Lindomar Dias
Padilha[1]
... pois aqueles que nos levaram cativos nos pediam
para entoar belas canções, e os nossos opressores,
que fôssemos alegres, exclamando:
“Entoai-nos algum dos cânticos de Sião!”
Como, porém, haveríamos de cantar as
Canções do Eterno numa terra estranha?
(Salmo 137)
Lembrei-me deste Salmo quando um amigo repórter pediu que
eu falasse sobre a situação dos povos indígenas no Acre, neste dia 19 de abril
(dia do índio) de 2021 considerando o contexto de pandemia. Os povos indígenas,
mesmo após 1521 anos de invasão oficial de seus territórios, ainda vivem como estrangeiros
em sua própria terra e seguem assistindo os seus territórios sendo espoliados e
seus direitos negados. Claro que sei que mesmo o governo Federal tomou como aceitável
que os indígenas fossem considerados entre os grupos prioritários, até mesmo
para o processo de vacinação. Entretanto, os povos originários são vítimas frequentes
de desinformação, e é neste ponto que pretendo concentrar o meu parecer e
minhas críticas.
Os povos e comunidades são vítimas constantes de
prosélitos dos mais diversos e variados grupos. De um lado, há o proselitismo
religioso, especialmente advindo de religiões fundamentalistas ditas cristãs.
Porém temos que considerar o proselitismo de outras religiões, como por
exemplo, as que se baseiam no espiritismo culturalista, que são aquelas
religiões que utilizam aspectos da própria cultura indígena como o uso de chás
e ervas com destaque para as que fazem uso do chá da Chacrona e do Mariri, ou Caapi,
conhecido como ayahuasca[2]. O
proselitismo religioso é desrespeitoso para como os povos e culturas
originários deste o início da invasão, mesmo que em alguns momentos da história
esse proselitismo tenha se apresentado como forma de acorrer estes povos.
Mais recentemente, notamos um grande crescimento do
proselitismo político/ideológico, especialmente com o acirramento entre
ideologias que tendem aos extremos do que chamamos de “direita e esquerda[3]”. Os povos e comunidades estão sendo
bombardeados com falsas notícias vindas de ambos os lados. Isso se dá, por
exemplo, na implantação de projetos do tipo REDD+[4] e
REM[5]
onde as comunidades não são ouvidas, mas recebem informações falsas de que
estes projetos são efetivamente a remissão econômico-financeira para estes
povos e comunidades. Mais uma vez os espoliadores e saqueadores se apresentam
como santos portadores da “boa nova” em um contexto quase bíblico/salvífico.
Esse tipo de proselitismo ocorre ábdito das autoridades que deveriam fiscalizar
a atuação desses prosélitos em terras indígenas. Como isso se dá, por exemplo,
no contexto das vacinas? , me perguntaria você.
O governo Federal e seus seguidores obscurantistas
divulgam informações falsas para quebrantar o interesse desses povos no caso da
aceitação da vacina. Frases como a já muito conhecida dita pelo próprio
presidente da República “se você virar um jacaré, é problema seu”, procuram
atuar justamente no campo do imaginário e, sim, podem levar à recusa em receber
a vacina. Por outro lado, vimos prosélitos adeptos do culturalismo religioso
incentivando esses povos a seguirem ou a adotarem o uso de substâncias já
existentes entre os povos como maneira de prevenir e tratar a doença decorrente
da contaminação pelo novo Coronavírus. É o caso, por exemplo, do incentivo ao
uso do chá da quina, muito utilizado por essas populações no tratamento da
malária associando-o a outras substâncias naturais, até mesmo a ayahuasca. No
Acre temos até comunidade se recusando a fornecer informações sobre casos de
contaminação ludibriados de que se tratam sozinhos e que não registraram nenhum
caso. Infelizmente parte da mídia segue
divulgando este tipo de suposta notícia sem contudo checar sua veracidade.
Como dizia Antônio Prates: “O fanatismo e a inteligência
nunca moraram na mesma casa”. Esta frase explica parcialmente o que tenho dito
sobre a atuação dos radicais de direita e de esquerda que atuam nas comunidades
indígenas. Tem instituições atuando em favor dos dois extremos e, infelizmente
algumas são até tidas como indigenistas. Considero natural que uma pessoa,
mesmo ligada a alguma instituição indigenista, tenha preferências políticas. Eu
mesmo tenho as minhas. O que considero grave é o proselitismo em favor de uma
ou de outra ideologia e mesmo em favor de algum partido político específico. Na
história dos povos originários não existe, apenas exemplificando, Lulopetistas
versus Bolsonaristas, direita versus esquerda ou qualquer outro tipo de
radicalismo ignorante e divisionista. O que existe é o Estado Brasileiro que
nasce justamente da espoliação e roubo dos territórios destes povos originários
versus estes povos e seus direitos. Portanto, o Estado brasileiro sempre atuará
se não contra, pelo menos com desconfiança em relação aos povos originários,
seja este Estado governado por quem quer que seja e sob o julgo de qualquer
ideologia. Observar a realidade e tentar intervir nesta apenas com um olhar
obscurecido pelas eleições gerais previstas para 2022 é seguir condenando essas
populações às desinformações e negando-lhes o direito a autodeterminação.
