e rios de nossa vida”, diz bispo do Xingu.

Confira a entrevista.

“A alegria de ser chamado a servir a Deus, levando o seu amor às pessoas e a todos os povos (cf. AG 10), ninguém pode arrancar do coração de quem exerce uma missão que tem sua base e motivação no Evangelho”. É com esta declaração que Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, resume sua atuação no Brasil há mais de 40 anos, evangelizando sua comunidade. Nesta caminhada, ele esteve engajado em diversas causas, entre elas, a mais recente, em oposição à construção da hidrelétrica de Belo Monte. “Como bispo tenho que conviver com diversos pontos de vista e tolerar, às vezes mesmo a contragosto, posições opostas à minha. Em momento algum isso significa abrir mão do credo que professo e da posição contra Belo Monte que sempre assumi e continuo sustentando, considerando-o uma insanidade. Infelizmente não existe meio termo. Belo Monte é de todo inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser”, disse o bispo à IHU On-Line.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Dom Erwin comenta a atual situação de Altamira desde a construção da hidrelétrica de Belo Monte e acentua o comportamento dos povos indígenas que vivem próximos ao canteiro de obras. “Aí se percebe nitidamente que a Norte Energia usa de todos os meios para calar os indígenas e impedir que se manifestem. Recebem cestas básicas, voadeiras, combustível, benefícios que nunca imaginaram. Como explicar-lhes que esses presentes são um cavalo de Troia e aceitá-los significa dar um tiro no próprio pé?”, questiona. 

Ele conta que após a eleição de Dilma tentou agendar uma reunião com a presidente, mas ao ouvir o discurso de Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, a favor de Belo Monte, desmarcou o encontro. “O que ainda iria fazer no gabinete do ministro? Trocar amenidades e posar para fotos? Já que a declaração do ministro revelou toda a intransigência do governo, eu mesmo cancelei a audiência”, lamenta. 

Há dois anos de tornar-se bispo emérito, Dom Erwin diz que isso “não significa ‘entregar os pontos’. Meu empenho em favor da dignidade e dos direitos dos povos indígenas, dos ribeirinhos, das mulheres, das crianças, dos jovens, dos expulsos de casa e terra, dos agredidos e machucados, enfim, de todos os ‘excluídos do banquete da vida’ e minha defesa do meio ambiente, o ‘lar’ que Deus criou para todos nós, vão continuar enquanto Deus me der o fôlego”.

Dom Erwin Kräutler
 (foto abaixo) é bispo de Altamira, no Pará, e presidente do Conselho Indigenista Missioneiro – CIMI.

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Que avaliação faz da caminhada de luta em oposição a Belo Monte e aos projetos de infraestrutura na Amazônia durante os últimos anos?

Dom Erwin Kräutler
  – Por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, Rio+20, o movimento Xingu Vivo para Sempre convocou indígenas, pescadores, ribeirinhos, movimentos sociais, estudantes e acadêmicos, ativistas e defensores do Xingu para comemorar os 23 anos que se passaram desde o Primeiro Encontro dos Povos Indígenas do Xingu (20 a 25 de fevereiro de 1989) em Altamira. O evento foi chamado de “Xingu+23“ em analogia ao “Rio+20“ e quis lembrar a primeira grande vitória contra o projeto de barramento do rio Xingu que naquele tempo levou o nome de Kararaô, um grito de guerra do povo Kayapó, o povo indígena mais numeroso do Xingu. Na realidade, a luta contra o projeto é bem mais antiga e começou já nos anos 1970 quando os militares cogitaram a construção de seis grandes usinas ao longo do rio Xingu: Jarina, Kokraimoro, Ipixuna, Babaquara, Kararaô e Iriri. O Encontro dos Povos Indígenas em 1989 tornou a rejeição do projeto da parte dos indígenas apenas mais visível e chamou a atenção do Brasil e da comunidade internacional para o planejado golpe no coração da Amazônia. 

Ironia da história

Ironia da história: Lula, que elegemos porque acreditávamos que outro Brasil fosse possível, pouco depois de tomar posse tirou o projeto das gavetas, desconsiderando o que durante a campanha eleitoral havia falado nos palanques sobre a Amazônia. Passou a defender o que antes severamente criticou e a considerar o projeto hidrelétrico no Xingu essencial para o progresso, vaticinando o colapso total da economia do país caso não seja concretizado. Substituiu-se apenas o nome de Kararaô por Belo Monte para ninguém mais lembrar o facão da Tuíra e os índios de 1989 pintados de urucum e jenipapo. 

Não acredito que haja no Brasil outro movimento de luta em defesa do meio ambiente contra um megaprojeto governamental com uma história tão longa. Alguém talvez venha retrucar: “Mas, infelizmente, lutaram em vão, já que o projeto está sendo executado a pleno vapor e, depois de já ter gasto bilhões de reais, dificilmente o governo vai recuar!“ De fato, a cada dia que passa mais explosões ensurdecedoras atormentam a população no entorno do canteiro de obras. A cada dia que passa mais destruição se alastra pela região. A ensecadeira se estende rio adentro e o desmatamento avança nas ilhas e na terra firme da Volta Grande do Xingu. Mas, mesmo assim, nada de enrolar a bandeira! Sabemos que Belo Monte não é a única barragem planejada no Xingu. Nossa luta tem também por objetivo evitar que o antigo projeto dos militares seja desenterrado na sua totalidade. 

Quantos cientistas e especialistas não alertaram o governo que o Xingu durante três ou quatro meses no ano não terá o volume d’água suficiente para rodar uma única turbina sequer? Muitos! E todo mundo sabe que é economicamente absurdo deixar sem funcionar as turbinas que são a parte mais cara de todo o empreendimento. A solução reside em mais barramentos rio acima como já foi previsto no projeto dos militares, com impactos mais desastrosos ainda que a própriaUsina Hidrelétrica de Belo Monte. Esse projeto de mais barragens é tratado como segredo de estado. Habilmente se evita toda a discussão em torno deste espectro que então sacrificará todo o rio Xingu com consequências não só para Altamira mas também para todas as vilas ribeirinhas e áreas indígenas nas margens do rio, chegando a atingir até a cidade de São Félix do Xingu.

Cruzar os braços

Outro motivo de não cruzarmos os braços são os mais de cinquenta (50!) processos que correm na Justiça brasileira e internacional denunciando violações da Constituição Federal e de tratados internacionais de que o Brasil é signatário. São ações movidas pelo Ministério Público Federal, pela Defensoria Pública Estadual do Pará como por entidades da sociedade civil, entre estas o Conselho Indigenista Missionário – CIMI, organismo vinculado à CNBB. Estes processos estão, em parte há anos, sem a Justiça tomar nenhuma providência. Quais são os reais motivos desta morosidade? Omissão ou negligência são inaceitáveis num Estado que se diz democrático e de Direito.

