quinta-feira, 11 de maio de 2023

PEGUE A PORANGA QUE MADIJÁ ABRIU OS OLHOS!

                           Primeira assembleia do povo Madjá do Rio Envira, Feijó, Acre.

 

Foto: Carlos Algusto Almeida - CIMI AO
 

Com o tema TERRITÓRIO PROTEGIDO: Soberania Alimentar e Espaço de Políticas Públicas foi realizada a I Assembleia do povo Madijá do Rio Envira, no município de Feijó, no estado do Acre nos dias 30 de abril a 02 maio. Todas as aldeias das três terras indígenas localizadas no Médio e Alto Rio Envira: T.I Jaminawa/Envira, que acolheu os representantes delegados, T.I Igarapé do Pau e T.I Kulina[1] do Rio Envira além de outras três lideranças da Aldeia Macapá, município do Envira, AM. Ao todo 150 lideranças se juntaram à comunidade da aldeia “Jaminawa” para discutir seus problemas, compartilhar experiências, encontrar caminhos, exigir direitos e respeito. Abrir os olhos!

A assembleia Madjá do Rio Envira, faz parte de um conjunto de assembleias regionais e locais que o povo Madijá vem realizando com apoio do Cimi Regional Amazônia Ocidental no intuito de refletir sobre a dramática situação de violências, assassinatos, suicídios e quase que total abandono do poder público, vivida por este povo que é um grande povo com sua história escrita com suas próprias “tintas” na história dos povos indígenas da Amazônia Ocidental e mesmo na história do Brasil. Já foram realizadas quatro assembleias locais (por terras e aldeias mais próximas) restando ainda mais duas a serem realizadas. Uma na Aldeia Macapá, município de Envira, AM e outra no Alto Rio Purus, município de Santa Rosa do Purus, AC. Ao final de todas essas assembleias, será realizada uma assembleia mais ampla e que reunirá todos os encaminhamentos, propostas e decisões tiradas nas assembleias locais.

Entretanto todos os documentos, encaminhamentos, propostas e decisões tomadas já durante a assembleia Madijá do Rio Envira, foram encaminhadas às autoridades e as reivindicações e demandas serão acompanhadas e seu cumprimento exigido. Os Madijá decidiram retomar a sua história em suas mãos e exigem respeito!

 

Caminhos e encontros:

 

Caudalosos e sinuosos são os rios que acolhem e transportam as histórias e a vida do povo Madijá e os Madijá, acolhidos, acolhem os rios e a partir deles seguem escrevendo e vivendo suas histórias. Histórias de rios, presente e graça de Tamaco e Quira, criadores do povo que é gente em si, nos rios e em tudo que a natureza, com seu sopro refrescante os presenteia e eles mesmos, como se fosse gesto de gratidão, nos presenteiam com sua singular existência. A dádiva que os criou nos é entregue por eles para que sejamos melhores e gratos.

Foi entendendo ser este navegar preciso que o povo Madijá se pós a caminho e no mesmo entendimento de navegar em solidariedade foi que o Cimi Regional Amazônia Ocidental se juntou neste navegar pelas calhas dos Rios Juruá, Envira Purus e dezenas de paranás e igarapés, revisitando “parentes” e contribuindo na construção de barcos, canoas e remos capazes de trazer de volta a dignidade e o respeito devido a este grande povo, o que também chamamos de liberdade! 

Madijá e Cimi iniciaram a navegação rumo ao município de Eirunepé, no Amazonas, descendo até o médio Juruá onde ancoraram na Terra Indígena Madijá do Médio Juruá, aldeia Eirú, no Rio Eirú. Diferente das caravelas dos invasores, os barcos Madijá traziam esperança e muita força e disposição para lutar e celebrar com os parentes. Foi a primeira assembleia local de retomada da história nas mãos. A esta se seguiram mais duas: Na Aldeia Piau, Município de Ipixuna, AM e Aruanã, no município de Envira, AM.  Todas no mesmo espírito, considerando alquimias e rituais até que...

Numa manhã chuvosa de final de inverno amazônico, uma terça feira, 25 do mês dedicado aos povos indígenas, vimos as cordas que prendiam o nosso batelão (barco feito em madeira) serem desamarradas libertando-nos para um navegar rio acima, rumo ao território do povo Madijá da Terra Indígena Jaminawa/Envira, Aldeia Jaminawa. O batelão seguiu nos conduzindo por quatro dias. Quatro dias pode parecer um tempo longo, mas nada se comparado à ansiedade por rever amigos e encontrar a verdadeira história, prestes a ser desvendada diante de nossos olhos que também precisavam ser abertos e desnuviados para enxergarmos os caminhos. Tal qual o seringueiro que “na estrada de seringa parte sempre do ponto de chegada”, assim nós, partíamos rumo ao nosso próprio encontro.

