segunda-feira, 24 de abril de 2017

Desmascarada a fraude ruralista contra o CIMI no MS






Relatório da CPI do Cimi no MS é arquivado, mas ruralistas o desejam incluso na CPI da Funai/Incra


No advento dos 45 anos completos neste 23 de abril, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) tem a alegria de informar o arquivamento, por parte do Ministério Público Estadual (MPE) e Ministério Público Federal (MPF), do Relatório Final produzido pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Cimi na Assembleia Legislativa do Mato Grosso do Sul. 

A CPI criada e conduzida por parlamentares ruralistas invadiu sem quaisquer indícios de irregularidades a vida institucional do Cimi, de membros e colaboradores da organização durante oito meses, entre setembro de 2015 e maio de 2016. Com o arquivamento, o desejo ruralista por um processo criminal contra o Cimi está frustrado. 

Ao longo de todo esse tempo, acusações marcadamente falaciosas foram amplamente divulgadas como se verdade fossem por diferentes veículos de comunicação, inclusive pela TV pública da própria Assembleia Legislativa. Imagens de missionários e seus familiares, inclusive crianças menores, foram divulgadas sem o menor pudor no contexto acusatório manejado pela maioria ruralista integrante da CPI. 

O arquivamento do Relatório da CPI do Cimi pelos órgãos de controle do Estado brasileiro demonstra, com firmeza, que a luta por direitos no Brasil não é e não pode ser tratada como crime. Com o arquivamento do citado Relatório, fica novamente demonstrado que o Cimi, seus membros e colaboradores atuam, única e exclusivamente, dentro dos marcos político-legais vigentes no Estado brasileiro. 

A motivação central do arquivamento do Relatório da CPI, a saber, por falta de provas, materializa o fato de que as acusações desferidas por parte de representantes do agronegócio sul-mato-grossense contra o Cimi, seus membros e colaboradores tinham exclusivo viés político-ideológico e se deram num contexto de perseguição, tentativa de criminalização e na intenção de provocar danos morais contra uma organização reconhecida, nacional e internacionalmente, pelo compromisso com a causa indígena e por uma sociedade plural e democrática. 

O Cimi chama a atenção, porém, para o fato de que o referido Relatório, devidamente arquivado pelos MPE e MPF no Mato Grosso do Sul, foi requerido e já deve estar sendo ‘requentado’ pelos ruralistas no âmbito da CPI da Funai/Incra na Câmara dos Deputados. 

Eventual menção e retomada, pela CPI da Funai/Incra, de acusações dirigidas ao Cimi, a seus membros e colaboradores - arquivadas junto com o Relatório da CPI do Cimi no Mato Grosso do Sul - significará prática recorrente, de modo consciente e deliberado, por parte de seus autores, de perseguição política, tentativa de criminalização e provocação de danos morais contra a organização, seus membros e colaboradores. 

Por fim, o Cimi reitera e renova o compromisso com os povos indígenas, seus direitos e suas lutas, nesse contexto caótico em que sofrem sistemáticos e intensos ataques, perseguições e violências por parte de setores ligados ao agronegócio, órgãos e autoridades públicas, além dos próprios poderes do Estado brasileiro. 

Brasília, DF, 24 de abril de 2017

Conselho Indigenista Missionário (Cimi)


terça-feira, 11 de abril de 2017

Ora, se o problema é a respiração, compremos os pulmões.

Publico em seguida a íntegra da entrevista que concedi ao jornal O São Paulo.