Finalmente, enquanto não forem cumpridas todas – todas mesmo! – condicionantes exigidas pelo Ibama e pela Funai como requisitos para dar início à construção deBelo Monte, não deixaremos de denunciar a ilegalidade da obra.

IHU On-Line – Quais as principais alegrias e desafios de ser um líder religioso em uma região como a do Xingu, onde a comunidade e a Igreja estão divididas por causa de Belo Monte?

Dom Erwin Kräutler 
– A alegria de ser chamado a servir a Deus, levando o seu amor às pessoas e a todos os povos (cf. Ad Gentes 10), ninguém pode arrancar do coração de quem exerce uma missão que tem sua base e motivação no Evangelho. Esta missão não se restringe a um mero anúncio de verdades. Evangelizar implica primeiramente no testemunho de uma fé arraigada na Palavra de Deus e na convicção de que esse mesmo Deus é um Deus que anda conosco pelas estradas e rios de nossa vida. Evangelizar é estar continuamente a serviço deste Deus, consagrando a vida a Ele e a seu Povo, e isso sem medir esforços e alegar cansaço. “Amou-os até o fim” lemos no Evangelho de São João para introduzir o episódio do lava-pés (Jo 13,1). Evangelizar não exclui o diálogo aberto, franco, respeitoso. Um monólogo autoritário é antievangélico quando tenta arrasar com quem tem outra visão do mundo e condenar ao inferno a quem não reza pela nossa cartilha. Como bispo tenho que conviver com diversos pontos de vista e tolerar, às vezes mesmo a contragosto, posições opostas à minha. Em momento algum isso significa abrir mão do credo que professo e da posição contra Belo Monte que sempre assumi e continuo sustentando, considerando-o uma insanidade. Infelizmente não existe meio termo. Belo Monte é de todo inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser. A decisão tomada pelos governos Lula e Dilma de construir Belo Monte é imperdoável porque nunca haverá uma chance mínima de reparar os erros monstruosos cometidos. Ao inaugurar Belo Monte teremos alcançado um ponto sem retorno. Em outras palavras: não adiantará mais chorar o leite derramado.

O cenário mudou

A Igreja, como o povo do Xingu em geral, está dividida na avaliação de Belo Monte. No entanto, os que defendem o projeto já não estão mais tão eufóricos como anos atrás quando colaram adesivos “Queremos Belo Monte” em seus carros. Os adesivos desapareceram. Os que aprovam o projeto, o fazem hoje com reservas e muitas exigências. Os políticos há tempo desceram de seus palanques porque esgotaram os argumentos bombásticos em favor do “progresso” que só Belo Monte seria capaz de trazer para a região. Ensacaram a viola. Aliás Belo Monte nem sequer foi tema nos comícios da última campanha eleitoral. Os candidatos bem sabiam por que evitaram falar em Belo Monte. Iriam levar estrondosas vaias. Incrível com que rapidez o cenário mudou. A tendência é que, na medida em que a obra avança, o povo está se dando conta de que, até agora, nada ou muito pouco do que foi prometido está sendo cumprido. Altamira, uma cidade de mais de 120 mil habitantes, está mergulhado num tremendo caos. Os operários contratados pela empresa CCBM logicamente apreciam ter encontrado emprego, se bem que seja temporário. Mesmo assim há frequentes manifestações de insatisfação. Há até operário preso. Com toda razão exigem melhores condições de trabalho e salários que permitam enfrentar a inadmissível carestia que impera em Altamira. 

As feições do povo que frequenta as Igrejas em Altamira mudaram. Entre as (os) fiéis tradicionais aparecem muitos rostos novos. São homens e mulheres, casais e famílias, que vieram de outros estados e trabalham nas empresas ligadas à construção de Belo Monte. Querem participar das celebrações e iniciativas de sua Igreja e tem todo o direito de fazê-lo, mas é óbvio que não se manifestam contra Belo Monte ou criticam o projeto, pois provavelmente correriam o risco de perder o emprego.

Inalterado, também dentro da Igreja, ficou o grupo que categoricamente rejeita Belo Monte. Embora sejam poucas pessoas em relação à grande massa que é indecisa e opta por uma posição de aguardar “para ver como é que fica“, essa parcela do Povo de Deus mais ativa e combatente não se deixa intimidar nem por ameaças, nem por calúnias, difamações e outros tipos de perseguição.

IHU On-Line – Irmã Ignez Wenzel comentou sobre a desarticulação entre as comunidades indígenas por conta das obras. Quais são as razões desse comportamento? Pesquisadores, antropólogos e religiosos estão mais preocupados com a questão indígena do que os próprios índios?

Dom Erwin Kräutler
 – A questão é complexa. É perigoso generalizar, afirmando que os indígenas estão menos preocupados. Do mesmo jeito como em toda a sociedade do Xingu (do Brasil e do mundo), há também entre os indígenas diferentes posições em relação a Belo Monte. Religiosos, antropólogos, professores e outros profissionais conhecem talvez melhor os meandros e as propostas insidiosas do sistema neoliberal que está na base do “desenvolvimentismo” que confunde desenvolvimento com crescimento meramente econômico, multiplicação de riqueza material, incremento do PIB, expansão do agronegócio, aumento de produção de biocombustíveis. Os indicadores sociais são colocados em um plano inferior. A defesa do meio ambiente não passa de recheio nos discursos da presidente em Brasília para impressionar quando fala na ONU e em outras oportunidades no exterior como há poucos dias em Paris.

Essa realidade os indígenas, pelo menos os velhos caciques, certamente nunca estudaram e por isso não se dão conta do perigo que correm. No sistema vigente, o que importa é produzir, lucrar, tirar vantagem, consumir. O “ter“ triunfa sobre o “ser“. Esse sistema é cruel e diametralmente oposto ao que os indígenas andinos chamam de Sumak Kawsay (ou “Bem Viver“). É um câncer que dissemina metástases em todo o tecido social. E é uma ilusão pensar que os povos indígenas sejam imunes contra este câncer. Todo o nosso empenho e acompanhamento visam ajudá-los a evitar a contaminação.

Posições 

Os Kayapó do Alto Xingu, sob a liderança do cacique-patriarca Raoni Metuktire, rejeitam qualquer barragem do rio. É para eles uma questão fechada. Só que Belo Monte é geograficamente muito distante de suas aldeias e essas, na primeira fase da construção do complexo hidrelétrico do Xingu, não serão impactadas diretamente. Por isso os Kayapó do Alto Xingu não mais se manifestaram de modo tão contundente como antes o fizeram quando Raoni mesmo veio a Altamira para prestigiar eventos contra Belo Monte.

