quarta-feira, 29 de maio de 2019

MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO PARA O DIA MUNDIAL DO MIGRANTE E DO REFUGIADO

Não se trata apenas de migrantes

A fé assegura-nos que o Reino de Deus já está, misteriosamente, presente sobre a terra (cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. Gaudium et spes, 39); contudo, mesmo em nossos dias, com pesar temos de constatar que se lhe deparam obstáculos e forças contrárias. Conflitos violentos, verdadeiras e próprias guerras não cessam de dilacerar a humanidade; sucedem-se injustiças e discriminações; tribula-se para superar os desequilíbrios económicos e sociais, de ordem local ou global. E quem sofre as consequências de tudo isto são sobretudo os mais pobres e desfavorecidos.

As sociedades economicamente mais avançadas tendem, no seu seio, para um acentuado individualismo que, associado à mentalidade utilitarista e multiplicado pela rede mediática, gera a «globalização da indiferença». Neste cenário, os migrantes, os refugiados, os desalojados e as vítimas do tráfico de seres humanos aparecem como os sujeitos emblemáticos da exclusão, porque, além dos incómodos inerentes à sua condição, acabam muitas vezes alvo de juízos negativos que os consideram como causa dos males sociais. A atitude para com eles constitui a campainha de alarme que avisa do declínio moral em que se incorre, se se continua a dar espaço à cultura do descarte. Com efeito, por este caminho, cada indivíduo que não quadre com os cânones do bem-estar físico, psíquico e social fica em risco de marginalização e exclusão.

Por isso, a presença dos migrantes e refugiados – como a das pessoas vulneráveis em geral – constitui, hoje, um convite a recuperar algumas dimensões essenciais da nossa existência cristã e da nossa humanidade, que correm o risco de entorpecimento num teor de vida rico de comodidades. Aqui está a razão por que «não se trata apenas de migrantes», ou seja, quando nos interessamos por eles, interessamo-nos também por nós, por todos; cuidando deles, todos crescemos; escutando-os, damos voz também àquela parte de nós mesmos que talvez mantenhamos escondida por não ser bem vista hoje.

«Tranquilizai-vos! Sou Eu! Não temais!» (Mt 14, 27). Não se trata apenas de migrantes: trata-se também dos nossos medos. As maldades e torpezas do nosso tempo fazem aumentar «o nosso receio em relação aos “outros”, aos desconhecidos, aos marginalizados, aos forasteiros (…). E isto nota-se particularmente hoje, perante a chegada de migrantes e refugiados que batem à nossa porta em busca de proteção, segurança e um futuro melhor. É verdade que o receio é legítimo, inclusive porque falta a preparação para este encontro» (Homilia, Sacrofano, 15 de fevereiro de 2019). O problema não está no facto de ter dúvidas e receios. O problema surge quando estes condicionam de tal forma o nosso modo de pensar e agir, que nos tornam intolerantes, fechados, talvez até – sem disso nos apercebermos – racistas. E assim o medo priva-nos do desejo e da capacidade de encontrar o outro, a pessoa diferente de mim; priva-me duma ocasião de encontro com o Senhor (cf. Homilia na Missa do Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, 14 de janeiro de 2018).

«Se amais os que vos amam, que recompensa haveis de ter? Não fazem já isso os publicanos?» (Mt 5, 46). Não se trata apenas de migrantes: trata-se da caridade. Através das obras de caridade, demonstramos a nossa fé (cf. Tg 2, 18). E a caridade mais excelsa é a que se realiza em benefício de quem não é capaz de retribuir, nem talvez de agradecer. «Em jogo está a fisionomia que queremos assumir como sociedade e o valor de cada vida. (…) O progresso dos nossos povos (…) depende sobretudo da capacidade de se deixar mover e comover por quem bate à porta e, com o seu olhar, desabona e exautora todos os falsos ídolos que hipotecam e escravizam a vida; ídolos que prometem uma felicidade ilusória e efémera, construída à margem da realidade e do sofrimento dos outros» (Discurso na Cáritas diocesana de Rabat, Marrocos, 30 de março de 2019).

«Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele e, vendo-o, encheu-se de compaixão» (Lc 10, 33). Não se trata apenas de migrantes: trata-se da nossa humanidade. O que impele aquele samaritano – um estrangeiro, segundo os judeus – a deter-se é a compaixão, um sentimento que não se pode explicar só a nível racional. A compaixão toca as cordas mais sensíveis da nossa humanidade, provocando um impulso imperioso a «fazer-nos próximo» de quem vemos em dificuldade. Como nos ensina o próprio Jesus (cf. Mt 9, 35-36; 14, 13-14; 15, 32-37), ter compaixão significa reconhecer o sofrimento do outro e passar, imediatamente, à ação para aliviar, cuidar e salvar. Ter compaixão significa dar espaço à ternura, ao contrário do que tantas vezes nos pede a sociedade atual, ou seja, que a reprimamos. «Abrir-se aos outros não empobrece, mas enriquece, porque nos ajuda a ser mais humanos: a reconhecer-se parte ativa dum todo maior e a interpretar a vida como um dom para os outros; a ter como alvo não os próprios interesses, mas o bem da humanidade» (Discurso na Mesquita «Heydar Aliyev» de Baku, Azerbeijão, 2 de outubro de 2016).

«Livrai-vos de desprezar um só destes pequeninos, pois digo-vos que os seus anjos, no Céu, veem constantemente a face de meu Pai que está no Céu» (Mt 18, 10). Não se trata apenas de migrantes: trata-se de não excluir ninguém. O mundo atual vai-se tornando, dia após dia, mais elitista e cruel para com os excluídos. Os países em vias de desenvolvimento continuam a ser depauperados dos seus melhores recursos naturais e humanos em benefício de poucos mercados privilegiados. As guerras abatem-se apenas sobre algumas regiões do mundo, enquanto as armas para as fazer são produzidas e vendidas noutras regiões, que depois não querem ocupar-se dos refugiados causados por tais conflitos. Quem sofre as consequências são sempre os pequenos, os pobres, os mais vulneráveis, a quem se impede de sentar-se à mesa deixando-lhe as «migalhas» do banquete (cf. Lc 16, 19-21). «A Igreja “em saída” (…) sabe tomar a iniciativa sem medo, ir ao encontro, procurar os afastados e chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 24). O desenvolvimento exclusivista torna os ricos mais ricos e os pobres mais pobres. Verdadeiro desenvolvimento é aquele que procura incluir todos os homens e mulheres do mundo, promovendo o seu crescimento integral, e se preocupa também com as gerações futuras.

«Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo; e quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de todos» (Mc 10, 43-44). Não se trata apenas de migrantes: trata-se de colocar os últimos em primeiro lugar. Jesus Cristo pede-nos para não cedermos à lógica do mundo, que justifica a prevaricação sobre os outros para meu proveito pessoal ou do meu grupo: primeiro eu, e depois os outros! Ao contrário, o verdadeiro lema do cristão é «primeiro os últimos». «Um espírito individualista é terreno fértil para medrar aquele sentido de indiferença para com o próximo, que leva a tratá-lo como mero objeto de comércio, que impele a ignorar a humanidade dos outros e acaba por tornar as pessoas medrosas e cínicas. Porventura não são estes os sentimentos que muitas vezes nos assaltam à vista dos pobres, dos marginalizados, dos últimos da sociedade? E são tantos os últimos na nossa sociedade! Dentre eles, penso sobretudo nos migrantes, com o peso de dificuldades e tribulações que enfrentam diariamente à procura – por vezes, desesperada – dum lugar onde viver em paz e com dignidade» (Discurso ao Corpo Diplomático, 11 de janeiro de 2016). Na lógica do Evangelho, os últimos vêm em primeiro lugar, e nós devemos colocar-nos ao seu serviço.

«Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância» (Jo 10, 10). Não se trata apenas de migrantes: trata-se da pessoa toda e de todas as pessoas. Nesta afirmação de Jesus, encontramos o cerne da sua missão: procurar que todos recebam o dom da vida em plenitude, segundo a vontade do Pai. Em cada atividade política, em cada programa, em cada ação pastoral, no centro devemos colocar sempre a pessoa com as suas múltiplas dimensões, incluindo a espiritual. E isto vale para todas as pessoas, entre as quais se deve reconhecer a igualdade fundamental. Por conseguinte, «o desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento económico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo» (São Paulo VI, Enc. Populorum progressio, 14).

«Portanto, já não sois estrangeiros nem imigrantes, mas sois concidadãos dos santos e membros da casa de Deus» (Ef 2, 19). Não se trata apenas de migrantes: trata-se de construir a cidade de Deus e do homem. Na nossa época, designada também a era das migrações, reservado a poucos, mas construído sobre a exploração de muitos. «Trata-se então de vermos, nós em primeiro lugar, e de ajudarmos os outros a verem no migrante e no refugiado não só um problema a enfrentar, mas um irmão e uma irmã a serem acolhidos, respeitados e amados; trata-se duma oportunidade que a Providência nos oferece de contribuir para a construção duma sociedade mais justa, duma democracia mais completa, dum país mais inclusivo, dum mundo mais fraterno e duma comunidade cristã mais aberta, de acordo com o Evangelho» (Mensagem para o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado de 2014).