1.      Fale um pouco sobre você: nome completo, formação, família, atuação profissional e voluntária.

R: Sou Lindomar Dias Padilha possuo graduação em Filosofia, licenciatura, pela UECE e Especialização em Desenvolvimento e Relações Sociais no Campo pela Universidade de Brasília, UnB e formação em Direitos Humanos. Atuo junto aos povos indígenas da Amazônia brasileira desde 1991. Sou casado e tenho dois filhos. Minha esposa também atua junto aos povos indígenas e atualmente é coordenadora do Regional Amazônia Ocidental do Cimi, com sede em Rio Branco, Estado do Acre. Atuo também no observatório Pan Amazônico prestando serviços de análises de temas relacionados à Amazônia, notadamente temas ligados aos territórios, mercantilização e Financeirização da natureza em oposição ao Bem Viver, enquanto proposta de vida plena e harmônica para todos. Sou membro do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos.
2.      Desde quando os povos da Amazônia vem sofrendo violação dos seus direitos?

R: Regra geral, os povos indígenas são violados, saqueados e assassinados, física e culturalmente, desde a invasão europeia. O problema de fundo é que sempre estes povos foram “vítimas” de projetos sonhados por outros e nunca foram considerados como sujeitos e propositores de seus próprios projetos. Entretanto, creio que os ciclos que se seguiram após o contato também tiveram e tem papel preponderante e cada vez mais se sofistica na ação de expropriar e mercantilizar a natureza. Tivemos neste caso, aqui no Acre, dois ciclos onde a seringueira era a matéria prima para a produção de borracha para as fábricas que alimentavam a guerra e o “progresso”.
Neste momento, a tese principal tem sido o uso intensivo do que ainda resta de matéria prima sob o pseudônimo de “sustentabilidade”. Está em curso um perverso modelo de ataque aos territórios de indígenas e comunidades tradicionais. Destaco três aspectos deste modelo: um primeiro aspecto é o incentivo a produção de peixes em cativeiro (peixes de granja) num claro interesse de alimentar os mercados de ração e atacar a soberania alimentar das comunidades e, claro, criar ainda mais dependência; um segundo é o chamado “manejo” que no caso do Acre tem sido mais uma “autorização” para o desmate. Chamam de manejo sustentável, mas na prática é insustentável porque, entre outras coisas, foca exclusivamente na madeira e desconsidera todos os outros elementos deste complexo bioma Amazônico por exemplo as fontes de água e os animais, notadamente as espécies endêmicas. E um terceiro que são os projetos de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA) especialmente os de REDD+ que não são outra coisa que não a autorização para que empresas e países que mais poluem, sigam poluindo por meio da compra de créditos de carbono. Ou seja, os povos indígenas, a título de preservarem seus territórios, estão na verdade vendendo o usufruto destes territórios para empresas que, assim, podem “compensar” a emissão de gases de efeito estufa e outros. A lógica do capitalismo verde é simples: se falta ar, então, compremos os pulmões.
Este é um tema propositadamente envolto a uma nuvem de suposta complexidade, mas na verdade trata-se simplesmente do comércio do ar que respiramos. Quem pode compra o direito de seguir poluindo e pronto.
3.       Que órgãos têm lutado a favor da defesa destes povos?

R: Teoricamente temos muitos órgãos na defesa dos povos indígenas. Entretanto, temos que ter muito cuidado porque muitas ONGs, que são basicamente “Organizações Neo Governamentais” porque dependem diretamente de recursos públicos. Por outro lado, muitas delas são dependentes de recursos externos, justamente de países ou financiadoras que desenvolvem trabalhos no campo da dita economia verde. Ou seja, empresas e governos se valem dessas ONGs para terem acesso às comunidades e induzi-las à venda de sua autonomia territorial.. Na prática são pouquíssimas as instituições que de fato trabalha na defesa dos interesses dessas comunidades. Para não ser injusto prefiro não citar nomes de organizações. Entretanto, posso afirmar com toda certeza que as megas ONGs, de atuação internacional, são na verdade empresas do capitalismo verde e, portanto, a serviço do grande capital e contra os povos indígenas e comunidades tradicionais. Também essas ONGs/empresas, fazem parte do sofisticado mecanismo de expropriação.
A REPAM (Rede Eclesial Pan Amazônica) tem se apresentado como uma proposta de rede que seja capaz de articular essas entidades, ainda que o campo de atuação seja muito mais ligado à Igreja católica. Aliás, isso aponta para uma nova etapa , uma etapa pós Laudato Si. Essa é uma importante iniciativa e trás esperanças para os povos indígenas e comunidades da nossa Pan Amazônia.
4.       Sobre os casos concretos que foram levados aos Estados Unidos da América, há perspectivas de que os responsáveis sejam punidos?