Outra é a situação dos povos que vivem mais próximos ao canteiro de obras. Aí se percebe nitidamente que a Norte Energia usa de todos os meios para calar os indígenas e impedir que se manifestem. Recebem cestas básicas, voadeiras, combustível, benefícios que nunca imaginaram. Como explicar-lhes que esses presentes são um cavalo de Troia e aceitá-los significa dar um um tiro no próprio pé? Quem antes foi tratado como pária e de repente avança para padrões de príncipe, dificilmente entende uma advertência de que essas regalias são prejudiciais a ele e a seu povo. Na realidade, o dinheiro fácil corrói a sociedade indígena, corrompe lideranças, destrói a organização interna de um povo, faz os índios perder a sua identidade. Tem sistema atrás disso. Quando os indígenas “deixam de ser indígenas“ perdem também suas terras ancestrais, cobiçadas desde sempre pelas mineradoras, pelos madeireiros e latifundiários. Chamo essa investida contra os índios de “auricídio“ (do latim aurum: ouro). Matam-se os indígenas com dinheiro, entopem-se-lhes as gargantas com dinheiro a ponto de não mais poderem gritar, implanta-se um consumismo desenfreado no seio das comunidades e exterminam-se deliberadamente os valores e a sabedoria milenar de um povo. E o pior é que se afirma em alto e bom som que tudo é feito “em favor dos índios para tirá-los finalmente da era da pedra lascada“. Através do dinheiro se tenta ressuscitar os parâmetros das antigas constituições brasileiras que defendiam “a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional“, programa etnocida que achávamos definitivamente superado com a Constituição de 1988. 

IHU On-Line – O senhor voltou a dialogar com o governo na tentativa de paralisar Belo Monte? Como vê, nesse sentido, a atuação do Ministério Público Federal, que por vezes determina a paralisação da obra?

Dom Erwin Kräutler 
– Já em outubro 2009 percebi que o presidente Lula, embora tenha insistido em continuar o que chamou de diálogo, na realidade não estava nada interessado em discutir Belo Monte. Aliás o “diálogo“ de que ele falou não passou de encenação. Tentei ainda um encontro com a Dilma. Fui informado queGilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, estaria disposto a receber-me em audiência. Mas poucos dias antes da data marcada para a audiência ele discursou num encontro das pastorais sociais da CNBB e declarou que Belo Monte era irreversível e irrevogável. O que ainda iria fazer no gabinete do ministro? Trocar amenidades e posar para fotos? Já que a declaração do ministro revelou toda a intransigência do governo, eu mesmo cancelei a audiência.

E o papel do Ministério Público Federal? Das 15 ações judiciais contra ilegalidades no licenciamento da construção de Belo Monte, encaminhadas pelo Ministério Público Federal, apenas uma transitou em julgado. Este balanço revela a “importância“ que é dada hoje a este órgão de defesa dos direitos constitucionais do cidadão. Às vezes me dá até dó ver o esforço de nossos Procuradores da República. Será que não se sentem supérfluos e inúteis dentro do poder Judiciário, que não aprecia o seu empenho, engavetando sistematicamente as ações elaboradas com esmero e competência?

IHU On-Line – Como o senhor vê a discussão acerca da mineração no Norte e Nordeste? É possível dizer que Belo Monte servirá para facilitar a mineração? 

Dom Erwin Kräutler
 – Respondo com a pesquisadora Telma Monteiro, que colabora com o Xingu Vivo para Sempre e quem estimo muito. Num artigo publicado no Correio da Cidadania (11-09-2012) ela adverte que “a implantação do projeto da hidrelétrica Belo Monte é a forma de viabilizar definitivamente a mineração em terras indígenas e em áreas que as circundam, em particular na Volta Grande, trecho de mais de 100 quilômetros que vai praticamente secar com o desvio das águas do Xingu. E é justamente nas proximidades do barramento principal, no sítio Pimental, que está sendo montado o maior projeto de exploração de ouro do Brasil, que vai aproveitar o fato de que a Volta Grande ficará seca por meses a fio com o desvio das águas do rio Xingu“. Critica ainda: “Incrível como, além das hidrelétricas, os projetos de mineração, na visão do governo federal e do governo do Pará, também se tornaram a panaceia para solucionar todos os problemas não resolvidos de desenvolvimento social. Papel que seria obrigação do Estado, com o dinheiro dos impostos pago pelos cidadãos de bem“. Sempre o mesmo lero-lero que já estamos cansados de ouvir: os problemas sociais da Amazônia só poderão ser solucionados se, de mão beijada, a lotearmos e entregarmos lote por lote a empresas estrangeiras. Desta vez a felizarda é a Belo Sun Mining Corporation com sede em Toronto, Canadá, que em breve auferirá lucros astronômicos rindo da cara dos brasileiros. E ainda há quem brada que a “Amazônia é nossa“ e repete o discurso de Lula em 2007: “Precisamos dizer que somos os donos da Amazônia e que sabemos cuidar das nossas florestas, da nossa água, não precisa ninguém dar palpite”. Quem são realmente os donos? Sabemos realmente cuidar das nossas florestas, da nossa água? Não seria mais correto chorar desde já a mãe Amazônia pois ela foi vendida ao grande capital para ser violentada sem escrúpulos até morrer de inanição! 

IHU On-Line – Daqui dois anos o senhor enviará ao Papa o pedido de renúncia, conforme denomina o Direito Canônico. O senhor já faz planos para os próximos anos? Pretende continuar na região do Xingu?

Dom Erwin Kräutler
 – O Cânone 401 § 1 do Direito Canônico reza que o bispo “que tiver completado setenta e cinco anos de idade, é solicitado a apresentar a renúncia do ofício ao Sumo Pontífice, que, ponderando todas as circunstâncias, tomará providências“. Em outra palavras: é o Papa que decide se aceita logo a renúncia ou se pede ao bispo continuar por mais algum tempo. Não fiz nenhum plano para “o dia seguinte“, mas tornar-se bispo “emérito“, logicamente não significa “entregar os pontos“. Meu empenho em favor da dignidade e dos direitos dos povos indígenas, dos ribeirinhos, das mulheres, das crianças, dos jovens, dos expulsos de casa e terra, dos agredidos e machucados, enfim, de todos os “excluídos do banquete da vida“ e minha defesa do meio ambiente, o “lar“ que Deus criou para todos nós, vão continuar enquanto Deus me der o fôlego.

IHU On-Line – Como é para o senhor viver no Brasil, especialmente num estado em que há milhares de problemas sociais, ambientais, numa conjuntura completamente diferente da sua origem?

