terça-feira, 19 de março de 2019

AMARTYA SEN – A IDEIA DE JUSTIÇA


Justiça e Direitos Humanos

Lindomar Dias Padilha[1]
Professora Drª Denise Salles [2]
Professor Drº Sergio Salles [3]

RESUMO
Neste trabalho de resumo expandido refletirei sobre a obra Desenvolvimento como Liberdade de Amartya Sen, publicada em 2000 pela Companhia das Letras, e baseando-me fortemente na Resenha Amartya Sen[4] – A Ideia de Justiça dos professores Alexandre Araùjo Costa[5] e Alexandre Douglas Zaidan de Carvalho[6] estudados na disciplina Justiça e Direitos Humanos, no programa de mestrado em Direito da Universidade Católica de Petrópolis – UCP. Refletiremos sobre os desafios postos pelo autor ao considerar o fato de existirem “razões de justiças plurais” e mesmo concorrentes e todas se propondo a serem imparciais. Amartya Sen traça uma oposição entre teorias morais transcendentais e comparativas que, para o autor, são as duas vertentes éticas identificadas no iluminismo moderno.


Palavras-chave: Iluminismo moderno; desenvolvimento; liberdade; justiça.


A IDEIA DE JUSTIÇA

            Pretende-se neste resumo focar não a obra mesma, completa, de Amartya Sen, até porque seria muita pretensão e nem mesmo, ou se quer, o livro Desenvolvimento como Liberdade. A intenção é partir da ideia que o autor apresenta entre teorias morais transcendentais e comparativas, que são as duas vertentes éticas que ele identifica no iluminismo moderno. Segundo o autor, as sociedades modernas, dado as suas complexidades, se apresentam com multiplicidade de interesses sociais gerando um discurso moral polifônico.
            Diante das tensões geradas por essa pluralidade, os pensadores de inspiração iluminista buscam definir critérios objetivos de justiça a partir da "dependência da argumentação racional e o apelo às exigências do debate público" (SEN. 2000, p. 19), por meio de teorias que Sen divide em duas correntes: Uma primeira que o autor chama de “institucionalismo transcendental” e uma segunda que ele chama de "comparação focada em realizações”. 
            O institucionalismo transcendental é uma corrente que influencia muito o discurso ético contemporâneo e se baseia em arranjos na busca de uma sociedade perfeita e justa. Esta corrente mete a justiça baseando-se em arquétipos de sociedades propostas em suas próprias teorias. Os principais representantes desta corrente são os contratualistas, entre eles destacam-se Hobbes, Rawls, Rousseau e até mesmo Kant, pensadores para quem é impossível fazer julgamentos morais objetivos sem definir "um único conjunto de 'princípios de justiça'" (SEN.2000, p. 235).
            Já a segunda vertente, ou corrente, apontada por Sen denominada por ele de "comparação focada em realizações" reconhece a impossibilidade de construir instituições políticas perfeitas e se concentra no estabelecimento de critérios capazes de orientar as escolhas humanas no sentido de que elas sejam mais justas que as alternativas viáveis.
Esta é a vertente a que Amartya Sen se filia, inspirando-se em autores como Smith, Condorcet, Marx e Mill, pensadores que reconhecem a inexistência de uma fundamentação racional capaz de definir um critério perfeito de justiça, levando-nos a elaborar parâmetros que permitam escolher entre os múltiplos valores e discursos éticos existentes em uma comunidade. Para todos eles, parece valer a posição de Marx de que a filosofia não deve limitar-se a interpretar a realidade, mas precisa transformá-la. Nessa medida, os debates acerca do fundamento último da validade interessam pouco a Sen, que se mostra mais preocupado em delinear uma teoria capaz a orientar decisões políticas capazes de ampliar a justiça social, especialmente no que toca à minimização das injustiças intoleráveis. (COSTA, CARVALHO, 2012, p. 307).
            Nota-se, pois, que para Sen, a filosofia deve interpretar, mas basicamente com o compromisso de transformar a realidade. Este é o ponto chave para o entendimento do conceito de Justiça. É preciso que se amplie a justiça social minimizando o que ele chama de “injustiças intoleráveis” e onde justiça e injustiça têm a ver com decisões políticas. Pelo fato de não haver uma fundamentação racional capaz de definir um critério perfeito de justiça, a justiça necessariamente é construção diária da política e compromisso da filosofia.
            Amartya Sen adota uma postura ligada ao estabelecimento de um conjunto de orientações que organize decisões plausíveis dentro de um campo determinado, mas que não têm pretensões de completude, nem poderia uma vez que considera a justiça como construção. Sendo construção, a justiça necessariamente se apresenta como o já, mas ainda não. Trata-se para ele, de maximizar a justiça possível ao tempo em que rejeita a injustiça intolerável. Uma justiça aberta a novas formas de avaliação moral decorrentes das mudanças nos valores sociais.