R: Os sistemas ligados à Organização dos Estados Americanos (OEA), a despeito de sua boa vontade é lento quando se trata de punição, talvez por ser uma organização financiada e mantida justamente pelos estados, na maioria das vezes os que mais violam ou deixam violar os direitos. Nossa perspectiva, no entanto, é muito boa porque mais que punir espera-se dar visibilidade aos casos e criar nos próprios estados, junto à sociedade civil um clima mais favorável à Amazônia e seus povos, pessoas que vivem, produzem e cuidam desta vasta área riquíssima em biosóciodiversidade. Todos os casos apresentados na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA pornôs, são exemplos da gravíssima situação de violação dos direitos em nossos territórios e, cuja denúncia esperamos, alcance os ouvidos das pessoas de bem e boa vontade para que saiam na defesa desses povos e territórios. No caso do Acre é preciso que o Brasil e o mundo saibam dessas violações travestidas de sustentáveis e apresentadas como “modelo” ao mundo. É preciso que a cortina se descerre e as pessoas vejam a verdade por trás desses projetos ligados à economia verde para que, assim, possam compreender o que realmente está se passando no Acre e em nossa grande Amazônia.
5.      Como podemos pensar no equilíbrio entre desenvolvimento econômico e defesa das comunidades tradicionais na Amazônia?

R: Esta é uma pergunta importante porque temos que, a partir dela, definir o que estamos chamando de “desenvolvimento” econômico. E para quem será este desenvolvimento. Os modelos que até aqui foram apresentados, todos, rigorosamente todos, se dirigiram (e ainda o são) para o desenvolvimento dos grandes conglomerados econômicos e países ligados a estes conglomerados. Assim, todos estes projetos até aqui foram incompatíveis com a defesa das comunidades e do ambiente. Na cabeça dos que apregoam o “desenvolvimento” vem uma série de cifrões. Também os seus olhos nada enxergam que não cifrões. Associam desenvolvimento ao consumo, padrão de consumo e poder de acumulação. Ou seja, uma comunidade ou um povo tem seu desenvolvimento medido a partir de sua capacidade de consumir e gerar lixo industrial.
O equilíbrio só será possível se nos libertarmos deste conceito de desenvolvimento e entendermos que o verdadeiro desenvolvimento está no uso sadio do que a natureza nos oferece em primeiro lugar para “vivermos bem” e não para simplesmente a explorar até a exaustão para satisfazer padrões de consumo. É muito mais desenvolvida uma comunidade onde todos trabalham na geração de vidas, de suas próprias vidas e de outros, onde a natureza é, antes de tudo, uma mãe que ama seus filhos mas espera que em tempos de velhice estes filhos a amparem. Nossa Amazônia é esta mãe e neste momento se encontra enferma e bastante debilitada. Temos que cessar imediatamente as atividades que a explorem ainda mais e são o motivo de sua enfermidade. Temos que retirar daqui toda exploração madeireira, petroleira, minerações diversas. Por fim, temos que “expulsar” daqui os projetos de morte ainda que disfarçados de sustentáveis como os ligados a chamada economia verde que não é outra coisa que esverdear as cinzas da destruição.
6.      Você poderia falar um pouco mais sobre a financeirização da natureza e o bem viver?