Dom Erwin Kräutler
 – Cheguei a Altamira em dezembro de 1965, ainda jovem. A decisão pelo Xingu foi uma decisão pessoal. Os superiores religiosos apenas concordaram e me deram luz verde. Jamais me arrependi de ter feito esta opção. O Xingu tornou-se minha terra, o chão em que vivo a minha vida. Não nego as minhas raízes e não deixei de amar o país da minha família e de meus antepassados, mas nunca cultivei saudosismos para com a terra onde nasci, avaliando o que naÁustria estaria melhor ou analisando a conjuntura de lá, comparando-a com os problemas que aqui enfrentamos. 

Tempos atrás redigi uma mensagem que muitas vezes já foi usada em celebrações de envio de missionárias e missionários. Esse texto traduz o que ser missionário sempre significou para mim:

“Vai meu irmão, minha irmã! Lá, em tua nova missão, em tua nova terra, em tua nova pátria, anunciarás Jesus Cristo e o seu Evangelho. Servirás aos pobres, aos excluídos do banquete da vida, lavando-lhes os pés. Falarás com quem nunca andou ou não anda mais conosco. 

Aproximar-te-ás com muito carinho a um povo com cultura e tradições diferentes. Chegando lá, estranharás, sem dúvida, os costumes e usos locais. Mas, não imporás as tuas ideias! Não apresentarás o país que te viu nascer como paraíso! Não dirás nunca que no lugar onde te criaste, as coisas estão bem melhores! 

Não darás nunca a impressão de que vieste para ensinar, para civilizar, para instruir, para colonizar! Jamais violentarás a alma do povo que, doravante, será o teu povo!

Oferecerás simplesmente o testemunho de tua fé, de tua esperança e de teu amor, e darás a tua vida até o fim, até as últimas consequências! Assim, tu terás o privilégio e a felicidade de viver a graça de todas as graças: encontrarás o Senhor que disse: 'Depois que eu ressuscitar, irei à vossa frente para a Galileia' (Mc 14,28). Missão é sempre ir à Galileia, às Galileias de todos os continentes!“

IHU On-Line – Depois de todos esses anos na região, qual foi a luta mais difícil na sua trajetória?

Dom Erwin Kräutler 
– Sempre lembro com carinho nosso empenho em 1987-1988 durante a Assembleia Nacional Constituinte para que os direitos indígenas fossem inscritos na Constituição da República. Foi uma luta sem tréguas, mas os povos indígenas e nós, os seus aliados, saímos vitoriosos. Para quem quiser conferir, há um capítulo específico na Carta Magna do País que fala “Dos Índios“ (Art. 231 e 232). Essa luta, porém não terminou. Trata-se de concretizar o que está escrito aí.

A luta mais desgastante, no entanto, é sem dúvida a que travamos contra a hidrelétrica Belo Monte, que já dura tantos anos. 

IHU On-Line – Estamos na época do Advento. O que esta época de natividade, como nascimento de Jesus, pode trazer de reflexão para os dias de hoje, para os governantes, especialmente em relação a Belo Monte?

Dom Erwin Kräutler 
– Eu não sei se o sentido profundo do Advento e Natal mexe com o coração de nossos governantes, ministros e outros membros do governo. Talvez nem falem mais em Natal. Preferem substituir a lembrança do Nascimento de Jesus com um termo mais secularizado: “Festas de Fim de Ano“. E muito menos sei se esta gente, ouvindo eventualmente o “Noite Feliz“, se lembra das famílias expulsas de suas terras por causa de Belo Monte. Essas famílias não experimentam nada de noite feliz, enquanto os responsáveis pela sua desgraça se banqueteiam em confraternizações com as mais finas iguarias, regadas a bebidas seletas. 

IHU On-Line – O que a experiência de Jesus Libertador pode ensinar e inspirar a prática cristã de hoje?

Dom Erwin Kräutler 
– Responder a essa pergunta equivaleria a uma dissertação sobre os fundamentos e toda a história da Teologia da Libertação e sua contribuição valiosa para a Igreja na Amazônia, especialmente para as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, que continuam sendo o chão concreto em que esta forma de reflexão teológica até hoje está dando seus frutos e que gerou seus mártires. Precisaria também desmontar todos os mal-entendidos a respeito desta teologia, disseminados pelo Brasil e mundo afora, especialmente em ambientes em que se fecham os olhos e se tapam os ouvidos diante das injustiças de um sistema desumano, excludente, opressor e de violências estruturais que causam a morte de tantos homens, mulheres e crianças e do meio ambiente em que vivem.  

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Dom Erwin Kräutler 
– Sim, votos de um abençoado Advento e Santo Natal do Senhor. Que Deus nos conceda sua graça e paz, neste Natal, durante o Ano Novo e sempre.

Reproduzida a partir da página do Cimi.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Especialista em Mercados analisa capitalismo e sustentabilidade

Especialista em sustentabilidade e mercado financeiro, a professora de engenharia financeira, Amyra El Khalili fala sobre Meio Ambiente, Economia Justa e Amazônia.

Entrevista por Tiziane Virgílio
Revista PIM

AMYRA EL KHALILI
Foto: Clarinha Glok (IPS)

            Brasileira filha de pai palestino, formou-se em economia na Faculdade de Economia, Finanças e Administração de São Paulo (FEFASP). Atuou por 30 anos no mercado de futuros e de capitais e foi uma das primeiras mulheres a operar no pregão da Bolsa de Mercadorias e de Futuros (BM&F). Ocupou cargos relevantes em instituições financeiras,  foi consultora da BM&F implantando mercados de commodities agropecuárias e instrumentos derivativos, é professora de engenharia financeira e estratégias de operações no mercados de riscos.

            Entre os anos 1996 a 2003, coordenou o projeto de educação financeira nos mercados futuros e de capitais para o Sindicato dos Economistas no Estado de São Paulo, idealizou e fundou a Ong RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras (antiga Ong CTA - Consultants, Traders and Advisors - Geradores de Negócios Socioambientais nos Mercados de Commodities) , o Projeto BECE (sigla em inglês)  Bolsa Brasileira de Commodities Ambientais, o Movimento Mulheres pela PAZ!. Suas atividades principais são ligadas à RECOs ao qual se dedica integralmente e que tem como  princípio alcançar o desenvolvimento social, econômico e ambiental, valorizando a dignidade da pessoa humana e o meio ambiente, garantindo o direito de uso dos bens ambientais conforme a Constituição Federal.

