segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Análise: a política do Governo Dilma para os povos indígenas e quilombolas condicionada a um perigoso pacto nacional com os ruralistas

Conjuntura Indigenista e Quilombola - 2013

Diferentes analistas sociais vêm discutindo as formas como o neoliberalismo se estabelece e se enraíza nas práticas e escolhas de governos, na atualidade. Um destes analistas é Maurizio Lazzarato, um sociólogo interessado em entender como se estabelecem e se naturalizam certas premissas do regime de acumulação capitalista, assumidas por governos, no presente, como se fossem incontestáveis.

Lazzarato afirma que o neoliberalismo provoca profundas transformações na maneira de compreender e de gerir os direitos coletivos e as garantias individuais. O foco de governo recai sobre as finanças, e estas são, para o sociólogo, “máquinas de guerra” que transformam os direitos sociais em dívidas a serem contraídas pelo cidadão, convertido em consumidor e em usuário de serviços privados. O custo tem sido a redução do salário, a precarização das condições de vida, a responsabilização dos governados pelo provimento de saúde, educação, moradia, segurança (em âmbito privado). O governo estimula a expansão do crédito ao consumo, para a inclusão no mundo dos consumidores de serviços e de produtos. “Ou seja, antes de se garantir o direito à moradia, asseguram-se financiamentos imobiliários; antes de se efetivar a mutualização dos riscos sociais (riscos por desemprego, adoecimento, aposentadoria etc.), investem-se nos seguros individuais”.

O crescimento econômico neoliberal dá o tom e a pauta dos investimentos, determinando quais são os “diferenciais de ganho e de poder”, ou seja, quais são os setores que deverão ser estimulados, que deverão receber incrementos financeiros e incentivos para prosperarem. E se alguns setores são superestimulados, obviamente que outros serão atrofiados.

Lazzarato afirma que a aposta insensata do neoliberalismo, na qual os governantes acreditam, é a possibilidade de redistribuição das riquezas (ou do bem estar decorrente do acesso a recursos) sem redistribuição dos recursos (ou seja, sem prejuízo dos “diferenciais econômicos”). Nesta lógica, a suposta redistribuição das riquezas se daria pela inserção das pessoas no consumo. O endividamento é a engrenagem para transformar as pessoas comuns em proprietários (de casas populares, de carros populares, de eletrodomésticos etc.).

No caso dos governos brasileiros dos últimos anos, essa opção pela “inclusão social” através do endividamento é muito evidente: pipocaram linhas de crédito para a aquisição de casa própria (Minha Casa Minha Vida), para investir no mobiliário e na aquisição de eletrodomésticos; linhas de crédito para pequenas empresas, para agricultura familiar. Apesar de parecer uma opção razoável para que os pobres possam finalmente sair da condição de inquilinos ou de empregados para a de proprietários, o fim e ao cabo, tais opções políticas se fundamentam sobre o endividamento da população (e também aquecem a economia ao favorecer a expansão de setores da construção civil, por exemplo).

Para Lazzarato, a tentativa de redistribuição da riqueza sem efetiva redistribuição dos recursos constitui a esquizofrenia do modelo neoliberal. Inspirando-me nas análises deste sociólogo, busco discutir, nesta breve análise de conjuntura, algumas posições assumidas pelo governo Dilma e algumas escolhas - políticas e econômicas feitas em nome da governabilidade – que considero serem marcas da esquizofrenia apontada por Lazzarato e que, em meu ponto de vista, é também o componente “perigoso” que não pode ser ignorado pelos movimentos sociais.

Tomando como referência as deliberações do governo federal no que se refere aos direitos indígenas e quilombolas chegamos à conclusão de que elas estão alicerçadas em perigosos acordos eleitoreiros, em conchavos políticos, jogos de interesse e em concessões de privilégios a grupos econômicos “diferenciais” que pretendem extrair das terras indígenas e da natureza as riquezas potencialmente existentes.

Nas relações do governo com seus “aliados”, chama a atenção a perigosa subserviência aos ruralistas (setor agropecuário), que claramente integram os “diferenciais de ganho e de poder” indicados por Lazzarato, e que assim recebem também tratamento diferenciado. Este segmento vem revelando, ao longo da história, uma face cruelmente depredadora dos recursos da natureza (destruição de florestas e de matas ciliares, poluição de mananciais de água, por exemplo) e, em muitos casos, se vale da exploração da mão de obra humana (submetendo trabalhadores a condições análogas à escravidão). É necessário lembrar que muitos desses ruralistas, “proprietários de terras”, adquiriram suas posses através da força bruta, expulsando pessoas das terras, ameaçando e assassinando lideranças, comprando terras a preços irrisórios, promovendo a grilagem ou recebendo, a preço simbólico, terras do poder público, como é o caso (noticiado pela imprensa) das “propriedades” de familiares da senadora Katia Abreu em Tocantins (e não ao acaso, ela é também presidente da CNA - Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária).

Como se percebe, o governo brasileiro vem pautando sua política, por um lado, no favorecimento dos ruralistas, e por outro lado, na arrogância, prepotência e intolerância com os povos indígenas e quilombolas, especialmente nas discussões e na condução dos programas, projetos ou políticas que afetam a vida, as terras, o meio ambiente e o futuro dessas populações. Condizente com essa opção pelo favorecimento de setores “diferenciais”, o governo inventa instâncias de representação popular que ele mesmo não leva em conta e, assim, não escuta a opinião dos povos e seus líderes e não aceita posicionamentos que sejam contrários aos planos desenvolvimentistas.