CONSIDERAÇÕES
           
            Amartya Sen, por meio de sua comparação focada em realizações, nos apresenta uma ideia de justiça que vai além de sua simples conceituação ou de apenas uma busca de fundamentação. Propõe uma justiça baseada na transformação da sociedade. Onde o ponto chave é a não admissão do que ele chama de injustiças intolereváveis.
            Transformar a realidade é papel da política, mas os homens, também os filósofos, de modo geral devem ter o compromisso com essa transformação. Compromisso com a transformação é compromisso com a justiça. Não há critério perfeito de justiça, ou de sociedade ideal. O compromisso é elaborar parâmetros que permitam escolher entre os múltiplos valores e discursos éticos existentes em uma comunidade aqueles que diminuam as injustiças e ampliem a justiça. Este é o apontamento principal na ideia de justiça de Amartya Sem. Se ele não propõe soluções fáceis, ao menos se compromete com a justiça e com a busca de transformações ao mesmo tempo em que nos convoca a fazê-lo também.

REFERÊNCIAS

COSTA, A. A, CARVALHO, A. D. Z. Amartya Sen – a ideia de justiça. Brasília: Universidade de Brasília, 2011.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. 2000. São Paulo: Companhia das Letras. 



[1] Mestrando em Direito, pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP, no programa Processo e Efetivação da Justiça.
[2] Professora no programa Processo e Efetivação da Justiça, do mestrado em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis - UCP
[3] Professor no programa Processo e Efetivação da Justiça, do mestrado em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis - UCP
[4] Amartya Sen, nascido em 3 de Novembro de 1933, é actualmente Professor de Filosofia e de Economia na Universidade de Harvard.
O seu nome ganhou notoriedade internacional quando em 1998 ganhou o Prémio Nobel da Economia.
Nascido em Santiniketan, na Índia, Amartya Sen estudou no Presidency College em Calcutá, Índia, e no Trinity College, em Cambridge, mantendo a cidadania indiana. Foi ainda Professor de Economia Política na Universidade de Oxford tendo antes leccionado na Universidade de Deli e na London School of Economics.
Foi Presidente honorário da OXFAM (www.oxfam.org), uma confederação internacional de referência englobando 14 organizações não-governamentais que trabalham conjuntamente em 99 países de todo o mundo de modo a encontrar respostas duradouras para minorar os problemas da pobreza e da injustiça.
Os seus livros foram traduzidos em mais de trinta línguas e incluem títulos como “Escolha Colectiva e Estado Social” (1970), “Desenvolvimento como Liberdade” (1999), “O Indiano Argumentativo” (2005) e “Identidade e Violência” (2006), entre outros. As suas investigações têm um vastíssimo espectro abrangendo aspectos das ciências económicas, da filosofia e da teoria da decisão.
Com a presente obra, o autor oferece a sua perspectiva relativamente a um tema recorrente na área das Ciências Sociais desde Platão, o da Teoria da Justiça. (MATOS, J. Igreja, Amartya Sem, A Ideia de Justiça: Uma Recensão. Revista Julgar nº 2011, Coimbra Edtora)
[5] Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Brasília, DF, Brasil). E-mail: alexandre.araujo.costa@gmail.com
[6] Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (Recife, PE, Brasil)

quarta-feira, 13 de março de 2019

ENTRE O DITO E O FEITO: DIREITOS HUMANOS E O PAPEL DA ESFERA PÚBLICA EM HANNAH ARENDT.