            Os projetos de pesquisa da coordenadora da RECOs estudam os temas economia de mercado, meio ambiente e finanças sustentáveis, redes solidárias e suas estratégias, mudanças climáticas e mercados emergentes, financiamentos de projetos e negócios socioambientais, conflitos sociopolíticos, espiritualidade e esperança, guerra e paz.

            Amyra El Khalili foi indicada em 2004 para o “Prêmio 1.000 Mulheres para o Nobel da Paz”, e em 2005 e 2007 recebeu indicação para o “Prêmio Bertha Lutz”, que homenageia brasileiras que desenvolvedoras de atividades em defesa dos direitos das mulheres e questões de gênero no País.

            Em 2009, a professora de engenharia financeira lançou o e-book  “Commodities ambientais em missão de paz – novo modelo econômico para a América Latina e o Caribe”, que propõe uma alternativa de mercado onde sugere a criação de condições para uma economia justa.

            A seguir o posicionamento da professora Amyra El Khalili sobre temas de sua especialidade em trechos da entrevista à REVISTA PIM:


MERCADO AMBIENTAL X CAPITALISMO

            Ainda não conhecemos a real dimensão deste mercado, onde começa o ativismo e onde termina o interesse financeiro. Existem iniciativas, projetos socioambientais e empresas que estão se adequando a uma nova forma de produzir ambientalmente sustentável, porém há aqueles que fazem marketing ambiental para melhorar sua imagem greenwashing, mas não modificam a forma de produzir, comercializar, nem as relações com consumidores e com as comunidades onde estão sediadas.

            O capitalismo está em crise, enfrentando sérios problemas de credibilidade por fraudes e corrupções denunciadas desde 2008 com o escândalo do subprime1, operações pirâmides e agora, mais recentemente, com a demissão de executivos de bancos por manipularem os cálculos da Taxa Libor2.

            A Cúpula dos Povos, movimento paralelo à RIO+20, não está se posicionando contra esse modelo neoliberal exclusivamente por questões ideológicas, sobretudo por fatos comprovados à exaustão e suas consequências trágicas contra populações tradicionais, caiçaras, índios, quilombolas, campesinos, os pobres e minorias e, principalmente, contra a degradação e a devastação ambiental. Se foi esse modelo neoliberal enraizado no capitalismo selvagem que desencadeou todas esses danos ambientais e exclusão social, como pode esse mesmo modelo ser a solução do problema?

            Essa é a questão. Existem novos modelos de produção, de consumo e financeiros propostos por centenas de comunidades e grupos socioambientais como alternativa ao neoliberalismo esverdeado contrapondo-se à economia verde. E é aqui que reside a importância de nosso trabalho na Aliança RECOs (Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras): ouvir e registrar o que as comunidades consideram suas prioridades e soluções para seus problemas. Se são eles os impactados, eles devem ser “ouvidos”, consultados e considerados. Nos propomos, com o nosso conhecimento técnico-científico, a orientá-los. Ao contrário do que muitos governos estão fazendo com aval de algumas Ongs, impondo leis e regras goela abaixo sem consulta pública e ainda tentando se legitimar com um número muito restrito de participações para “inglês ver”! Eles (governos) seguem assinando acordos com empresas estrangeiras, mais preocupados com eleições do que com os riscos e resultados desastrosos destes acordos. E assim vão produzindo uma espécie de “subprime ambiental”: empacotando as dívidas, os créditos bons com os ruins, transformando passivos (poluição, lixo químico, tóxicos, entre outros) em ativos ambientais e empurrando a conta dos “recebíveis” para as futuras gerações pagarem.

SISTEMA FINANCEIRO

            Acreditamos que o sistema financeiro pode ser reprogramado, pois é feito por seres humanos que sentem e vibram. Seres humanos que sofrem e se alegram, ganham ou perdem. O sistema financeiro é mecânico, se alimenta na emocionalidade, já que o mercado de capitais é irracional. Também acreditamos que o conhecimento sobre o sistema financeiro não deveria ser privilégio de meia dúzia de bancos e de especialistas, muito menos se prestar a atender exclusivamente às corporações que são praticamente estados.
            Esse sistema financeiro deve servir à humanidade e ao meio ambiente, e não o contrário, como temos experimentado com o neoliberalismo idólatra do “deus mercado”. A RIO+20 provocou uma discussão na qual tenho dedicado minha vida: a de analisar e questionar profundamente a função do sistema financeiro, os mercados de capitais e suas consequências, como ocorreu no encontro paralelo Cúpula dos Povos.
            É possível inverter a pirâmide onde no topo está hoje o mercado financeiro, colocando no seu devido lugar o excluído.  Se o povo compreender que esse mesmo povo vilipendiado3, explorado e humilhado por esse modelo econômico tem o poder de transformá-lo, é evidente que o Brasil a partir da RIO+20 terá provocado um movimento histórico para promover essa transformação.

PROJETO BECE

            Em 1996, fundei o Projeto CTA (Consultants, Traders and Advisors), que tem como princípio norteador desenvolver outras variáveis não consideradas na economia ortodoxa, como valor social, ambiental, cultural, paisagístico, histórico e tradicional e incorporá-los nos mercados acionários, moedas e taxas, agropecuários, ambiental e espacial (bens intangíveis), com a formação de um profissional multidisciplinar para o olhar regional sobre a economia, sociologia e ecologia.     Com a minha experiência de três décadas nos mercados de capitais, avançamos enquanto organização não governamental na formação deste profissional e na implantação dos mercados de commodities ambientais e espaciais.

            O antigo Projeto CTA, de minha autoria, foi objeto de disputa judicial entre o Sindicato dos Economistas no Estado de São Paulo e a ong CTA (hoje ong RECOs). Se não fosse bom e de altíssimo interesse econômico, o Sindicato dos Economistas de São Paulo (Sindecon SP) não gastaria tempo e advogados tentando se apropriar dos direitos autorais. Perderam em 1ª e 2ª instâncias e, em novembro de 2011, o processo foi encerrado.

            Deste projeto originou-se o Projeto BECE (sigla em inglês de Bolsa Brasileira de Commodities Ambientais). BECE é codinome com “B” de Banco, “E” de economia, “C” de Central e “E” de Ecologia e é o espelho como contraponto das Bolsas de Valores, Commodities e Derivativos. Não existia uma força contrária para questionar técnico-científico e estrategicamente o que estava sendo decidido em nome da sociedade e do meio ambiente no mercado de capitais deste continente considerando o potencial econômico do Brasil como corredor financeiro da América Latina e o Caribe. O BECE faz esse papel. Entendemos que será possível reestruturar o sistema financeiro quando as pessoas compreenderem como isso funciona e o que está em jogo. Estamos falando de educação financeira a partir do “ecodesenvolvimento”, como propôs Ignacy Sachs na origem do conceito “Desenvolvimento Sustentável” na Conferência de Estocolmo (1972).