Como efeito, tem-se a intensificação das violências contra os povos indígenas, bem como a perseguição e a tentativa de desqualificar publicamente os que se opõem às pretensões governistas (um exemplo dessa postura é a nota divulgada pela Secretaria Geral da Presidência da República contra as lideranças do Povo Munduruku). Os preceitos constitucionais e as normas e tratados internacionais, especialmente no que se refere à consulta prévia, livre e informada das populações indígenas e quilombolas são abertamente desrespeitadas em nome de algo que se apregoa como sendo de “interesse comum”, mas que não gera o “bem comum” e sim o bem de apenas alguns setores do mercado e da economia - empreiteiras, mineradoras, usineiros e empresas de energia hidráulica e do agronegócio.

Esses setores, coordenados pelos ruralistas, promoveram ao longo do ano de 2013 um “levante” contra os povos indígenas, quilombolas e contra seus direitos fundamentais à vida e à terra. As investidas se deram no âmbito político, junto aos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, bem como através da veiculação intensiva de notícias na mídia que provocam uma inquietação social. Assim, os povos indígenas vão gradativamente se transformando em um “problema”, um entrave, o que potencializa a violência simbólica, estratégia que também se alia concretamente a ações violentas contra comunidades e suas lideranças (a exemplo do que ocorre no município de Guaíra, no Paraná, contra os Guarani Ñandewa, ou em Mato Grosso do Sul, quando homens encapuzados incendiaram um ônibus escolar que realizava o transporte de estudantes Terena).

No Poder Legislativo, os referidos setores “diferenciais” tentaram impor projetos de lei e emendas à Constituição Federal com o intento de aniquilar com os direitos dos indígenas e quilombolas e de romper com qualquer perspectiva de que terras venham a ser demarcadas no Brasil. Aliás, no entendimento destes setores, mesmo aquelas terras já demarcadas precisariam ser revogadas.

Dentre as perigosas propostas que tramitam neste momento, elenco aqui o Projeto de Emenda à Constituição de número 215 (PEC 215/2000) e o Projeto de Lei Complementar 227 (PLP 227/2012). A PEC 215/2000 pretende transferir a competência pelas demarcações das terras indígenas, quilombolas e definição de áreas ambientais, que são atribuições constitucionais do Poder Executivo, para o Legislativo. E o PLP 227/2012 visa modificar o Parágrafo 6 do Art. 231 da Constituição Federal para assegurar que, em havendo qualquer tipo de interesse econômico sobre uma terra indígena, esta será caracterizada como de relevante interesse público. Assim, os povos indígenas perdem o direito de usufruto exclusivo e as terras podem se tornar disponíveis ao agronegócio, às mineradoras, madeireiras e outros interessados. Lamentavelmente no final do ano o presidente da Câmara dos Deputados (Henrique Eduardo Alves – PMDB), apesar da oposição dos povos indígenas, quilombolas e outros segmentos da sociedade, instalou a Comissão Especial para aprovar a PEC 215/2000, constituída com mais de 70% dos parlamentares ruralistas ou comprometidos com esses interesses.

Junto ao Poder Judiciário proliferam ações contra as demarcações das terras. Em muitas decisões se percebe que juízes, desembargadores e ministros procuram as brechas das leis para nelas estabelecer interpretações que fundamentem uma decisão contrária aos direitos indígenas e, com isso, impor, também através do Judiciário, a paralisação de demarcações de terras. Há, sem duvida, ações premeditadas dos setores “diferenciais” da economia, sobre juízes e desembargadores, com o intuito de convencê-los a proferirem decisões que favoreçam explicitamente os grupos que exploram as terras indígenas e suas riquezas ambientais e minerais. Há, por outro lado, casos de decisões exemplares, nas quais o magistrado se debruça sobre a causa em litígio e a analisa, avalia e decide tendo como referência os direitos constitucionais, a legislação infraconstitucional e o direito à vida daqueles que são, muitas vezes, relegados ao esquecimento no âmbito das decisões judiciais. Foram, ao longo do ano, proferidas decisões que permitem observar quando há parcialidade ou imparcialidade nas decisões. Um exemplo dessa constatação foi a decisão da Juíza da 2ª Vara Federal Janete Lima Miguel de Campo Grande/MS, quando proferiu decisão contra a realização do chamado “Leilão da Resistência” (leilão criminoso promovido pelos ruralistas com o objetivo de arrecadar dinheiro e com ele contratar milícias para agirem contra as lutas indígenas). Para fundamentar sua decisão, a juíza enfatizou que, entre o “direito de propriedade e o direito a vida ela opta pelo direito a vida”. Os representantes dos fazendeiros, dentre eles parlamentares, entraram com pedido de suspeição da juíza e impugnaram sua decisão.

No âmbito do Poder Executivo, os ruralistas impuseram que todas as demarcações de terras fossem paralisadas. O anúncio foi dado na Tribuna do Senado pela senadora, amiga da presidente Dilma, Kátia Abreu e prontamente precedido de ordem oficial da ministra-Chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffman, determinando que a Funai e o Ministério da Justiça suspendessem de imediato todas as demarcações, especialmente no Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul.

A ministra Gleisi chegou ao cúmulo de dar à EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) a incumbência de elaboração de laudos técnicos para se contrapor aos estudos de identificação e delimitação de terras realizados pela Funai e, para além disso, pretendia torná-la a responsável pela elaboração dos estudos técnicos das terras reivindicadas pelos povos, como sendo de ocupação tradicional. A proposição era tão descabida que mereceu questionamento público, inclusive da própria EMBRAPA. Ainda assim, a ordem de paralisar as demarcações acabou sendo rigorosamente cumprida pela Funai e pelo Ministério da Justiça.