Queridos irmãos e irmãs, a resposta ao desafio colocado pelas migrações contemporâneas pode-se resumir em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar. Mas estes verbos não valem apenas para os migrantes e os refugiados; exprimem a missão da Igreja a favor de todos os habitantes das periferias existenciais, que devem ser acolhidos, protegidos, promovidos e integrados. Se pusermos em prática estes verbos, contribuímos para construir a cidade de Deus e do homem, promovemos o desenvolvimento humano integral de todas as pessoas e ajudamos também a comunidade mundial a ficar mais próxima de alcançar os objetivos de desenvolvimento sustentável que se propôs e que, caso contrário, dificilmente serão atingíveis.

Por conseguinte, não está em jogo apenas a causa dos migrantes; não é só deles que se trata, mas de todos nós, do presente e do futuro da família humana. Os migrantes, especialmente os mais vulneráveis, ajudam-nos a ler os «sinais dos tempos». Através deles, o Senhor chama-nos a uma conversão, a libertar-nos dos exclusivismos, da indiferença e da cultura do descarte. Através deles, o Senhor convida-nos a reapropriarmo-nos da nossa vida cristã na sua totalidade e contribuir, cada qual segundo a própria vocação, para a construção dum mundo cada vez mais condizente com o projeto de Deus.

Estes são os meus votos que acompanho com a oração, invocando, por intercessão da Virgem Maria, Nossa Senhora da Estrada, abundantes bênçãos sobre todos os migrantes e refugiados do mundo e sobre aqueles que se fazem seus companheiros de viagem.

Vaticano, 27 de maio de 2019.

Francisco

quarta-feira, 22 de maio de 2019

BBC Brasil: Crédito de carbono pode ser 'pior do que não fazer nada' contra desmatamento, aponta ProPublica


“...A reportagem cita dois grandes programas globais e explica seus problemas. O maior deles, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, nasceu a partir do Protocolo de Kyoto, de 1997, quando dezenas de nações fizeram um pacto para reduzir os gases do efeito estufa.
"Os líderes europeus queriam forçar a indústria a emitir menos. Os americanos queriam flexibilidade. Países em desenvolvimento como o Brasil queriam dinheiro para lidar com a mudança climática. Uma abordagem sobre a qual todos concordaram foi a compensação de carbono", escreve ela...”

Leia no original clicando AQUI

Segundo reportagem investigativa, poluidores têm recebido 'passe livre' para emitir CO2, sem que créditos para compensar essa emissão estejam sendo de fato revertidos em preservação florestal

Embora o mercado do crédito de carbono tenha gerado muito entusiasmo recentemente, inclusive nos Estados Unidos, há cada vez mais evidências de que eles não renderam, e não vão render, o benefício climático desejado.

É o que mostra uma reportagem publicada na quarta-feira, 22, pela ProPublica, organização americana de jornalismo investigativo independente.

O crédito de carbono funciona assim: uma entidade paga a outra pelo direito de emitir gases que provocam o efeito estufa, como o dióxido de carbono (CO2). O recebedor desse dinheiro, em tese, o investe em fontes de energia renováveis e deixa de desmatar. Cada crédito é equivalente ao aquecimento global causado por uma tonelada métrica de CO2.

O Brasil, que concentra um terço da área de floresta tropical do mundo, é um dos maiores receptores de recursos do crédito de carbono.

O mercado dos créditos é atraente para indústrias altamente poluentes, como companhias aéreas, e países industrializados que assinaram o acordo climático de Paris, porque as compensações podem servir como uma alternativa mais barata do que reduzir de fato o uso de combustíveis fósseis.

No entanto, de acordo com a publicação, a empolgação com tais planos tem deixado muitos de seus defensores cegos para o fato de que, cada vez mais, surgem evidências de que tais sistemas não trouxeram - e tampouco trarão no futuro - o benefício climático desejado.

A jornalista Lisa Song, especializada na cobertura de meio ambiente, energia e mudanças climáticas e que assina a reportagem com colaboração de Paula Moura, analisou os projetos realizados em diversos países nas últimas duas décadas, pesquisou estudos e relatórios governamentais publicados ao redor do mundo e até contratou uma análise de satélite independente para avaliar o quanto restava de um projeto de preservação florestal que começou a vender créditos de carbono em 2013. Quatro anos depois, só havia florestas em metade da área do projeto de preservação.