            Portanto, cabe à sociedade cobrar desse sistema a sua responsabilidade socioambiental. Mas para isso é necessário que as pessoas leigas tenham também interesse em aprender como funciona esse sistema (financeiro) para que possam questionar, corrigir as distorções ou até mesmo interditar contratos mal desenhados e impedir lacunas e falhas que viabilizem fraudes e corrupções, além das artimanhas, como alteração de legislações e/ou legislarem para beneficiar o sistema financeiro em detrimento do interesse público.

O MERCADO DE CARBONO E O AMAZONAS

            O mercado de carbono se sofisticou de tal forma que inspirou a reboque, nos mesmos moldes, a formação de outros mercados, como de compensações, de reserva legal, de créditos recebíveis de passivos transformados em ativos entre outras impressionantes criatividades. Coisa complicada até para quem conhece profundamente o mercado de commodities e derivativos. Parece algo muito inteligente, mas não vamos nos iludir, trata-se de um “tapa buracos” do prejuízo amargado em outros mercados internacionais que buscam novas formas de captação de recursos para tentar conter a bolha financeira que desencadeou as operações de subprime e derivados, como disse anteriormente.

            Há uma série de empresas vendendo créditos de carbono e de compensações de áreas do Brasil e de toda América Latino-caribenha no exterior. Estamos investigando possíveis fraudes em anúncios de vendas destes créditos.
            Os projetos oficiais são os que estão aprovados pelo Comitê Executivo do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) no âmbito do Protocolo de Quioto. Há, porém, um mercado voluntário operando na informalidade com créditos de carbono, de compensação e outros créditos há 15 anos desde que foi instituído o MDL, em 1997.  Claro que o bioma Amazônico em toda sua extensão é o mais cobiçado pela atração e fascínio que exerce na mente dos povos estrangeiros e de potenciais investidores de terras por suas riquezas florestais, biodiversidade, minérios, águas doces e subterrâneas.

            Suspeitamos, pelos inúmeros hectares de terras ofertadas no exterior, que alguns estados já foram vendidos, sem exagero, bastando apenas contabilizar e entregar. Este tipo de negócio chama-se “venda à descoberto” (short sale), quando vendem no mercado de commodities e derivativos sem ter o ativo para entrega futura. Depois saem correndo comprando no mercado spot (à vista) para honrar as operações. Quando ocorre, esse movimento é chamado corner (encurralar, colocar num canto). O vendedor (short) é obrigado a comprar pagando o preço que estiver ofertado no mercado e, mesmo assim, não consegue encontrar liquidez para comprar aquilo que vendeu sem ter para entregar. Por esse motivo, preferimos aprofundar as investigações, apurar denúncias e seguir cobrando rigorosamente do poder público e dos órgãos fiscalizadores.

CONSCIÊNCIA: INFORMAÇÃO, COMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO

            O projeto BECE, como contraponto às bolsas e ao Sistema Financeiro, a Aliança RECOs, como alavanca provocadora de uma nova consciência, e a busca por novas fontes com pensamentos plurais e visões críticas caminham no tripé informação, comunicação e educação. E como diz José Saramago “A alternativa ao neoliberalismo se chama consciência. A consciência de que não somos e não fazemos parte desta estrutura por estarmos ainda conscientes”.


1 – Crédito de risco concedido a um tomador que não oferece garantias suficientes para se beneficiar de taxas de juros mais vantajosas. Forma de crédito hipotecário cuja garantia é o imóvel.
2 – London Interbank Offered Rate (LIBOR) é uma taxa de referência diária muito utilizada nas transações internacionais.
3 – Desprezado, menosprezado, desrespeitado.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Nota do CTI sobre a atividade petroleira ao sul da TI Vale do Javari


Nota do CTI sobre a atividade petroleira ao sul da TI Vale do Javari: mais um atropelo aos direitos dos povos indígenas em processo de licenciamento de empreendimento

Por CTI

A década de 2000 assistiu a um crescimento expressivo da presença da indústria petroleira na Amazônia Ocidental. No Peru, a política de governo do ex-presidente Alan Garcia agraciou com inúmeras vantagens o setor, levando ao loteamento de mais de 70% da superfície da Amazônia peruana para a exploração de petróleo e gás, mediante um sistema de concessões – apenas entre 2003 e 2009, o incremento da área amazônica loteada passou de 15% para 72% da superfície do bioma no país. A alta do preço do petróleo no mercado internacional e a ação conjugada de incentivos a investimentos privados e ataques aos direitos dos povos e populações afetados por tais empreendimentos levou ao acirramento de tensões e a graves conflitos em toda a Amazônia peruana nos últimos anos. No Brasil, durante o governo Lula, o lobby do setor petroleiro logrou aportes financeiros no Programa de Aceleração do Crescimento para que a Agência Nacional do Petróleo (ANP) contemplasse em seu Plano Plurianual o investimento em pesquisas sobre o potencial petrolífero da Bacia Sedimentar do Acre, na região do alto Juruá.

Neste contexto, em 2007 a ANP dá inicio a uma série de pesquisas, contratando a aquisição de dados aerogeofísicos e geoquímicos da Bacia do Acre. A estas atividades foram dispensados licenciamentos e elas foram executadas sem quaisquer esclarecimentos sobre sua realização aos povos e comunidades que habitam a região. Os resultados das pesquisas tampouco foram divulgados localmente. Mesmo com as seguidas manifestações públicas feitas pelas organizações indígenas da região e outros atores da sociedade civil contra a falta de transparência e diálogo, a ANP, entusiasmada pelos resultados preliminares, dá continuidade às pesquisas, licitando em 2009 a contratação das atividades de prospecção sísmica no alto Juruá ao longo de 12 linhas, que totalizam 1.017 km.

As linhas sísmicas foram estrategicamente traçadas pela ANP a fim de distarem no mínimo 10 km de TIs e UCs, alegando assim tratar-se de uma atividade de impacto indireto às áreas protegidas e, com isso, evitar um demorado e custoso processo de licenciamento ambiental. Com isso, a empresa contratada para o serviço, a GEORADAR, recebeu a dispensa de elaboração de EIA-RIMA e obteve mediante a apresentação de um Plano de Controle Ambiental (PCA) - no qual justifica a inexistência de obrigatoriedade de realizar qualquer ação de comunicação junto aos povos indígenas da região - a Licença de Operação (LO) e a Autorização para Supressão Vegetal (ASV), emitidas pelo IBAMA em fevereiro e maio deste ano, respectivamente.