Desde o mês de março/2013 nenhuma terra indígena foi demarcada e, além disso, medidas foram adotadas no sentido de rever estudos realizados pela Funai. Mais grave ainda, é a atitude do próprio ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, de pressionar o órgão indigenista para que áreas declaradas (através de portarias assinadas por ele) fossem revistas, como é o caso da terra Indígena Mato Preto no Rio Grande do Sul (imagine-se, aqui, se um arquiteto autorizasse a construção de uma ponte, baseando-se nos alicerces mais sólidos de seu campo de ação e, depois da construção de metade da obra com recursos públicos, decidisse destruir o que já foi construído e refazer por outro caminho- seria, sem dúvida, acusado de promover o mau uso de recursos públicos). Os procedimentos de demarcação da área indígena Mato Preto se respaldaram nos alicerces constitucionais, os mais sólidos de que dispomos, por que então deveriam ser revistos? O que justificaria esse desperdício de recursos públicos para fazer novamente o que já foi feito?

O pacto do governo federal com os ruralistas (e que se estendeu aos demais setores que pretendem explorar terras indígenas) criou raízes e se alastrou pelo país. Governos estaduais (como de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul) adotaram estratégias políticas regionais para exercer pressão contra as ações demarcatórias e ao mesmo tempo promover, junto a opinião pública, uma espécie de linchamento da Funai e seus servidores, caracterizando-os como manipuladores, fraudulentos, parciais, fomentadores e promotores de conflitos entre “índios e produtores”. Entidades indigenistas e lideranças indígenas foram igualmente caluniadas pelos representantes dos governos estaduais e os defensores do agronegócio a exemplo da Famasul, Farsul, Fetraf-Sul e CNA.

Lamentavelmente, em estados como o Rio Grande do Sul os governos, seduzidos pelo “poder” aparentemente consolidado pelo pacto com as elites agrárias, atuam perigosamente e alimentam o conflito entre agricultores e comunidades indígenas. Os governantes movidos pela politicagem perdem o censo de justiça e a noção de que são eles, como representantes do Estado, aqueles que devem mediar e buscar soluções aos problemas criados pelo próprio Estado em épocas passadas.

As medidas paliativas, que compõem a meu ver a esquizofrenia apontada pelo sociólogo Maurizio Lazzarato de tentar distribuir a riqueza sem desmontar as estruturas do enriquecimento, sugerem a permuta do direito à demarcação de terras pela compra de pequenas áreas (a exemplo do que ocorre no Rio Grande do Sul) além de prolongar os conflitos, são ilegais e imorais. Os direitos dos povos indígenas são transformados em serviços quando os governantes propõem a compra de porções de terra em locais menos conflituosos. É necessário ressaltar que o direito a demarcação das terras não cessará em função da compra de pequenas áreas (muitas delas degradadas); que não desaparecerão os povos, suas comunidades e as lutas pelo direito que possuem; que não é possível substituir garantias constitucionais através de perigosas compensações.

O resultado desta aliança federativa (pacto) com o ruralismo não obteve êxito pleno em função dos protestos e mobilizações dos povos indígenas e seus aliados. Caso contrário o governo teria, como anunciou por dezenas de vezes, alterado as regras do procedimento de demarcação de terras (regulados pelo Decreto 1775/1996 e Portaria 14/1996) e ao mesmo tempo vincularia as 19 condicionantes estabelecidas pelo STF no julgamento do “caso Raposa Serra do Sol” a todas as demarcações de terras, como ficara explicitado na edição da Portaria 303/2012 da AGU (os efeitos desta portaria foram suspensos depois da pressão do movimento indígena). O STF, no mês de outubro, julgou os embargos de declaração relativos à decisão de Raposa Serra do Sol (Petição - PET 3388) e determinou que as 19 condicionantes estabelecidas no julgamento da ação pela manutenção da demarcação da Terra Raposa Serra do Sol em área contínua não são vinculantes a outros casos, portanto a outras demarcações de terras.

Perigosas têm sido as demais políticas do governo federal para com os povos indígenas (saúde, educação, ambiental e de sustentabilidade), fundamentalmente pela falta de articulação entre os planejamentos de cada ministério, os serviços a serem prestados, as ações desenvolvidas e a execução orçamentária. Não há no governo federal um ministério, um órgão ou secretaria que congregue a responsabilidade pela articulação da política indigenista. Esta deveria ser uma função da Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI) que acabou sendo descaracterizada pelo governo na medida em que não acata as propostas oriundas da Comissão, bem como não remete a ela as demandas e propostas que o governo tem para os povos indígenas.

No caso da política de saúde indígena o ano que passou foi conturbado. As atenções dos gestores e conveniados estavam focadas em responder denúncias de mau uso dos recursos; dar explicações acerca dos graves problemas no âmbito da assistência; acompanhar as etapas locais e distritais da V Conferência Nacional de Saúde Indígena. Nelas eles tinham que intervir para manter o controle na etapa nacional, e com isso garantir que as propostas que lhes assegurassem a manutenção das práticas adotadas nos últimos dois anos – uma mescla de ações e serviços realizados entre gestores e terceiros sem efetivamente garantir um modelo de atenção com participação efetiva dos povos indígenas -.