A conclusão da ProPublica é que os créditos de carbono não compensaram a quantidade de poluição que se esperava, ou trouxeram ganhos que foram rapidamente revertidos ou que não podiam ser comprovados e medidos.

"Em última análise, os poluidores receberam um passe livre para continuar emitindo CO2 sem culpa, mas a preservação da floresta não chegou a acontecer, ou não durou", escreve ela. Ou seja, a medida pode ser ainda pior do que simplesmente não fazer nada sobre a questão.

Histórico de fracassos

A reportagem cita dois grandes programas globais e explica seus problemas. O maior deles, o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, nasceu a partir do Protocolo de Kyoto, de 1997, quando dezenas de nações fizeram um pacto para reduzir os gases do efeito estufa.

"Os líderes europeus queriam forçar a indústria a emitir menos. Os americanos queriam flexibilidade. Países em desenvolvimento como o Brasil queriam dinheiro para lidar com a mudança climática. Uma abordagem sobre a qual todos concordaram foi a compensação de carbono", escreve ela.

A ideia era boa: se uma usina elétrica no Canadá precisasse reduzir em 10% suas emissões, mas não quisesse pagar por uma tecnologia mais cara, poderia comprar compensações de carbono em projetos em países em desenvolvimento.

Investidores que quisessem construir uma usina de carvão na Índia poderiam, em vez disso, construir uma usina de energia solar, usando o dinheiro da venda antecipada de créditos de carbono para cobrir os custos mais altos do empreendimento. A diferença entre emissões da usina de carvão hipotética e a fazenda solar real seria convertida em compensações.

O programa subsidiou milhares de projetos, incluindo hidrelétricas, parques de energia eólica e até mesmo usinas de carvão que pediam os créditos por serem mais limpas do que poderiam ter sido.

Logo emergiram escândalos técnicos e de direitos humanos ligados a esses projetos, e a União Europeia parou de aceitar a maioria dos créditos. Um relatório de 2016 descobriu que 85% das compensações tinham uma "baixa probabilidade" de resultar em impactos reais.

Algo parecido ocorreu com outro programa global, chamado Implementação Conjunta. Um estudo de 2015 concluiu que 75% dos créditos emitidos provavelmente não representariam reduções significativas. Ele dizia também que, se os países tivessem cortado a poluição, em vez de fazer compensações, as emissões globais de CO2 naquele período teriam sido 600 milhões de toneladas mais baixas.

Conclusão da ProPublica é que os créditos de carbono não compensaram a quantidade de poluição que se esperava, ou trouxeram ganhos que foram rapidamente revertidos ou que não podiam ser comprovados e medidos

Em comum, quase todos os projetos deixavam de atender a um padrão exigido de qualquer programa de compensação de carbono que dê resultados efetivos, a chamada "adicionalidade". Isso quer dizer que os ganhos ambientais só são efetivos se as usinas solares ou moinhos de vento construídos com os créditos jamais pudessem ter sido erguidas sem os créditos.

Eles também raramente tinham um sistema de créditos para a preservação de florestas. Nesse sistema, um poluidor paga um proprietário de terras para reduzir o desmatamento. Seria difícil, diziam, saber quais árvores foram salvas por causa de tais projetos e quais teriam sobrevivido sem elas.

Ainda assim, a ideia continuou sendo promovida. A Organização das Nações Unidas chamou-a de REDD, sigla para Redução de Emissão de Desmatamento e Degradação Florestal.

Segundo a reportagem, não há uma autoridade central para lidar com os programas que já existem e nunca foi feita uma avaliação abrangente de seus resultados.

A ProPublica localizou os estudos que existem sobre o tema. Um deles concluiu que 37% deles foram implementados em terras que já são protegidas, como parques nacionais.

Ela também encontrou um documento preocupante do governo da Noruega, país que exporta grandes quantidades de petróleo e gás natural e é um dos maiores defensores desses programas - os recursos noruegueses representam quase metade de todo o financiamento para eles.

O relatório dizia que, após uma década de trabalho e US$ 3 bilhões investidos, os resultados estavam "atrasados e não eram certos".

A ciência de medir carbono estava sendo empregada apenas parcialmente e havia um risco "considerável" do que é chamado de "vazamento" - quando proteger um pedaço de terra leva a desmatamento em outro lugar. Esse problema, por si só, gera "considerável incerteza sobre o impacto climático", concluiu a análise.

Crédito de carbono: agora vai?

Um argumento repetido pelos defensores dos sistemas de crédito de carbono é de que as tentativas feitas até agora não tinham dado a eles uma chance real de funcionar.

