Professora Drª Denise Salles
Neste trabalho
apresentaremos alguns aspectos da Lei 13.445 de 24 de maio de 2017, notadamente
sobre vetos a esta em especial faremos uma análise dos prejuízos que o veto
relacionado aos povos indígenas, aqui denominados por nós de povos originários e
das populações tradicionais, em especial o direito à livre circulação em terras
tradicionalmente ocupadas, que constava no § 2º do art. 1º do o Projeto de Lei
nº 288, de 2013 (nº 2.516/15 na Câmara dos Deputados), que institui a Lei de
Migração. (DUPAS, 2017).
A simples constatação e o reconhecimento de que estes
povos originários são anteriores ao Estado Nacional, nos leva a admitir que o
Estado Nacional se funda sobre territórios pertencentes a estes povos.
Portanto, toda fronteira estabelecida a-posteriori são resultantes de
autoritarismo e espoliação. O estado nacional, como tal e suas respectivas
fronteiras são uma ficção. Não se pode esquecer que esta formação do estado
nacional foi pautada na violência e violações de todos os direitos destes povos.
Não obstante essas violências perpetradas contra os povos
originários, obrigamo-nos também a reconhecer que a Constituição Nacional de
1998 tenta minimizar os danos, não só por meio dos artigos 231 e 232, mas na
própria formulação de princípios, como observa Dupas:
A República Federativa do Brasil
tem como um de seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana (inciso III, Art.
1º, da Constituição Federal); "promover o bem de todos, sem preconceitos
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação", constitui um de seus objetivos fundamentais (inciso IV,
Art. 3º, da Constituição Federal); e, nas suas relações internacionais, rege-se
o princípio da "prevalência dos direitos humanos" (inciso II, Art.
4º, da Constituição Federal). (DUPAS, 2017, p. 74).
Ora, neste mesmo espírito a Lei 13.445/17, em seu artigo
1º dizia: “§ 2º São plenamente garantidos os direitos originários dos povos indígenas e
das populações tradicionais, em especial o direito à livre circulação em terras
tradicionalmente ocupadas.” (BRASIL, 2017), num claro reconhecimento ao
direito a livre circulação dos povos originários e comunidades tradicionais.
Este artigo porém foi vetado criando assim, para falar o mínimo, um completo
descompasso entre o espírito da Constituição Federal e da própria lei da
Migração.
Vejamos, pois, os argumentos utilizados para justificar,
em tese, o veto:
O dispositivo afronta os artigos 1º,
I; 2º, § 2º; e 231 da Constituição da República, que impõem a defesa do
território nacional como elemento de soberania, pela via da atuação das
instituições brasileiras nos pontos de fronteira, no controle da entrada e
saída de índios e não índios e a competência da União de demarcar as terras
tradicionalmente ocupadas, proteger e fazer respeitar os bens dos índios
brasileiros. (BRASIL, Presidência da República, 2017)
Pois é justamente este o ponto de
partida de nossa crítica ao veto, baseado no inciso III, Art. 1º, da
Constituição Federal, de onde se conclui que o fundamento basilar de nossa carta
magna que consagra a dignidade da pessoa humana regerá os demais atos
normativos. Opor o conceito de soberania ao conceito de “dignidade humana” ou
considerar a soberania em grau mais elevado que a dignidade da pessoa
pertencente ao estado nacional equivale a negar ao cidadão sua própria
cidadania. Isso pode nos parecer contraditório, mas é justamente o que fez a
presidência da república ao vetar o artigo 1º § 2º da lei 13.445/17.
Voltemos então ao ponto nevrálgico
de nossa problematização. Por serem estes povos originários anteriores ao
estado nacional, seus territórios não correspondem ao conceito de Estado
Nacional. Entretanto e talvez por isso mesmo, a lei entende que estes povos
possuem direitos, digamos, originários, decorrentes desta primazia. Um desses
direitos essenciais consagrados é o direito à livre circulação em seus
territórios. Este é, pois, o ponto central: garantir os direitos desses povos
contra a arbitrariedade estatal. Uma espécie de garantismo aplicado como
salvaguarda dos Direitos Humanos e, no neste caso, direitos dos povos
originários.
(...) o
projeto da Lei de Migração, a princípio, mostrava-se um avanço, ao falar em
“livre circulação em terras tradicionalmente ocupadas”, pressupondo o movimento
dentro de um mesmo território. A menção à mobilidade de populações indígenas em
uma proposta legislativa sobre migração, contudo, reafirma a superioridade
jurídica das fronteiras nacionais. A Mensagem de Veto, utilizando-se do argumento
da defesa da segurança nacional para justificar as restrições promovidas pelo
Estado brasileiro às populações indígenas, é apenas uma consequência de tal
pensamento. (SILVA, 2018, p. 5).
Vejamos que o grande argumento do
veto repousa na ideia de que a defesa do “território” se impõe para “garantir”
a soberania. É clara a inversão nessas proposições. Só se garante o território
garantindo os direitos das populações vivem nesse território e não o contrário.