Lindomar Dias Padilha[1]

Resumo:
Neste artigo pretendo os conceitos de Direitos Humanos, neste caso considerando a reconstrução dos Direitos Humanos, e de esfera pública em Hannah Arendt relacionando-os entre si na tentativa de apresenta-los como, antes de tudo, espaços de vivência e consequentemente de suas realizações mesmas. Tal relação, além de aproximar os conceitos, visa demonstrar que direitos humanos só o são enquanto realizados plenamente pelo indivíduo na esfera pública, daí a razão de eu utilizar o termo “entre o dito e o feito”.

Palavras chave
Direitos Humanos; esfera pública; espaço público.


I.                   INTRODUÇÃO

O momento é muitíssimo oportuno para tratarmos neste artigo de um tema tão afeto a nós como os direitos humanos. Falamos no instante em que a Declaração Universal dos direitos Humanos completa 70 anos. De forma bastante despretensiosa trataremos, de certa forma, da afirmação desses direitos na perspectiva de Hannah Arendt. No primeiro momento falaremos um pouco dos Direitos Humanos mesmos, da forma que Hannah Arendt os concebia e em seguida, falaremos do Papel da Esfera Pública, para ao final, considerarmos “entre o dito e o feito” a relação intrínseca entre os dois conceitos e, talvez possamos dizer, mais que conceitos: a efetivação plena da vida digna vivida e revelada.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, completou 70 anos e a humanidade ainda não conseguiu afirmar de forma mais concreta e efetiva os Direitos Humanos na maioria da população mundial, especialmente entre os menos favorecidos e empobrecidos, ainda que notemos esta afirmação mais formal no campo político-jurídico, e com relativa adesão em nível global. Talvez este paradoxo seja o ponto mais evidente e contrastante na sociedade atual que é, ao mesmo tempo globalizada e profundamente excludente.
Além da Declaração Universal dos Direitos Humanos destaco e evidencio aqui o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Protocolo Facultativo Referente ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, todos de 1966; a Declaração e Programa de Ação de Viena, de 1993 e a Declaração sobre o Direito e a Responsabilidade dos Indivíduos, Grupos ou Órgãos da Sociedade de Promover e Proteger os Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais Universalmente Reconhecidos (Defensores de Direitos Humanos) de 1998 entre outros. E isso evidencia os avanços no campo formal, mas não garante efetivação prática.
Assistimos paradoxalmente a violações dos mais diversos direitos humanos e em diversos países, ainda que estas violações não se restrinjam aos países, mas são perpetradas, seja pelo poder público seja por indivíduos contra outros indivíduos ou mesmo grupos. As migrações forçadas ainda são um flagelo onde os direitos humanos são quase que inteiramente negligenciados ou negados. Tais violações vão desde a discriminação por raça, etnia, credo, opinião política e orientação sexual até a negação do direito à paz, à moradia, à educação, à saúde, ao trabalho e ao meio ambiente saudável.
Neste contexto o pensamento de Hanna Arendt (1906 – 1975)[2] se mostra muitíssimo atual e com a mesma vibração inicial. Por esta razão resolvemos tratar aqui o tema dos Direitos Humanos e o papel da Esfera Pública em Hannah Arendt. Para apresentar de forma mais coerente e talvez didática, o presente artigo se propõe a apresentar no primeiro capítulo o pensamento e as contribuições de Hannah Arendt no que diz respeito aos direitos humanos; no segundo capítulo trataremos do papel da esfera pública para depois apresentar pontos de intercessão entre ambos construindo uma espécie de ponte entre o dito e o feito.