Entretanto, ocorre que em meados de 2011, antes da obtenção da LO e ASV, a Funai é informada pela empresa sobre a realização do empreendimento e sobre a suposta ausência de impactos sobre os povos indígenas da região. Na época a Coordenação Geral de Gestão Ambiental (CGGAM) era a instância técnica do órgão indigenista responsável por acompanhar os processos de licenciamento de empreendimentos e, para tanto, deveria dialogar com outras instâncias do órgão, como por exemplo a Coordenação Regional do Vale do Javari (CRVJ) – o que não aconteceu – e a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), em função de haver referências de índios isolados na região.

Prontamente a Funai, por meio da CGIIRC, manifesta-se apontando, dentre outros pontos, a necessidade de levantamento prévio por parte de especialistas da Funai nas áreas onde seriam abertas as picadas necessárias para efetuar o levantamento sísmico nas áreas próximas aos limites sul da TI Vale do Javari, por se tratar de áreas em que há informações sobre a presença de índios isolados. Além disso, verifica-se que o traçado de uma das linhas (a linha 08) atravessa um varadouro utilizado historicamente pelo povo Marubo, e que, portanto, a eles deveria ser elaborado um Plano de Comunicação específico sobre a realização das atividades.

Ciente destas informações desde 2011 e em meio a tratativas junto ao órgão indigenista, a empresa GEORADAR realiza em meados deste ano as atividades de levantamento sísmico na linha 08 (o que envolve a movimentação de grupos de trabalhadores, a abertura de picadas e clareiras, o trânsito helicópteros e a detonação subterrânea de explosivos) sem observar os pontos apontados pela Funai e sem o conhecimento e acompanhamento por parte do órgão. Ainda mais grave é o fato de os povos indígenas do Vale do Javari não terem sido informados a respeito do empreendimento previamente à realização das atividades. Mesmo agindo de má-fé durante o processo, a GEORADAR insiste diretamente junto a funcionários da Funai para a realização de reunião para “informar” os índios a posteriori, demonstrando uma suspeita preocupação antes inexistente e buscando “cumprir” as exigências demandadas pela Funai (e desrespeitadas pela empresa) ao PCA do empreendimento.

O CTI já havia alertado em artigo publicado em 02/11/2011 para as consequencias do atropelo promovido pelo Governo Federal em seu ímpeto desenvolvimentista de “acelerar” processos de licenciamento ambiental de empreendimentos a todo e qualquer custo. Nada se pergunta aos índios, mas o MME, os diretores da ANP e parlamentares não escondem o entusiasmo e a expectativa com a exploração de hidrocarbonetos no alto Juruá. As atividades de pesquisa do potencial petrolífero previstas no PPA da ANP continuam e já se fala de incluir a Bacia do Acre na 12ª rodada de leilões (a 11ª está prevista para o primeiro semestre de 2013). Em outubro deste ano, a ANP contratou a empresa FLAMOIL para o reprocessamento em laboratório dos dados sísmicos já coletados em campo pela Petrobrás em bacias sedimentares terrestres, incluindo a Bacia do Acre. O volume das linhas sísmicas já pesquisadas na região do alto Juruá é significativamente mais denso do que as que estão sendo realizadas pela GEORADAR, e a maior parte incide em áreas que atualmente são TIs e Ucs (ver mapa). A lembrança dos povos indígenas do Vale do Javari com a presença de funcionários da Petrobrás durante a prospecção de linhas sísmicas e perfuração de poços estratigráficos durante os anos 70 e 80 não é boa: surtos de doenças, incomodo com fumaça, explosões e sobrevoos rasantes e conflitos com grupos de índios isolados, valendo-se de disparos de espingarda e bombardeios com os explosivos destinados a prospecção.

Em 2011, a ANP publicou um documento que reúne e analisa os resultados preliminares das pesquisas com os dados já existentes sobre a Bacia, e atesta a alta probabilidade da existência de reservatórios de gás natural viáveis de serem explorados. Dentre estes possíveis reservatórios, um dos maios promissores é denominado de “Baixo Batã”, que se estende desde o rio Batã, na TI Vale do Javari, até o sul do Parque Nacional da Serra do Divisor. No outro lado da fronteira, no Peru, nas últimas duas semanas a empresa PACIFIC STRATUS deu início as atividades de prospecção de linhas sísmicas do lote 135, correspondente a esta região – o CTI já havia apontado em dezembro do ano as ameaças que estas atividades representam para aos povos indígenas da região.  

Os eventos acima descritos ilustram bem o tipo de atropelo cada vez mais frequente em processos de licencimento de empreendimentos que afetam povos indígenas no Brasil. Em primeiro lugar, nota-se a falta de comunicação inter e intra-institucional entre os órgãos de governo envolvidos. A FUNAI não é órgão licenciador, e sim o IBAMA, que deveria ter entrado em contato com o órgão indigenista para que este se manifestasse no processo de licenciamento, como manda a lei. Internamente à FUNAI, percebe-se que houve falta de comunicação entre as esferas envolvidas, agravada pela transição da responsabilidade por acompanhar processos de licenciamento da CGGAM para a recém-criada Coordenação Geral de Licenciamento (CGLIC). Como resultado, o processo referente à realização de levantamentos geofísicos na Bacia do Acre ficou “no limbo”, em evidente prejuízo para os povos indígenas afetados – sobretudo os povos indígenas do Vale do Javari, que permaneceram à margem de todo o processo. Neste limbo, a Georadar deu seguimento a suas atividades sem qualquer consulta aos povos indígenas do Vale do Javari e sem qualquer acompanhamento por parte da FUNAI, embora estivesse ciente do posicionamento da CGIIRC a respeito da necessidade de levantamento prévio e acompanhamento por parte de técnicos do órgão, sob o risco de afetar índios isolados. É evidente, portanto, que a Georadar se aproveitou da situação, agindo com a falta de escrúpulos comum ao setor energético no Brasil.
 
Acesse o Mapa com as linhas sísmicas em alta resolução AQUI

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Nota da CPT sobre Marãiwatsédé

A Comissão Pastoral da Terra, Mato Grosso, reunida em Cuiabá no Encontro Estadual, com representantes de todas as equipes do Estado, quer expressar a sua total solidariedade e, simultaneamente, lamentar com profunda indignação a situação por que passa, mais uma vez, o Povo Xavante da aldeia Marãiwtsédé (Médio Araguaia).