A legislação que cria o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (Lei Arouca, 9836/99) determina que o Ministério da Saúde é quem deve assumir a responsabilidade pela gestão da política de saúde para os povos indígenas, e esta premissa se fortalece com uma decisão judicial contra a política de terceirização dos serviços em saúde. Ainda assim, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) vem mantendo convênios para as ações complementares em saúde, por exemplo, com a Missão Caiuá, com o Instituto de Medicina Integral Fernando Figueira (IMIPI) e com a Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM). Com conveniadas, ou sem elas a ineficiência na atenção aos povos indígenas é inegável. Em âmbito nacional, povos e comunidades reclamam por não haver assistência adequada nas aldeias, nem profissionais, medicamentos e infraestrutura adequada. O mais grave, no que concerne as ações em saúde, é que a destinação de recursos tem sido expressivamente maior do que a execução orçamentária, aspecto que se verifica em relação a rubricas extremamente relevantes, tais como a prevenção de doenças e as melhorias relativas ao saneamento básico. As políticas assistenciais são, em síntese, reveladoras do tipo de tratamento dispensado pelo governo aos povos indígenas.

Embora exista um consenso, hoje, sobre a relevância das diferentes culturas e identidades e sobre a necessidade de respeito a todas as maneiras de ser e pensar, no caso dos povos indígenas e quilombola esse discurso não tem sido muito efetivo. O que se observa é o crescimento das expressões de intolerância e de desrespeito, especialmente quando a presença destes povos e comunidades coloca em questão alguma das premissas desenvolvimentistas. Em alguns estados há investidas constantes contra as demarcações, contra as formas de viver de comunidades e povos que não pensam a terra unicamente como recursos, a ser explorada ao máximo. Do mesmo modo, é crescente a prática concreta (e cruel) de violências contra comunidades e lideranças indígenas, especialmente aquelas que vivem nas margens das rodovias ou que se situam em pequenas reservas de terra. O setor ruralista articula, do sul ao norte, ações de intimidação e de coerção dos povos indígenas. Em Guaíra, no Paraná, os Guarani estão sendo discriminados e perseguidos nas ruas, no comércio, nas escolas e no trabalho. Os meios de comunicação convocam a população a reprimir “os índios”. No Mato Grosso do Sul a situação é semelhante. Lideranças são ameaçadas, espancadas, assassinadas.

Na luta pela terra, além de enfrentar pistoleiros, as lideranças se deparam com a brutalidade das polícias (Federal e Militar), que agem de forma truculenta contra os povos indígenas em ações de reintegração de posse. O exemplo mais contundente foi o assassinato de Oziel Terena em Sidrolândia, Mato Grosso do Sul.

As artimanhas e estratégias criadas pelo governo federal com o intuito de favorecer alguns setores da “economia” tem, como custo, a negação dos direitos originários e constitucionais dos povos indígenas, dos quilombolas, de outras coletividades que não se encaixam nas perspectivas de desenvolvimento, aceleração, produção em larga escala, por exemplo.

Para finalizar, retomo a afirmação do sociólogo Maurizio Lazzarato de que a possibilidade de redistribuição das riquezas sem redistribuição dos recursos é uma aposta insensata. O governo Dilma investe na direção de maximizar os ganhos de setores financeiros, fortalecer setores diferenciais da economia e supostamente promover a inclusão social através do consumo, do crédito e de pacotes de medidas assistenciais. Mas não é possível conciliar os direitos sociais com o rol de interesses dos setores do agronegócio, de mineradoras, de construtoras, do setor de financeiro.

Construir perspectivas que focalizem centralmente os direitos sociais, as formas coletivas de vida, a solidariedade, a redistribuição efetiva dos bens e dos recursos que hoje estão concentrados nas mãos de poucos grupos favorecidos são alguns dos desafios a serem enfrentados pelos povos indígenas e seus aliados. Uma sociedade justa, na qual todos sejam verdadeiramente respeitados só poderá emergir de uma guinada nos rumos (e escolhas) que orientam a política atual.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

25 anos depois, Chico Mendes vive mais indignado com o capitalismo verde


25 anos depois, Chico Mendes vive mais indignado com o capitalismo verde. 19444.jpeg
Nas celebrações para lembrar o aniversário de sua morte, sindicalista é destituído de seu conteúdo político revolucionário e transformado em pragmático "ambientalista"

Por Elder Andrade de Paula*
Fonte: Repórter Brasil

"Quando te vi com essa camiseta pensei que era mais um propagandista do governo do Acre", disse-me um dos participantes do II Congresso da Comissão  Pastoral da Terra (CPT) realizado em Goiás no ano de 2005. O comentário me deixou perplexo porque a camiseta em questão era branca e tinha estampada, em sua frente, uma imagem com o rosto de Chico Mendes, sobreposta com a chamada: "Chico Mendes Vive" e, logo a seguir, o texto escrito por ele no ano de seu assassinato "Atenção jovem do futuro, 6 de Setembro do ano de 2012, aniversário ou centenário da Revolução Socialista Mundial, que unificou todos os povos do planeta num só ideal e num só pensamento de unidade socialista que pôs fim a todos os inimigos da nova sociedade. Aqui fica somente a lembrança de um triste passado de dor, sofrimento e morte. Desculpem... Eu estava sonhando quando escrevi estes acontecimentos; que eu mesmo não verei mas tenho o prazer de ter sonhado".