II.                HANNAH ERENDT E OS DIREITOS HUMANOS

Na obra As Origens do Totalitarismo (1951), em seu capítulo quinto que Hannah Arendt escreve um ensaio O declínio do Estado-nação e o fim dos Direitos do Homem. É neste capítulo que estão presentes suas críticas aos direitos humanos. A crítica de Hannah Arendt aos direitos humanos tem como foco central a questão do seu caráter universalista, que é uma controvérsia até hoje entre os estudiosos do tema.
Arendt não utiliza o tema dos direitos humanos, em nenhuma de suas obras, como ponto principal, e não existe nos livros da autora um desenvolvimento sistemático no que diz respeito às questões dos direitos humanos. Entretanto considerará o tema em suas críticas e denúncias às violações perpetradas pelos estados, notadamente os estados totalitários, o que não significa que ela não fez tais denúncias também aos estados tidos como democráticos.
O ponto principal da crítica de Arendt aos direitos humanos era justamente sua suposta universalidade o que os tornaria “retóricos e vazios”. Importa como nos lembra (KANT, 2008, p. 81 apud ALMEIDA, 2010, p. 311). “... a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade”. Ela se vale, dentre outros, dos exemplos dos refugiados por não terem cidadania. Aqui colocam-se em pontos distintos, se não opostos, os dois conceitos: humanidade e cidadania.
O que era sem precedentes não era a perda do lar, mas a impossibilidade de encontrar um novo lar. De súbito revelou-se não existir lugar algum na terra aonde os emigrantes pudessem se dirigir sem as mais severas restrições, nenhum país ao qual pudessem ser assimilados, nenhum território em que pudessem fundar uma nova comunidade própria. Além do mais, isso quase nada tinha a ver com qualquer problema material de superpopulação, pois não era um problema de espaço ou de demografia. Era um problema de organização política. Ninguém se apercebia de que a humanidade, concebida durante tanto tempo à imagem de uma família de nações, havia alcançado o estágio em que a pessoa expulsa de uma dessas comunidades rigidamente organizadas e fechadas via-se expulsa de toda a família das nações. (ARENDT, 2009, p. 327).
Fica evidenciado que a humanidade, pensada no conjunto dos seres humanos, e concebida à imagem de uma família das nações, era substituída pela cidadania ou não tendo esta última, perdia sua eficácia na prática. Pertencer a uma nação é condição sem a qual a humanidade torna-se impossível. Sem cidadania, para ela, perdemos o nosso “direito a ter direitos”. A condição dos apátridas, de pessoas não cobertas por qualquer ordenamento jurídico, sem quaisquer direitos, indica que o próprio estado-nação se mostrou incapaz de efetivar o princípio da igualdade e humanidade. Estes apátridas não são mais sujeitos de direitos, e sequer são reconhecidos pela lei. Simplesmente, não existem para a comunidade político-jurídica, para as nações.