A Constituição brasileira, em seu artigo 231 reafirma o
respeito aos direitos desses povos quando diz: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam...”. Reconhecer aos indígenas sua organização
social, crenças, línguas e tradições, é reconhecer que o proselitismo de
qualquer natureza fere esses direitos, tanto mais se acompanhado de ideologias
radicais como o que temos assistido nestes tempos cabulosos em que vivemos.
Neste contexto, as organizações indígenas e indigenistas, públicas ou da
sociedade civil, deveriam construir seu foco de atuação na garantia desses
direitos constitucionais e na fiscalização do cumprimento das obrigações do
Estado brasileiro para com esses povos. Considero sempre bom trazer exemplos
que possam ilustrar melhor o que digo. Vejamos:
O controle da pandemia, incluindo a vacinação dos povos
indígenas, está sob a responsabilidade da SESAI[6]-
Secretaria Especial de Saúde Indígena, naturalmente em colaboração e sob
fiscalização da Funai – Fundação Nacional do Índio e do MPF – Ministério Público
Federal. Ocorre que nem a Funai e nem o MPF contam com servidores preparados e
em número suficiente para realizar tal acompanhamento. Por outro lado, as organizações
da sociedade civil, estão proibidas ou pelo menos com muita dificuldade para se
fazerem presentes nas comunidades e contribuir adequadamente, tanto na
fiscalização e denúncias de eventuais práticas irregulares e mesmo omissões,
como na orientação adequada e no combate às notícias e informações mentirosas.
Isso sem contar que muitas dessas organizações, como já o disse, estão mais a
serviço de ideologias que mesmo dos direitos e interesses dos povos. Esse
conjunto de fatores traz muita incerteza sobre o que está acontecendo de fato e
como estes povos e comunidades estão efetivamente sentindo os efeitos da
pandemia.
Com base em informações incertas e inseguras de que os
povos indígenas estão se recusando, em larga medida, a tomarem a vacina, muitas
prefeituras no Acre já estão pedindo o remanejamento de parte das doses de
vacinas destinadas aos povos indígenas para outros grupos, como os
trabalhadores em segurança pública. Esta constatação demonstra claramente o que
a desinformação ou informação incompleta pode acarretar nas comunidades.
Admitir que os povos indígenas estejam se recusando a se vacinar por causa de
mentiras como a de que poderão virar jacaré, é também e ao mesmo tempo, não
reconhecer nesses povos a capacidade de discernirem. É não reconhecer que estes
povos são plenamente capazes e que a eles são reconhecidos os direitos às suas
organizações sociais, crenças, línguas e tradições. Entre os oportunistas de
direita e de esquerda, estão os povos com seu modo de enxergar e de se autodeterminarem.
Neste momento, cabe às instituições realmente sérias, zelar para que as
informações cheguem de forma correta, esclarecedora e, claro, que sejam
verdadeiras.
Nenhuma instituição sabe dizer ao certo o que realmente
está acontecendo nas comunidades. As informações são sempre vagas e incompletas
por um lado. Por outro, não há uma fiscalização adequada capaz de reagir a
eventuais práticas nocivas e mesmo às mentiras e desinformações deliberadas.
Creio que demorará muitos anos para que possamos realmente saber o está de fato
acontecendo neste momento. Pesquisadores terão ainda que realizar muitos
estudos e pesquisas para se aproximarem da verdade do que está ocorrendo. Creio
que demoraremos algo em torno de uns sete a oito anos, isso se conseguirmos
superar o divisionismo político/ideológico, sempre obscurantista.
Eu poderia citar aqui números de casos e mesmo de mortos
por causa de complicações da Covid divulgados oficialmente ou por ONGs, mas
seriam sempre apenas casos, números e ainda assim, subnotificados. A Covid
entre as populações indígenas é muito mais grave que supõem as autoridades. Os
casos de morte são muito maiores que os informados, no dia de hoje, por
exemplo, o Cimi registrou que lamentavelmente ultrapassamos 2.500 casos tendo
sido mais de 47 casos fatais[7].
Além das inúmeras mortes evitáveis, outras consequências decorrentes da pandemia
parecem-me que não estão sendo consideradas. Constatamos um aumento e
consequente agravamento do uso abusivo de substâncias como álcool e gasolina
entre alguns desses povos. Constatamos ainda o aumento dos casos de suicídios.