Minha perplexidade deveu-se ao fato de não estar estampado na dita camiseta nenhuma logomarca identificando o governo do Acre. Ademais, existia outro detalhe fundamental: não havia e não há no vocabulário e nas ações do governo do Acre absolutamente nada que tenha proximidade com esse sonho de Chico Mendes. Ao contrário, o Chico Mendes evocado pelo governo acriano foi destituído de seu conteúdo político revolucionário e transformado em um pragmático "ambientalista", em consonância com todo o complexo de organizações da sociedade civil articulado em torno da ideologia do desenvolvimento sustentável. Às vezes, também o transformam em vidente, quando usam seu nome para justificar as perversas políticas voltadas para o aprofundamento da mercantilização da natureza. Dizem, dentre outras barbaridades, que Chico Mendes seria a favor do manejo florestal madeireiro, dos famigerados Pagamentos por Serviços Ambientais - PSA, quando sabemos que essas proposições emergiram após o seu assassinato.
Enfim, o fato que relatamos ilustra com muito vigor o monumental poder da imagem e a sofisticação crescente com que tal poder é manipulado. O Governo do Acre tem usado de forma primorosa esse recurso, logrando "colar" com maestria a imagem de Chico Mendes ao seu projeto político, afirmando que estaria realizando os "seus ideais" - como mostra Maria de Jesus Morais no seu artigo "Usos e abusos da imagem de Chico Mendes na legitimação da "economia verde", no Do$$iê Acre: O Acre que os mercadores da natureza escondem, documento apresentado em 2012 durante a Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro.

Imagem e poder

Nesse sentido, a manipulação da imagem de Chico Mendes atua como um antídoto contra a memória de Francisco Alves Mendes Filho. Enquanto a memória revela obstinado desejo de transformação de uma realidade marcada pela exploração, injustiça e destruição, a imagem manipulada volta-se para o ocultamento dessa realidade. Mais do que isso, os novos mapas com ilustrações do "Zoneamento Econômico Ecológico", que não passam de adaptações jurídicas e institucionais inebriadas com o vocabulário subjacente à ideologia do desenvolvimento sustentável, são usados para apresentar o Acre como "modelo de economia verde" a ser replicado em outras regiões do mundo.

Essa separação e/ou adaptação entre imagem e seus significados tem sido usada também em "Nuestra América" desde os primórdios da colonização europeia, como lembra Serge Gruzinski em seu livro "A guerra das imagens - de Cristóvão Colombo a 'Blade Runner' (1492-2019)". De acordo com ele, desde que Colombo desembarcou no novo mundo a imagem foi utilizada para fins de dominação. Sem demora, diz o referido autor, os recém-chegados se perguntaram sobre a natureza das imagens que possuíam os indígenas. "Prontamente, a imagem constituiu um instrumento de referência, e logo de aculturação e de domínio, quando a igreja resolveu cristianizar os índios desde a Flórida até a terra do fogo. A colonização europeia aprisionou o continente em uma armadilha de imagens que não deixou de ampliar-se, desenvolver-se e modificar-se ao ritmo dos estilos, das políticas, das reações e oposições encontrados", escreve Gruzinski.

É precisamente nesta perspectiva analítica que interpretamos a intencionalidade dessa separação entre "Chico e Francisco". Isto é, apropriar-se de uma imagem e destituí-la de seu sentido original para transformá-la em poderoso instrumento de legitimação do poder. Obviamente, ela necessita manter alguns nexos com uma memória "devidamente adaptada" aos fins políticos de cada momento, conforme explicitado anteriormente.

No decorrer das celebrações dos "vinte anos sem Chico Mendes", em 2008, mostramos os usos e abusos da imagem desse líder sindical no artigo "Movimentos sociais na Amazônia brasileira: vinte anos sem Chico Mendes". Destacamos, entre outros pontos, que as proposições do Movimento Sindical no "tempo de Chico Mendes" foram apropriadas e transmutadas na sua negação. Portanto, não estava em curso uma suposta continuidade e, sim, uma ruptura com esse legado. Agora, faremos um exercício oposto: realçar os traços de continuidade no "estilo de desenvolvimento" em curso no Acre.

Legado

Em uma de suas últimas entrevistas , registrada no livro "O Testamento do Homem da Floresta Chico Mendes por ele mesmo", de Cândido Grzibowski, ele disse o seguinte:
Não dá pra se entender que o governo seja ecológico, que defenda a ecologia, que seja contra o desmatamento, e que ao mesmo tempo esse mesmo governo mande a polícia armada para proteger o desmatamento.

"Em princípio teve alguns momentos que houve um avanço considerável do governo na questão ecológica, no Conselho Nacional dos Seringueiros, na luta dos seringueiros. Mas, em seguida, nós começamos a desconfiar e começamos a descobrir que o governo do Estado estava fazendo um discurso ecológico para justificar a aprovação de seus projetos nos bancos internacionais ou junto às organizações internacionais.  (...) Não dá pra se entender que o governo seja ecológico, que defenda a ecologia, que seja contra o desmatamento, e que ao mesmo tempo esse mesmo governo mande a polícia armada para proteger o desmatamento (...) Até o momento, a justiça sempre está do lado do maior. Um dos problemas, um dos pontos mais fracos com que nos defrontamos é a própria justiça. Muitas vezes recorremos ao apoio da justiça e a justiça, inclusive este ano foi claro, ficou do lado dos latifundiários (...)"

É justamente aí, no governo do PMDB de Flaviano Melo (1987-90), que podem ser encontrados os traços que teriam continuidade e que caracterizam o "fazer" do governo acriano desde 1999. Ao analisarmos atualmente os inúmeros conflitos pela posse da terra e aqueles relativos à expansão da exploração madeireira e pecuária no estado, vemos com clareza a reiteração daquele cenário político descrito por Chico Mendes em 1988. A diferença fundamental é que, hoje, o "ovo da serpente" eclodiu e o Estado está mais subordinado aos ditames dos financiamentos externos e à lógica do capitalismo verde (interpretado como resultante das modificações operadas no capitalismo no sentido de promover um movimento simultâneo de adaptação à nova divisão internacional do trabalho, ao reordenamento de natureza geopolítica, às reconfigurações nas relações Estado-Mercado e à assimilação do ambientalismo no processo de acumulação global que o presidem).