Esses povos não figuram como ameaças, mas sim como “garantidores” desses territórios, tanto mais por terem sido
estes povos e seus territórios, a única base territorial para o surgimento do
estado nacional. Os territórios reivindicados para livre circulação dos povos
originários são antes territórios desses povos que do estado nacional. Dito de
outra forma: acreditamos que só tem sido possível a garantia da soberania
nacional em região fronteiriça graças a existência desses povos. A observação
de Dupas corrobora o que estamos analisando criticamente:
Os povos indígenas e as
populações tradicionais não foram contemplados como sujeitos de direitos, o que
demonstra que ainda há a permanência do princípio de defesa do território
nacional como elemento de soberania e o controle da entrada e saída de indígenas
e não indígenas, além da competência da União de demarcar as terras
tradicionalmente ocupadas, proteger e fazer respeitar os bens dos indígenas
brasileiros, sendo estas as justificativas dos vetos (...). (DUPAS, 2017, p.
75).
A Constituição Brasileira de 1988,
em seu artigo 231 confere aos povos originários o direito aos territórios e sua
forma de se organizar nestes mesmos territórios segundo seus costumes e
tradições (BRASIL, 1998) e cabendo a união demarcar respeitar e fazer respeitar
estes territórios e os bens ali existentes. Demarcar e respeitar os territórios
e formas tradicionais de organização implica, entre outras, garantir a livre
circulação destes povos em seus territórios. Recorrer ao conceito de soberania
para estorvar, limitar e mesmo impedir essa livre circulação caracteriza uma
gravíssima violação de direitos.
Note-se que não falamos em “livre
circulação” em território considerado brasileiro. Falamos antes, de livre
circulação em territórios indígenas, ou como preferimos dizer, em territórios
dos povos originários. Limitar a circulação desses povos em seus territórios
não se justifica se retomarmos a ideia central da Constituição que é o respeito
aos territórios e às formas de lidar com esses territórios por parte dos povos
originários.
Desde sempre estes povos circulam
livremente em seus territórios limitando-se apenas em momentos de conflitos com
outro povo igualmente originário e sempre compreendendo de onde até onde se
poderia circular sem as determinações do estado nacional e muito menos sob o
argumento da “soberania nacional”. Talvez esteja aí a crescente tese de estados
plurinacionais.
A lei que se apresentava como um
verdadeiro avanço em nossa legislação, por meio do veto, torna-se um verdadeiro
desrespeito à legislação e ao espírito do qual o legislador se valeu. Portanto,
o veto não é apenas uma violação de direitos dos povos originários, mas uma
afronta ao legislador brasileiro e desrespeito aos tratados internacionais dos
quais o Brasil é signatário.
A menção de populações indígenas
em uma legislação sobre migração, bem como seu posterior veto, revela a
marginalização institucional que os povos indígenas enfrentam na jurisdição
brasileira (...). (SILVA, 2018, p. 1).
Com muita propriedade se pode mesmo
falar em “marginalização Institucional” no caso da menção dos povos indígenas,
povos originários, na legislação sobre migração como se estes fossem
“estrangeiros” em seus próprios territórios. Ainda mais explícito fica esta
marginalização quando da argumentação que sustentou o veto.
Ao vetar o artigo que garantia proteção aos povos
originários, o Estado viola sua própria legislação e espírito desta, mas também
desrespeita a forma de viver desses povos estabelecendo e aprofundando o
preconceito contra estes povos historicamente marginalizados. Assim assinala
Sprandel:
O
direito à livre circulação de povos indígenas e populações tradicionais também
encontra respaldo em tratados internacionais dos quais o Brasil é parte, como a
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), internalizada
pelo Decreto n. 5.051, de 19 de abril de 2004 e o Acordo sobre Residência para
Nacionais dos Estados Partes do Mercosul e Países Associados35, que contempla
os indígenas da região.
(SPRANDEL, 2017, p. 53).
O Brasil que vinha numa ascendente reflexão sobre
direitos humanos perante diversos organismos inclusive internacionais, com o
veto, demonstra retrocesso e desrespeito às normas, acordos e posições
consagradas mundialmente o que nos coloca em uma posição descendente em relação
aos direitos humanos. Mais que lamentar tais retrocessos, devemos sempre
denunciar toda e qualquer violação de direitos.
Referências:
DUPAS, Elaine. BOTELHO,
Tiago Rezende. A NOVA LEI DE MIGRAÇÃO E A BIOPOLÍTICA: O veto à livre
circulação de povos indígenas e populações tradicionais transfronteiriças.
Arquivo Jurídico, v. 4, n 2, 2017, Teresina, PI
SILVA, Leonardo Matheus
- Fragmentados: mobilidade guarani e a Lei de Migração. Memória Patrimônio
Democracia, 2018. UNVLLE, Joinville, SC.
SPRANDEL, Maria Anita. Leis
migratórias e conservadorismo parlamentar no Brasil: o caso da Lei 13.445, de
2017. Cadernos de Debates Refúgio, Migrações e Cidadania, v.13, n.13 (2018). Brasília:
Instituto Migrações e Direitos Humanos.