R: Quando as caravelas europeias aqui chegaram para invadir os territórios e expropria-los, roubando-lhes o que fosse possível, chamaram a isto de “descoberta” e tinha por finalidade comercializar as riquezas não exploradas pelos ignorantes que aqui viviam e, em contra partida, trazer a civilização. Ou seja, civilizar era colocar no mercado. Por isso este processo também era chamado de mercantilização. Civilização era o mesmo que mercantilização. Aí está a raiz da Financeirização da natureza bem como de todos os demais projetos de morte que se seguiram. Como eu já o disse são projetos que enxergam cifrões e não vidas. As caravelas e suas formas de “civilizar” foram se aperfeiçoando ao longo dos tempos e hoje nos são apresentadas no formato de economia verde ou ecobisnes. Simplesmente a esverdeação do velho mercado explorador das riquezas e das pessoas. Vejam a que ponto chegaram: exploração do ar! Sim isso mesmo. Os mercados de carbono, assentados em projetos do tipo PSA (Pagamento por Serviços Ambientais), notadamente os de REDD+, não tem outra finalidade que não a exploração da capacidade de absorção da poluição gerada pelos gazes nocivos e da geração, portanto, de oxigênio e retenção do CO2. Este processo baseia-se na geração de créditos, que já expliquei, funcionam como uma autorização para continuar a poluir em outra parte do planeta. Estes créditos gerados são negociados em bolsas e quanto maior for a ameaça ao meio ambiente, tanto mais valiosos serão estes créditos. Assim, os detentores desses créditos lucram duas vezes pelo menos. Uma vez porque seguem emitindo gazes nocivos e até aumentando a emissão; e outra vez porque com o aumento da emissão e da poluição os créditos adquiridos tem seu valor majorado gerando uma expectativa de lucro futuro. A este processo mais arranjado, sofisticado é que chamo de Financeirização. A diferença que saliento é que, neste caso da Financeirização, a natureza passa a ter perspectiva meramente financeira, sem os chamados investimentos. Ou seja, o mercado não faz nenhum investimento para adquirir o lucro. O mercado de carbono se posta como mercado de rezes que compra uma fazenda com as porteiras fechadas. Compra tudo que há ali, incluindo o direito à vida e o futuro das pessoas.
Nessas condições, é impossível falarmos em bem viver. Mercado e vida são figuras incompatíveis. Logo, a Financeirização é exatamente o oposto ao bem viver.
7.      Que outros casos (tipos) de violação de direitos acontecem mais frequentemente na Amazônia?


R: Os projetos de ação direta, como os ligados às indústrias extrativas como a petroleira e as de mineração causam violações mais imediatas e visíveis porque atuam diretamente sobre as pessoas, seja na exploração da mão de obra, seja nos danos à saúde por exemplo. Estes tipos de violações são mais frequentes porque estas indústrias não tem a sofisticação das ligadas ao comércio verde. Elas se portam como coronéis e para tanto possuem seus jagunços que são os políticos locais e os poderes do Estado como um todo. Os políticos locais e o Estado, se contentam com uma pequena parte do lucro e, em troca, aceitam penalizar à exaustão o ambiente e, claro, as pessoas que aqui vivem. Neste tipo de ambiente ocorre todo tipo de violação e as denúncias quase sempre não surtem efeitos porque os poderes do Estado estão intimamente ligados às empresas e a serviço delas. Assim, a própria ação dos poderes do Estado, como o judiciário por exemplo, atua sob constantes violações de direitos humanos. Neste ponto reside a dificuldade em relação aos mecanismos de punição, se tornando a própria estrutura uma forma de violação dos direitos.
Violências e explorações, por exemplo, das crianças e adolescentes na Amazônia, contam quase sempre com a proteção de uma rede que envolve políticos locais, policiais, advogados e até setores do judiciário, além de pseudos religiosos das mais diversas denominações. Dizer que a Amazônia é uma terra sem lei não corresponde a verdade. A Amazônia é uma terra cujas leis não protegem os amazônidas e são utilizadas para justificar o roubo, o saque a espoliação a violação de direitos e finalmente o assassínio.


Agradeço as perguntas e me coloco sempre a disposição.


Lindomar Dias Padilha