O ponto de desequilíbrio entre sujeito e sujeito de direitos, na visão da autora, assenta-se sobre o pilar da suposta universalidade transcendental do que seria “humanidade”, humano. Também aqui Arendt aponta e evidencia que de forma paradoxal, na medida em que a pessoa se torna um “ser humano geral”, é exatamente nesta proporção que perde seus direitos. Como se ao se universalizar, o ser humano deixa de existir efetivamente em seu mundo próprio.
O paradoxo da perda dos direitos humanos é que essa perda coincide com o instante em que a pessoa se torna um ser humano em geral – sem uma profissão, sem uma cidadania, sem uma opinião, sem uma ação pela qual se identifique e se especifique – e diferente em geral, representando nada além da sua individualidade absoluta e singular, que, privada da expressão e da ação sobre um mundo comum, perde todo o seu significado.” (ARENDT, 1989.p. 336).
Longe de ser meramente destrutiva, a crítica de Hannah Arendt aos direitos humanos possui um caráter de reconstrução, em busca não dos fundamentos apenas, mas das garantias mesmas. Garantias capazes de preservar sua integridade física e política porque são portadores de dignidade humana[3], ao que chama de “direito a ter direitos”. Se fosse preciso postular um fundamento para os direitos humanos, este fundamento seria o de que todos os seres humanos devem ter a sua dignidade respeitada e preservada. Para ela os regimes autoritários, e ela cita especificamente o nazismo e o stalinismo, retiravam de suas vítimas justamente este direito a ter direitos. Perder direitos é perder o significado de seu próprio mundo. Pensar a humanidade numa unidade, justamente por ser diversa, é a base do paradigma expresso por pereira:
A diversidade cultural, apontada como uma barreira para que se acordasse um fundamento para os direitos humanos é também utilizada para justificar sua possível universalidade. Respeitando as diferentes culturas existentes, percebemos que após os horrores dos campos de concentração, onde milhões de pessoas foram assassinadas, alguns direitos deveriam ser resguardados a todos os povos. Os direitos humanos serviriam para que fosse possível garantir o nosso direito a ter direitos, tão solicitado por Arendt. (PEREIRA, 2015, p. 16)
Em sua crítica aos direitos humanos, Arendt no fundo rejeita tais direitos como abstrações universais para reconstrui-los em sua efetivação, em sua concretude. Este sujeito aqui, concreto e para além de sua condição politica, é o sujeito de direitos. O sujeito de direitos é o sujeito de sua dignidade humana que se manifesta e se constrói ao publicizar-se.