Os resultados de tudo isso apareceram bem sintetizados no já citado Do$$iê Acre. No referido documento destacam-se entre outros: 1) a elevada concentração da propriedade fundiária e da renda; a permanência dos conflitos pela posse da terra e o surgimento de outra ordem de conflitos relacionados com o processo de aprofundamento da mercantilização da natureza; interdição das demarcações de Terras Indígenas; 2) expansão das atividades produtivas consideradas mais predatórias como a pecuária extensiva de corte e exploração madeireira; 3) autoritarismo político e cooptação das representações dos trabalhadores, como o sindicalismo rural, com honrosa exceção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STTR) de Xapuri.

Sendo assim, o que prevaleceu não foi o legado de Chico Mendes mas, sim, o de seus inimigos. A continuidade passível de constatação é aquela relacionada com o prolongamento da espoliação sob a batuta de um poder oligárquico que necessita ser ocultado para mostrar a imagem de um "Acre moderno". Os "usos e abusos" da imagem de Chico Mendes (como diz  Maria de Jesus Morais) são fundamentais neste sentido. Neste ano de 2013, o slogan usado pelo governo acriano para "comemorar" os 25 anos de assassinato de Chico Mendes foi: "25 anos, Chico Mendes vive mais" (texto e imagens sobre o assunto chegaram a ser publicados na página da Agência de Notícias do Governo do Acre, mas o link http://www.agencia.ac.gov.br/index.php/chico-mendes-25-anos não está mais disponível).

Por esta razão, ao invés de usar a dita expressão parece mais apropriado dizer que Chico Mendes vive mais indignado com o capitalismo verde.

* Elder Andrade de Paula é professor associado do  Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

"Demarcação agora é guerra", declaram indígenas de Yvy Katu


Ruy Sposati, de Japorã (MS)

Um dia depois da suspensão de um das quatro reintegração de posse contrárias à permancência de cinco mil Guarani Ñandeva no tekoha Yvy Katu, na última terça-feira, 17, os indígenas anunciaram que não cumprirão as outras decisões judiciais, estão "prontos para morrer" e exigem que o governo federal finalize o processo de demarcação da terrra, declarada em 2005.

"Nós estamos há mais de 78 dias e 78 noites acampados em nossa própria terra e vamos ficar por mais dois mil anos e depois para sempre. Nós não vamos sair", escreveram os indígenas em carta aberta à Presidência da República e ao Ministério da Justiça, entregue nesta quarta-feira ao Ministério Público Federal (MPF).

Sobre a decisão do Tribunal Regional Federal da 3a. Região, a comunidade afirmou: "nós não ficamos aliviados com essa decisão da Justiça, porque ela não muda nada. Nós continuamos mobilizados, resistindo contra ações dos latifundiários".

Menos de 2

Os indígenas argumentam que o território em processo de demarcação representa uma parcela muito pequena do território de Japorã, município onde fica a maior parte de Yvy Katu - apesar dos Guarani representarem metade dos moradores da cidade. "Nós somos 50% da população do município", explica a liderança indígena Valdomiro Ortiz, "e no entanto, não estamos lutando por metade do território de Japorã. Ao contrário! Os 7,5 mil hectares não são nem 6% o território total da cidade. Isso é pelo que estamos lutando".

"Juntando com a reserva [totalizando 9,4 mil hectares] e dividindo por todo mundo, dá menos de 2 hectares pra cada um. Estamos lutando por menos de 2 hectares de terra por indígena aqui em Yvy Katu. Se isso dá vida digna pra todo mundo? Claro que não dá. Mas é por esses 2 hectares que estamos lutando, e não por uma cidade inteira", aponta.

Valdomiro relata que há exatos 10 anos, no dia 18 de dezembro, ocorreu o famoso episódio do confronto com fazendeiros na ponte sobre o rio Iguatemi. Na ocasião, ruralistas e fazendeiros alegaram protesto pacífico na ponte par tentar expulsar os Ñandeva do território recém-retomado. Desarmados, os indígenas tentaram impedir a passagem se posicionando na frente dos fazendeiros, que dispararam armas de fogo. Com uma reza, relata, um ñanderu chamou uma tempestade de vento e trovões que afastou os invasores, e os indígenas permaneceram no local.

"Durante esses 10 anos, nós sofremos muito. E a Justiça sempre prometendo que estava dando um jeito de solucionar o conflito, de demarcar, e que daqui 6 meses, daqui um ano estaria resolvido... Se passaram 10 anos e nada", recorda Valdomiro. "Agora, hoje, nós estamos aqui de novo. Perdemos alguns companheiros, mas não vamos parar. Pelo menos, podemos tomar banho no nosso rio. Está tudo devastado, mas pelo menos podemos tomar banho".

Na opinião da liderança, os proprietários de terras que incidem sobre território indígena devem ser ressarcidos. "Nós defendemos que os fazendeiros que adquiriam suas terras de boa fé recebam, sim. E deixem logo a comunidade em paz".

"No dia em que a gente tiver velhinho, quando não puder nem se arrastar mais no chão, os nossos filhos e os nossos netos vão estar no nosso tekoha. Apesar de tanta ameaça, apesar do cansaço, do sono, fome e sofrimento, podemos dizer que estamos felizes por sentirmos que estamos vencendo aos poucos", conclui.

Leia mais:

Leia na íntegra o documento dos indígenas

Carta aberta à Presidência a Presidência da República e Ministério da Justiça


Recebemos a notícia da suspensão da reintegração de posse de uma das 14 fazendas em Yvy Katu. Não ficamos nem felizes nem tristes com isso. Isso não muda nada para nós Guarani.