Como disse Euclides da Cunha em suas andanças por estas bandas: “Quando nos vamos pelos sertões em fora, num reconhecimento penoso, verificamos, encantados, que só podemos caminhar na terra como os sonhadores e os iluminados”. Tanto mais agora que rumamos ao paraíso Madijá feito inferno pelo colonizador.

O batelão deslizava sobre as águas caudalosas e barrentas do velho Rio Envira de “Santa Maria da Liberdade” e tantas santas e mártires, Almas do Bom Futuro! Para trás, ficava o rastro dos motores em forma de maresia que seguiam em ondas até se chocarem com as barrancas do Rio. Barrancas que outrora e ainda hoje emprestam seu nome para titular e condecorar os malfeitores e asquerosos “coronéis de barranco”, algozes ontem e hoje dos Madijá e tantos outros povos. A cidade de Feijó cada vez mais distante, assim como o Estado Brasileiro que nunca chega nesses altos rios! Logo, estávamos indo em direção aos Madijá, mas para chegarmos efetivamente ao Estado brasileiro. È preciso chegar ao ponto de onde partimos!

Que encontro! Histórico encontro com a história! Ao chegarmos à Aldeia Jaminawa começamos a abrir nossos olhos, mas foi Almir Kulina quem disse: “De hoje em diante o povo Madijá está abrindo os olhos” (Almir Kulina, cacique Madjá da Aldeia Igarapé do Anjo, T.I Kulina do Rio Envira). Os Madijá estavam abrindo os nossos olhos, ouvidos, corações e almas e achavam que nós, caboclos de tantas e incertas origens, é que estávamos os ajudando a abrirem os olhos.

Opa! Auto lá! Pegue a poranga e vamos para a estrada (de seringa) que Madijá abriu os olhos!   E todos começamos a enxergar o abandono do Estado brasileiro no território, na saúde, na educação, na soberania alimentar e nas políticas públicas. Os Madijá (e nós ainda arigós)[2] enxergaram, construíram documentos, exigiram respeito e rumaram conosco, após três dias de assembleia, em direção a Feijó, ponto de partida, Estado brasileiro.        

Durante nosso encontro começamos a abrir os olhos e entendemos que estamos sendo o tempo todo vítimas de racismo, preconceito e sofrendo com o descaso das autoridades públicas. Nós, Madijá, estamos abandonados e sofrendo muito com a violência contra nosso povo e por isso decidimos que não vamos mais aceitar que isso continue acontecendo e por isso vamos buscar nossos direitos e exigir que as autoridades e todos os nawás (que não são indígenas) nos respeitem. Vamos exigir que em cada setor nossos direitos sejam respeitados e cumpridos e que o Ministério Público acompanhe e exija junto conosco o cumprimento de todas as ações e exigências nossas porque é nosso direito. (documento final da assembleia Madijá do Rio Envira, 03,05, 2023).

Era como se os Madijá nos dissessem: Agora que vocês vieram e viram, nos ajude para que todos vejam e nossos direitos venham. Se nossos direitos não veem, vamos busca-los como quem sai na madrugada para colher o látex da seringa ou quem toma o remo e a canoa para ir se encontrar com o rio que acolhe, fornece alimento e nos conduz como quem conduz a própria história.

Como sabiamente o dito popular diz que quem conta um conto aumenta um ponto, terminou a Primeira Assembleia do povo Madjá do Rio Envira, Feijó, Acre, mas acrescentou-se mais um ponto na história de travessia do povo Madijá rumo ao alvorecer com cantorias de pássaros entoando hinos e festejando finalmente a liberdade! Quem quiser, pode chamar a este alvorecer de Bem Viver.

Equipe Cimi: Carlos, Sandra, Lindomar e Oscar

Texto:  Lindomar Padilha.

           



[1] Nome adotado corriqueiramente para se referir ao povo que se autodenomina Madijá.

[2] Nordestinos que vinham trabalhar na extração do látex da seringa, mas que não estavam acostumados a navegar pelos rios da região. Diz-se também dos desconhecedores da realidade local.