III.             O PAPEL DA ESFERA PÚBLICA

Evidentemente não me é possível fazer um histórico das teorias políticas, todas, capazes de demonstrarem as transformações desde as origens do que Arendt chama de “fazer política”, desde a polis grega, até os momentos atuais. É preciso, no entanto, apontar algumas questões que resgatem aquela ideia da diferença, da pluralidade no fazer política (GONSALVES, 2012, p. 2), que para a autora perdeu seu sentido conjuntamente com a destruição da ideia de polis.
O fazer política tem a ver com construir espaços públicos e a “esfera pública”. Por isso a política deveria se basear na pluralidade para organizar e regular o convívio destes diferentes e não dos iguais, superando assim, a ideia de que o espaço público deva ser harmônico. Falamos de uma realidade de cidadãos diferentes e ao mesmo tempo iguais onde o sujeito expressa sua singularidade e ao mesmo tempo, sua condição de ser igual a outro cidadão, seu direito de ser, de agir. A política então deveria ser um agir no meio, entre os homens. Retornando a ideia de polis, no sentido ainda grego Arendt diz:

A isonomia não significa que todos são iguais perante a lei nem que a lei seja igual para todos, mas sim que todos têm o mesmo direito à atividade política; e essa atividade na pólis era de preferência uma atividade de conversa mútua (ARENDT, 1999, p.49).
Conversa mútua é relacional, dialogal, onde ambos crescem ou pelo menos se transformam, constroem consensos e dissensos, mas o fazem sempre no espaço do realizar-se O espaço da política, desde os tempos da polis grega, é o espaço da conversa, do revelar-se ao outro e deixar o outro revelar-se no sentido quase que inaugural, estrear-se para o mundo e no mundo.
Neste sentido, o espaço da política é o espaço da liberdade, mesmo que um e outro não se igualem conceitualmente, onde a “liberdade é marcada pelo agir e pelo discurso do agir”. (GONÇALVES, 2012, p. 3). A palavra, o comunicar-se, tem a forma do tornar-se. O ser humano, neste sentido, torna-se no comunicar-se e, comunicando a ou no agir comunicante, transforma e se transforma. A política enquanto liberdade de ser passa a ter o sentido de revelação do humano no homem e do homem no humano. Ou ainda:
Tudo que os homens fazem, sabem ou experimentam só tem sentido na medida em que pode ser discutido. Haverá talvez verdades que ficam além da linguagem e que podem ser de grande relevância para o homem no singular, isto é, para o homem que, seja o que for, não é um ser político. Mas os homens no plural, isto é, os homens que vivem e se movem e agem neste mundo, só podem experimentar o significado das coisas por poderem falar e ser inteligíveis entre si e consigo mesmos (ARENDT apud GONÇALVES, 2012, p. 3).
Claro que o não revelado não significa não existente, mas seu sentido político é nenhum posto que não é manifestado, revelado. O sentido da política, mesmo que enquanto liberdade humana e, portanto, dos indivíduos, é o agir no mundo, remetendo-nos ao “mundo da vida”[4]. Agir comunicante. O pensamento de Habermas sobre o agir comunicativo pode nos revelar elementos racionais capazes de iluminar nossa razão e facilmente nos favorecer a leitura sobre a política como ato de liberdade dialogal em Arend.
A introdução do agir comunicativo em contextos do mundo da vida e a regulamentação do comportamento através de instituições originárias podem explicar como é possível a integração social em grupos pequenos e relativamente indiferenciados, na base improvável de processos de entendimento em geral. É certo que os espaços para o risco do dissenso embutido em tomadas de posição em termos de sim/não em relação a pretensões de validade criticáveis crescem no decorrer da evolução social. Quanto maior for a complexidade da sociedade e quanto mais se ampliar a perspectiva restringida etnocentricamente, tanto maior será a pluralização de formas de vida, as quais inibem as zonas de sobreposição ou de convergência de convicções que se encontram na base do mundo da vida […] Este esboço é suficiente para levantar o problema típico de sociedades modernas: como estabilizar, na perspectiva própria dos atores, a validade de uma ordem social, na qual ações comunicativas tornam-se autônomas e claramente distintas de interações estratégicas? (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 44-45)
Habermas nos ilumina pelo caráter racional e comunicante do “mundo da vida” e o agir comunicativo como espaço da política e do direito enquanto ordenamento da esfera pública e o espaço público como espaço de comunicação, realização do sujeito enquanto ato de revelar-se. Onde o ordenamento e a política mesma não se confunde com permanente harmonia entre os homens, mas, até ao contrário, valoriza e compreende  a construção de consensos na mesma medida que a construção dos dissensos porque falamos em pretensões de validade criticáveis. Constroem-se consensos, criticam-se tais consensos, constroem-se dissensos igualmente criticáveis, numa eterna construção do agir no mundo e no viver no mundo.
Construir e reconstruir, consensos ou não, no encontro com o outro, com o meu mundo e o mundo do outro em um mundo comum a ambos, talvez seja efetivamente a base para a realização do que seriam “direitos humanos”, enquanto “o direito a ter direitos” de Hannah Arendt.