Para nós essas 14 fazendas não existem. Toda essa terra faz parte de um mesmo tekoha, um mesmo território, chamado tekoha Yvy Katu.

Nós não ficamos aliviados com essa decisão da Justiça, porque ela não muda nada. Nós continuamos mobilizados, resistindo contra ações dos latifundiários, e exigindo a demarcação de nosso território.

Nós estamos há mais de 78 dias e 78 noites acampados em nossa própria terra e vamos ficar por mais dois mil anos e depois para sempre. Nós não vamos sair.

Terra indígena nunca foi de fazendeiro. Terra indígena sempre foi terra indígena. 

Se os fazendeiros querem comprar terra, vão comprar em outro lugar. Se querem cobrar pela terra, paguem antes pela floresta que estava aqui e que foi acabada.

Nós temos nossa reza e os nossos guerreiros. Estamos esperando os guerreiros dos brancos. 

Estamos prontos para morrer. Demarcação agora é guerra.

Nossa reza é quente como se fosse o sol. Nossa reza vem da natureza, do antepassado e do sonho. Nos sonhos, já vimos a terra lutar contra o branco, a árvore lutar contra branco.

Nós, comunidade Yvy Katu e Conselho Aty Guasu, exigimos que a Justiça suspenda todas as reintegrações de posse e o governo federal finalize a demarcação de toda a nossa terra tradicional. Enquanto isso, vamos continuar lutando, e banhando a terra de sangue, se for necessário. 

Não existe acordo. Não adianta pressionar. Não vamos ficar apenas com 10% de Yvy Katu. Agora é 100%. Parece que ninguém está acreditando em nossa luta. Será que estamos falando à toa? Já carregamos muito indígena Guarani e Kaiowá ensanguentado no braço. Vocês estão esperando mais uma morte para se importarem com Yvy Katu?


Tekoha Yvy Katu, 18 de dezembro de 2013
Lideranças do tekoha Yvy Katu e Conselho do Aty Guasu

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Ministro do STF afirma que condicionantes só se aplicam à Raposa Serra do Sol


O ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou seguimento (arquivou) à Reclamação (RCL 14473) ajuizada pelo Município de Lábrea (AM) contra decisão judicial que havia determinado a revisão e ampliação da Terra Indígena Kaxarari, situada entre Lábrea (AM) e Porto Velho (RO). O município apontou descumprimento da decisão tomada pelo Supremo no julgamento sobre a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, realizado por meio da Petição (PET) 3388.


Segundo explicou o ministro Marco Aurélio, no julgamento de recurso (embargos de declaração) na PET 3388, o Plenário “não sufragou o entendimento sobre o fato articulado” na reclamação do município de Lábrea. Isso porque, pela decisão do Supremo, as salvaguardas fixadas para dirimir conflitos no caso concreto da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol não foram estendidas para a demarcação de outras reservas. “O relator dos embargos (de declaração na PET 3388) chegou a consignar que o pronunciamento alusivo à referida petição mostrou-se específico, limitado às terras indígenas de Raposa Serra do Sol”, ressaltou o ministro Marco Aurélio.

Com esses argumentos, o ministro negou seguimento ao pedido do município de Lábrea e derrubou a liminar por ele concedida parcialmente em setembro de 2012 para suspender as atividades de grupos técnicos da Fundação Nacional do Índio (Funai) que cumpriam a determinação de revisão e ampliação da reserva feita pelo juízo da 5ª Vara Federal Ambiental e Agrária de Rondônia.

Fonte da notícia: Supremo Tribunal Federal
Publicado na página do Cimi

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

NOTA AO GOVERNO E À SOCIEDADE BRASILEIRA

CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA ENERGÉTICA:
ONDE ESTÁ A SOCIEDADE CIVIL?



Consta na agenda oficial do Ministério de Minas e Energia, em sua página na internet, a previsão de realização, de uma reunião do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) no dia 17 deste mês. O que é este conselho e o que será decidido nesta reunião? Quem vai decidir?

Essas dúvidas têm razão de existir. Afinal, a grande maioria dos brasileiros provavelmente nunca ouviu falar do CNPE! 

Em decretos presidenciais de 2000 e 2006 - que regulamentaram a lei que criou o CNPE em 1997 - existe a previsão de participação de um representante da sociedade civil e um representante da universidade brasileira, especialistas em matéria de energia. Entretanto, estas duas cadeiras encontram-se vagas há anos, descumprindo-se um decreto do Presidente da República e, obstruindo um importante canal de diálogo entre o governo e a sociedade brasileira sobre um tema da maior relevância para o país.

Assim, o CNPE que se reúne em 17 de dezembro é um conselho exclusivamente governamental, “chapa branca”. Além disso, as Atas e Resoluções do Conselho deixam claro que grande parte de suas decisões é tomada “ad referendum”, isto é, apenas carimbando uma decisão já tomada por seu Presidente, o Ministro de Minas e Energia. Enquanto isso, a sociedade civil e a universidade brasileira, por não terem representantes no CNPE, não são sequer informadas sobre as decisões que são tomadas a portas fechadas.  

É muito grave o não preenchimento dessas duas vagas. Mesmo em número insuficiente, a presença desses representantes da sociedade indicaria uma abertura mínima para a participação de pessoas e organizações que poderiam levar para a mesa de debates e decisões questões da maior relevância, que ajudariam o Conselho a cumprir sua missão.