Suicídios à letra ou por descaso com a própria vida, como em vários casos de
afogamento registrados como sendo em decorrência de embriaguez. Grave também é
a constatação de casos de suicídios ocorridos em povos onde nunca fora
registrada tal prática. Cresceram também os registros de aumento de violências
intracomunitárias e o sentimento de impotência frente ao descaso das
autoridades.
Que este 19 de abril sirva para que, pelo menos, possamos
avaliar nossa atuação em relação aos povos originários que, deste o início da
invasão, foram impedidos de se autodenominarem como Apolima-Arara, Huni Kui,
Xixinawa, Sharanawa (...) e outros tantos. Além de verem seus territórios
espoliados e seus direitos negligenciados, para falar o mínimo, ainda hoje vêm
seus direitos aos territórios e a autoafirmação negados sob pretexto de serem
menos, inferiores e até incapazes.
Ou
superamos todos esses preconceitos e conceitos incorretos e nos mobilizemos
para que os direitos dos povos originários sejam efetivados e respeitados, ou
seguiremos escrevendo lamentos sobre a sorte (má sorte) desses povos por vários
19 de abril. Quero que o 19 de abril seja o dia do grito de liberdade preso nas
gargantas de mulheres e homens, de todas as raças, crenças e orientações sexuais,
juntando seus gritos aos dos povos originários e, assim, faremos juntos a festa
da libertação, a festa do que poderemos finalmente chamar de humanidade.
Parabéns aos povos indígenas, não apenas por este dia, mas por nos ensinarem a
resistência e a crença, que é certeza, de que haverá um novo dia apesar destes
tempos absconsos e estranhos!
[1]
Filósofo, Indigenista, mestre em direito, especialista em Desenvolvimento
Social no Campo: Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais.
[2] bebida
alucinógena preparada com o caule do caapi ( Banisteriopsis caapi ) e folhas de
chacrona ( Psychotria viridis ), us. ritualmente por populações amazônicas e
milhares de adeptos de diversas seitas em todo o Brasil e no exterior; auasca,
daime, iagê, mariri, uasca.
[3] Durante o processo revolucionário começado em 1789, na França, os girondinos, considerados mais moderados e conciliadores, ocupavam o lado direito da Assembleia Nacional Constituinte, enquanto os jacobinos, mais radicais e exaltados, ocupavam o lado esquerdo. Essa é a origem da nomenclatura política que categoriza os posicionamentos políticos no interior dos sistemas políticos contemporâneos. Essa polarização tem suscitado inúmeros problemas e demasiadas polêmicas, sobretudo porque, a partir do século XIX, houve uma radicalização ideológica tanto de um lado quanto do outro. O desenvolvimento das ideias de autores considerados de direita, como Donoso Cortez e Charles Maurras, bem como o daqueles considerados de esquerda, como Karl Marx e Bakunin, entre outros, estimulou gerações de intelectuais, movimentos políticos e ativistas que levaram às últimas consequências a crença em sua ideologia. (cf: https://brasilescola.uol.com.br/politica/direita-esquerda.htm)
[4] REDD significa Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação. Alterado para REDD+ ou REDD-plus, o conceito inclui conservação de florestas, manejo florestal sustentável e o carbono que possa ser armazenado por “reflorestamento”, inclusive através de plantações industriais de árvores. Apesar de estar diretamente relacionado às florestas e ao desmatamento tropical, o REDD+ está sendo debatido pela ONU no âmbito da Convenção sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e considerado pelos países do Norte como uma opção importante para que eles “reduzam” as emissões de carbono pagando a alguém para fazer a redução real por eles, e é considerado pelos países do Sul como uma oportunidade de obter dinheiro para a conservação da floresta. Os projetos-piloto de REDD+ mostram claramente que o mecanismo é uma mais uma grave ameaça para as populações florestais. (cf: https://wrm.org.uy/pt/navegue-por-tema/mercantilizacao-da-natureza/redd-3/)
[5] O
relatório REDD Early Movers (REM) no Acre, Brasil compara a promessa da redução
das emissões de carbono causadas pelo desmatamento mediante incentivos
financeiros com a implementação de medidas REDD+ no âmbito do programa REM
(REDD Early Movers) no Brasil. Faça o download do relatorio em pdf em : (https://wrm.org.uy/pt/outras-informacoes-relevantes/redd-early-movers-rem-no-acre-brasil/).
[6] A
Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) é responsável por coordenar e
executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o
processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) no
Sistema Único de Saúde (SUS). (cf:
https://antigo.saude.gov.br/saude-indigena/sobre-a-sesai).
[7] O
Cimi, Regional Amazônia Ocidental, registra os casos ocorridos não apenas entre
os indígenas aldeados, mas todas as mortes informadas.