Após anos de espera, que impôs seqüelas irreparáveis à todo Povo Xavante, principalmente às crianças, que morreram vitimadas pelas doenças, finalmente acreditamos que uma injustiça histórica está sendo reparada. No entanto, o que estamos assistindo, atualmente, é um quadro extremamente preocupante, de forte agressão ao Estado de Direito, por parte de grupos que historicamente exploraram a área indígena até a exaustão; hoje, eles continuam a manipulação da verdade e da realidade, com a conivência do Governo do Estado. Exemplo disso é a Lei nº 9.564 de 2011 que autoriza a permuta com a FUNAI, trocando a Terra Indígena Marãiwatsédé pelo Parque Estadual do Araguaia, proposta pelo Presidente da Assembléia, José Geraldo Riva e pelo deputado Adalto de Freitas, com o apoio da mídia subserviente.

Além disso, há uma série de outros posicionamentos de políticos, eleitos para representar o povo, que merecem repúdio. Entre eles, a manifestação carregada de preconceito e ódio do então Senador Cidinho dos Santos (PR), publicada no Diário de Cuiabá, em que afirma: “Hoje, podemos dizer que, primeiramente, existem os direitos dos índios e, depois, vêm os direitos dos humanos”.

No coro das injustiças e inverdades, está também o Deputado Federal Júlio Campos (DEM/MT), que protestou a favor dos intrusos, desconsiderando a vida e a história dos indígenas Xavantes na região, já fartamente comprovada nos laudos antropológicos.

Tudo isso vem trazendo um clima irrespirável e conseqüências graves não somente para o povo Xavante, mas para toda a sociedade. Provocam-se e acirram-se, a cada dia, ódios e chantagens vingativas e violentas. Chega-se a executar ações desumanas, como as que foram claramente expostas pelos intrusos, no bloqueio da BR 158, em que se proibiu, mesmo com a escolta da Força Nacional, a trafegabilidade de uma ambulância que transportava uma indígena Xavante que se encontrava em trabalho de parto, necessitando, urgentemente, de cuidados médicos. E, como não bastassem, os intrusos destruíram as pontes de acesso à aldeia Xavante, privando os indígenas do alimento e da água potável.

Uma absurda projeção de culpas tem recaído em quem sempre defendeu posseiros e indígenas, a exemplo do Bispo Pedro e outros agentes da Prelazia. Não podemos aceitar que a voracidade de lucro de poucos setores privilegiados possa levar ao desequilíbrio da violência e do ódio, renovados por essas atitudes. Esperamos que a intervenção do Ministério Público Federal possa dar um basta a estes graves abusos

Na procura da Paz com Justiça, nos encoraja a firme posição assumida pelo novo bispo, Dom Adriano e sua Prelazia. Juntos, a CPT de MT quer contribuir para que se possa trilhar o caminho da justiça, com o reassentamento das famílias que tem direito à Reforma Agrária e conclamamos os órgãos Federais e Estaduais e toda a sociedade a se unirem neste objetivo de Paz.


COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, REGIONAL MATO GROSSO.
                                                                                         

Cuiabá-MT, 16 de dezembro de 2012

sábado, 15 de dezembro de 2012

AGU pede anulação de contrato firmado ilegalmente entre índios de Rondônia e empresa irlandesa para venda de créditos de carbono

A Advocacia-Geral da União (AGU) ajuizou ação na Justiça para pedir a anulação de contrato entre a empresa irlandesa Celestial Green Ventures PLC e a Associação Indígena Awo "Xo" Hwara firmado para a venda de créditos de carbono em terras indígenas em Rondônia (RO), sem intervenção ou autorização da União ou da Fundação Nacional do Índio (Funai).

Segundo as unidades da AGU, a suspensão do contrato é necessária para impedir a biopirataria e evitar prejuízos ao ecossistema e à biodiversidade local. A ação pediu que os envolvidos sejam proibidos de efetuar e/ou receber qualquer pagamento relacionado ao acordo. A Advocacia-Geral pede ainda a anulação do contrato firmado e a proibição da empresa estrangeira de negociar quaisquer direitos sobre o usufruto de terras indígenas em qualquer lugar do território nacional.

O contrato foi firmado pela empresa que não possui cadastro regular no país e com a associação que supostamente representa os índios que habitam nas terras de Igarapé Lage, Rio Negro-Ocaia e Igarapé Ribeirão, no Estado de Rondônia, como se esta fosse proprietária dos terrenos que pertencem à União. A área possui 259.248,3 hectares.

Pelo acordo, a Celestial Green Ventures PLC pagaria pouco mais de US$ 13 milhões à associação e, em troca, receberia, por 30 anos, todos os direitos sobre os créditos de carbono que venham a ser obtidos através da biodiversidade das terras indígenas, que estão demarcadas e homologadas, na forma do Decreto 86.347/81.

Outra cláusula do contrato permite que a empresa tenha acesso irrestrito a toda área, podendo realizar qualquer obra ou atividade nesta área, sendo necessária autorização dela para intervenções externas, como a entrada dos próprios índios nas regiões destinadas exclusivamente a esses povos.

Na ação, a AGU defende a impossibilidade de conceder a uma empresa privada a exploração de um bem público, o qual pertence à coletividade e não à associação, sob afronta à soberania do Estado. De acordo com os advogados públicos, o acordo prejudica o modo de vida tradicional dos índios, já que se pode impedir o simples exercício da agricultura de subsistência ou qualquer tentativa de melhoria na qualidade de vida dessas comunidades.

Além disso, destacaram que, conforme prevê a Constituição Federal, cabe aos índios o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, e qualquer interferência de particular viola a função social da terra indígena, cuja missão é ser utilizada para atividades produtivas dos índios, preservar os recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e a sua reprodução física e cultural, e atenta contra à soberania nacional.

As unidades da AGU que atuam na ação reforçaram que vários índios da região realizaram abaixo-assinado repudiando a assinatura do contrato, destacando que a associação não representa de forma legítima os interesses dos indígenas que habitam no local e que o contrato foi celebrado contra a vontade das comunidades.

A venda de crédito de carbono é uma ideia na qual países em desenvolvimento e os mais pobres passariam a ser compensados financeiramente pelo desenvolvimento de projetos que evitassem o desmatamento e a degradação florestal, fazendo com que aqueles países que detivessem metas de redução de emissões fossem compensados pelos países que não possuíssem tais metas. Porém, no cenário internacional ou no ordenamento jurídico nacional não há qualquer ato normativo que discipline esse mecanismo.

Atuam na ação, a Procuradoria Regional Federal da 1ª Região, a Procuradoria Federal em Rondônia e a Procuradoria Federal Especializada junto à Funai, todas unidades da Procuradoria-Geral Federal (PGF), a Procuradoria Regional da União da 1ª Região (PRU1) e a Procuradoria da União junto ao Estado, ambas unidades da Procuradoria-Geral da União (PGU). A PGF e a PGU são órgão da AGU.

O caso é analisado na Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Rondônia.

Fonte: AGU