É importante lembrar que as diretrizes que devem orientar a atuação do CNPE incluem, entre outras: a proteção do meio ambiente e promoção da conservação de energia; a identificação das soluções mais adequadas para o suprimento de energia elétrica nas diversas regiões do País; o estabelecimento de diretrizes para programas específicos, inclusive dos biocombustíveis, da energia solar, da energia eólica e da energia proveniente de outras fontes alternativas. 

Como entidades da sociedade civil que acompanham e sofrem as consequências de empreendimentos prioritários do governo – como a construção de Belo Monte e outras grandes barragens na Amazônia, e a expansão do Programa Nuclear Brasileiro (PNB) - podemos afirmar que a atual política energética, estabelecida por decisões do CNPE, não leva em conta, efetivamente, as consequências sociais e ambientais dos projetos, em contraste com as diretrizes do próprio Conselho. 

Também contrariando suas diretrizes, o CNPE tem menosprezado propostas inovadoras da sociedade civil e de empreendedores do setor privado em áreas estratégicas, como a eficiência energética e a conservação de energia; o aproveitamento do potencial quase infinito da energia solar, por meio da inovação tecnológica e o fomento a cadeias produtivas nacionais; as propostas de políticas para estimular, em bases sustentáveis e com justiça social, a ampliação de escala de outras fontes renováveis não convencionais, como a eólica, a biomassa e o movimento natural das águas sem barramentos, assim como a descentralização da produção e do consumo, evitando riscos e custos da produção centralizada, em mãos de grandes empresas. 

O não preenchimento das vagas no CNPE reflete uma preferência política do atual governo de tomar decisões sem dialogar com a sociedade civil. Esse planejamento centralizado facilita a prática de priorizar o atendimento de interesses de grandes empreiteiras que são parceiras prediletas do setor elétrico do governo (Eletrobras, EPE), “campeões nacionais” como Eike Batista, e grupos políticos, cujas campanhas eleitorais são financiadas generosamente pelos principais beneficiários da atual política energética. 

Não é legítimo, nem lícito que o CNPE tome decisões estratégicas sobre a política energética sem abrir o diálogo e sem contar com a contribuição da sociedade civil. De fato, a atual política energética está sendo imposta à sociedade, em nome de necessidades definidas a partir de critérios discutíveis, favorecendo as “necessidades” de determinados grupos econômicos. 

Junto com as políticas de mineração, indústria e transporte, o modelo de produção, distribuição e consumo de energia é um tema estratégico para o país, envolvendo escolhas sobre a utilização de recursos naturais e territórios que afetam a vida de gerações presentes e futuras. Por isso, devem ser objetos de processos transparentes e democráticos de tomada de decisão, garantindo os interesses públicos. 

Com certeza, a presença de representantes da sociedade civil e da academia no CNPE – que devem ser indicados por redes representativas e não pelo Governo, em maior número do que o previsto no decreto – levaria para a mesa do Conselho contribuições importantes para superar vícios da atual política energética e avançar no aproveitamento de oportunidades para efetivar uma política energética brasileira à altura dos desafios do século 21, pautada em princípios de transparência e participação democrática, respeito aos direitos humanos, justiça social, sustentabilidade ambiental e eficiência econômica.

Assim, as organizações da sociedade civil, abaixo identificadas, manifestam interesse em abrir um diálogo com o governo a fim de definir medidas práticas para superar os obstáculos ao efetivo funcionamento do CNPE. Como primeiro passo, nos dispomos a contribuir para a definição de um processo de consulta a redes da sociedade e da academia brasileira, objetivando a indicação de nomes para preencher as cadeiras vagas no Conselho.
Brasília, 17 de dezembro de 2013
Assinam:

  1. Amigos da Terra - Amazônia Brasileira
  2. Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB
  3. Associação Alternativa Terrazul
  4. Associação Movimento Paulo Jackson – Ética, Justiça, Cidadania
  5. Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida - APREMAVI
  6. Comissão Justiça e Paz da Diocese de Santarém 
  7. Conselho Indigenista Missionário – CIMI
  8. Conselho Pastoral dos Pescadores – CPP
  9. Conservação Internacional – CI/ Brasil
  10. ECOA – Ecologia e Ação
  11. FASE
  12. FBOMS (Fórum Brasileiro de Ongs e Movimentos Sociais pelo Meio Ambiente e Desenvolvimento)
  13. Fórum da Amazônia Oriental – FAOR
  14. Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social
  15. Fundação Avina
  16. Gambá - Grupo Ambientalista da Bahia
  17. Greenpeace - Brasil
  18. Grupo de Defesa da Amazonia – GDA
  19. Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – IBASE
  20. Instituto Centro de Vida - ICV
  21. Instituto de Estudos Socioeconomicos – INESC
  22. Instituto Humanitas, Pará
  23. Instituto Madeira Vivo
  24. Instituto Mais Democracia
  25. Instituto Socioambiental - ISA 
  26. International Rivers – Brasil
  27. Marcha Mundial do Clima
  28. Movimento de Mulheres do Campo e Cidade Regional Transamazônica e Xingu
  29. Movimento dos Pequenos Agricultores - MPA
  30. Movimento Ecossocialista de Pernambuco-MESPE
  31. Movimento Gota D'Água
  32. Movimento Tapajós Vivo – Santarém
  33. Movimento Xingu Vivo para Sempre
  34. Mutirão Pela Cidadania
  35. Operação Amazônia Nativa – OPAN
  36. Projeto Cidade Verde, Cidadania Ativa/ FE- UNB
  37. Rede Brasileira de Ecossocialistas
  38. Rede Cearense de Juventude (RECEJUMA)
  39. Rede Sustentabilidade
  40.  Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Xapuri/AC
  41. SOS Clima Terra