IV.              CONSIDERAÇÕES FINAIS: Entre o dito e o feito.

Abstive-me propositalmente de tecer maiores comentários e análises sobre a violência do mundo do fazer política, tal qual se expressa Arendt, por levar em conta basicamente os dois aspectos centrais propostos neste artigo: Os Direitos Humanos, enquanto ideia que passa do particular para o universal e retorna ao particular quase que abstratamente, o que seria o “dito” na minha compreensão, e o “feito” que seria o revelar-se do próprio homem que ao revelar-se revela a própria humanidade.
Mesmo assim, ressalto que a autora apresenta diversas questões relevantes pautadas em sua própria experiência de vida vivida onde, segundo ela mesma, “é bastante natural entendermos o agir político nas categorias do forçar e do ser-forçado, do dominar e do ser dominado (ARENDT, 1999, p. 133). A atualidade do pensamento de Hannah Arendt, sua gigantesca importância para o pensamento no campo da filosofia, da sociologia, da política e do direito, nos oferece uma vasta gama de possibilidades reflexivas. Reconhecendo isso e reconhecendo a impossibilidade de abordar temas de tamanha complexidade em um artigo, optei naturalmente por tratar especificamente do que, a meu ver, dá “liga” entre os direitos humanos, enquanto negação de uma abstração metafísica, e o próprio realizar-se do homem.
O propósito não é negar a violência do estado, tal qual concebeu em sua teoria Arendt, mas antes, mesmo a admitindo permanecer com a fé nos seres humanos, capazes de fazer coisas horríveis, mas também capazes de se entenderem e se completarem enquanto seres do diálogo. Preferi ficar com a autora quando ela mesma diz: “Enquanto os homens puderem agir, eles serão capazes de fazer o improvável e o incalculável” (ARENDT, 1999, p.11). O que significa dizer que existem sempre infinitos caminhos para se romper com a disciplina e tentar resgatar o que falta na dimensão do realizar-se do homem na esfera pública com suas singularidades.
Quando nos lançamos na aventura de vivermos o mais humano em nós não podemos ter medo do que possa ser novo. O novo é sempre um realizar-se de um grande mistério que é a vida. Por isso mesmo eu disse que entre o “dito” e o “feito” é que se encontra o realizar-se, o revelar-se, o tornar-se novo, novo no acreditar, novo no experienciar, novo no dialogar e novo no fazer-se novo com o outro.
Entre o desejável, sonhado e realizado, entre o pensado, abstraído e a concretude da experiência da vida vivida, como no mundo da vida, encontra-se o sujeito de direitos onde um direito básico à sua existência é justamente o de revelar-se ao outro. Este revelar-se é quase um passar de potência a ato[5], processo que em Annah Arendt se dá no comunicar-se, no agir comunicativo. Comunicar-se é transformar, pelo agir, o mundo. Ou ainda agir é o próprio ato de se comunicar dialeticamente relacional com o outro. Onde entre o “eu” e o “outro” está o mistério da humanidade pronto para ser revelado.
É preciso retomar a ideia de a liberdade da esfera pública e do fazer política, onde para Arendt, “livre agir é agir em público, e público é o espaço original do político” (ARENDT, 1999, p. 11). Em outras palavras, o espaço público é por excelência o espaço do fazer político e da esfera pública, da construção daquilo que é comum, sendo que esse “comum” não é necessariamente harmônico. Aliás, quase nunca o é. É, pois neste espaço público que atuam as normas, os controles, o estado e o direito, que possibilita a violência, o impor e dominar. Mas é também o espaço do “ser” humano, da revelação e do nascimento para o mundo.
Entre o eu solitário e disforme e o mundo da norma e da violência, estão as possibilidades do sujeito que com sua dignidade firmada na palavra e no agir comunicativo contribuirá na construção do mundo e da humanidade. Onde a humanidade não está pronta, longe da vida em um mundo de abstrações, que sim, são lindas e necessárias também ao regozijo humano, mas que precisam se “atualizar” de tal forma que possamos ver em cada ser a própria humanidade e nesta humanidade contemplar cada ser que na diferença se iguala.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A mentira na política: considerações sobre os Documentos do
Pentágono. In: Crises da república, São Paulo: Perspectiva, 2004 p.9-48.

_______, Hannah. A Condição Humana. Florence Universitária, 2007.

_______. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

AGUIAR, Odilio Alves (Org.). Origens do totalitarismo 50 anos depois. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001

GONÇALVES, A. P. C, O Conceito de Esfera Pública em Hannah Arendt. Universidade Federal de São Carlos, SP, 2012.

HABERMAS,J. Direito e democracia. Entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

PEREIRA, A.P.S. Critica aos Direitos Humanos e ao Direito a ter Direitos. Perspectiva Filosófica, Vol. 42, nº 1, 2015.

_______, A.P.S. A crítica de Hannah Arendt à universalidade vazia dos Direitos
Humanos:
o caso do “refugo da terra”. João Pessoa: UFPB, 2014.

THEORETICO. Anotações de filosofia in: (https://theoretico.wordpress.com, consultado em 05/12/2018).




[1] Mestrando em Direito, pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP, no programa Processo e Efetivação da Justiça.
[2] Hannah Arendt (nascida Johanna Arendt; Linden, Alemanha14 de outubro de 1906 – Nova IorqueEstados Unidos4 de dezembro de 1975) foi uma filósofa política alemã de origem judaica, uma das mais influentes do século XX.
A privação de direitos e perseguição de pessoas de origem judaica ocorrida na Alemanha a partir de 1933, assim como o seu breve encarceramento nesse mesmo ano, fizeram-na decidir emigrar. O regime nazista retirou-lhe a nacionalidade em 1937, o que a tornou apátrida até conseguir a nacionalidade norte-americana em 1951. Trabalhou, entre outras atividades, como jornalista e professora universitária e publicou obras importantes sobre filosofia política. Contudo, recusava ser classificada como "filósofa" e também se distanciava do termo "filosofia política"; preferia que suas publicações fossem classificadas dentro da "teoria política".
Arendt defendia um conceito de "pluralismo" no âmbito político. Graças ao pluralismo, o potencial de uma liberdade e igualdade política seria gerado entre as pessoas. Importante é a perspectiva da inclusão do Outro. Em acordos políticos, convênios e leis, devem trabalhar em níveis práticos pessoas adequadas e dispostas. Como frutos desses pensamentos, Arendt se situava de forma crítica ante a democracia representativa e preferia um sistema de conselhos ou formas de democracia direta. Entretanto, ela continua sendo estudada como filósofa, em grande parte devido a suas discussões críticas de filósofos como SócratesPlatãoAristótelesImmanuel KantMartin Heidegger e Karl Jaspers, além de representantes importantes da filosofia moderna como Maquiavel e Montesquieu. Justamente graças ao seu pensamento independente, a teoria do totalitarismo (Theorie der totalen Herrschaft), seus trabalhos sobre filosofia existencial e sua reivindicação da discussão política livre, Arendt tem um papel central nos debates contemporâneos.

[3] O primeiro filósofo a escrever sistematicamente sobre o tema da dignidade humana foi o italiano Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494) em sua famosa Horatio de hominis dignitate (1480) ele já colocava a base do conceito de dignidade humana estaria relacionada ao livre-arbítrio humano, que seria desenvolvido posteriormente por Kant e toda uma tradição de filósofos políticos que o procedeu.
[4]              Foi o filósofo Edmund Husserl que, segundo MIRANDA (2009, p. 102, apud,  Pizzi,p.29), primeiro adotou o termo “mundo da Vida” em contraposição ao positivismo sociológico dos sec. XIX e início do XX. Nota-se em Husserl que o Mundo da Vida é uma tentativa de compreender as situações que norteiam a conduta humana que rompe com uma postura, digamos, natural. Assim, o mundo da vida em Husserl está diretamente ligado à cultura, ao mundo circunstancial e, digamos, independente da ciência ou pré-científica.

[5] Para Aristóteles, a ocorrência de eventos na natureza não se dá de forma desordenada. É possível observar que alguns são antecedentes (isto é, são a causa eficiente) de outros eventos que se seguem, existindo assim uma espécie de ligação que os vinculam entre si. Assim, na filosofia aristotélica a “causa eficiente” é aquela que transforma “potência” (aquilo que um ente pode vir a ser) em “ato” (o que um ente realmente é em momento).
É certo que os entes não podem vir a ser qualquer coisa – de uma semente de maça não pode surgir uma laranjeira – pois existem limitações intrínsecas a sua própria natureza.
Por sua vez, o “ato” é tal como se apresenta o ente presentemente. É uma potência que se realizou – as demais potências que o ente eventualmente possua permanecem apenas como possibilidades.
Ainda é necessário frisar que a realização em ato de alguma potencialidade (a atualização do ente) pode não se concretizar. O broto de uma planta qualquer pode ser destruído antes que ela se realize como “árvore”. (THEORETICO. Anotações de filosofia in: https://theoretico.wordpress.com, consultado em 05/12/2018)