Isso porque muitos projetos venderam créditos em um mercado voluntário para empresas que queriam ter uma imagem pública mais "verde" ou atrair consumidores que se preocupam com o meio ambiente. Isso não permitiu que eles gerassem dinheiro suficiente para dar certo.

Daí a empolgação com a entrada da Califórnia e outros gigantes no mercado: finalmente haveria um volume significativo de recursos sendo injetados no sistema. O que ocorreria, por exemplo, se uma grande petroleira pudesse compensar parte de danos ambientais pagando ao Brasil para não derrubar árvores?

"A busca pela perfeição pode atrapalhar a realização. Há um monte de problemas (na implementação do programa). Mas qual é a alternativa?", afirma cientista Foster Brown, defendendo o crédito de carbono

A Califórnia já tem um programa de cap and trade (quando os limites de emissão de um setor podem ser negociados entre as empresas, criando créditos de carbono para aquelas que reduzirem as suas emissões). Ele permite que as empresas compensem uma pequena porcentagem de sua emissão com projetos de preservação florestal na América do Norte.

A novidade é que, neste ano, um conselho estadual pode aprovar o chamado Tropical Forest Standard (Padrão de Floresta Tropical, em tradução livre), um modelo que definirá como as compensações de carbono poderão ser concedidas também para programas intercontinentais. Especialistas dizem que esse modelo pode e provavelmente será adotado por outros países.

Em abril, seis membros do Parlamento Europeu pediram que a Califórnia rejeitasse o Tropical Forest Standard, citando preocupações com a mudança do cenário político do Brasil (o governo de Jair Bolsonaro incentiva o agronegócio contra o que ele define como "ativistas fanáticos" ambientalistas) e lembrando que a União Europeia não permitiu créditos florestais em seu programa de cap and trade "devido a preocupações ambientais".

Cientistas ouvidos pela reportagem tenderam a concordar com a jornalista quando confrontrados com os problemas.

No entanto, eles discordam da tese de que esses programas estejam fracassando. Muitos dizem que o modelo não teve, de fato, recursos o bastante para florescer.

A reportagem ouviu o geoquímico americano Foster Brown, da Universidade Federal do Acre, que estuda a Floresta Amazônica e é um defensor do modelo de crédito de carbono.

"A busca pela perfeição pode atrapalhar a realização", disse Brown à repórter. "Há um monte de problemas (na implementação do programa). Mas qual é a alternativa?", questionou ele.

Barbara Haya, pesquisadora da Universidade da Califórnia em Berkeley, que estuda o mercado de carbono, disse que é ilusão acharmos que esses programas florestais serão capazes de quantificar com precisão - e, portanto, compensar - a quantidade de poluição emitida, mesmo sob o novo padrão.

O melhor que podemos esperar é um programa que ajude o clima de alguma maneira incomensurável, opinou ela.

O caso do Acre

O Estado do Acre tem sido usado como referência e tem despertado o interesse dos californianos. Por isso, a reportagem foi até lá para avaliar como ele estava funcionando na prática.

A jornalista afirma que viu "largas extensões de pasto onde antigamente moradores locais tiravam borracha das árvores".

A publicação cita ainda que funcionários do governo falam em preservação, mas políticos cortaram o financiamento e planejam expandir o agronegócio. "Vários funcionários públicos do Acre me disseram que sua prioridade é obter recursos externos para proteger as florestas - a validade das compensações de carbono fica em segundo plano", afirma a jornalista na reportagem.

Um relatório de 2016 descobriu que 85% das compensações de carbono tinham uma "baixa probabilidade" de criar impactos reais

Como comprovar a compensação?
Um dos problemas é que, para que o sistema de compensações funcione, é preciso que haja uma contabilidade muito bem feita.

É preciso estabelecer uma base, um cálculo de quanto desmatamento haveria sem compensações. É fácil manipular o sistema inflando esses números.

O Brasil é um dos maiores beneficiários desses programas no mundo. O país, diz a matéria, estabelece bases diferentes para o cálculo.

Além disso, há problemas de monitoramento, sugere a reportagem. O Brasil usa um programa de satélite que rastreia a perda de árvores em grande escala, começando com áreas do tamanho de cerca de 10 quarteirões de uma cidade.

Mas há sinais de que os proprietários de terras estão desmatando áreas menores para escapar da detecção. O sistema não leva em conta outros fatores importantes, como a degradação, o desgaste de árvores por causa de incêndios e a extração de madeira.

A reportagem questionou como o governo do Acre pode ter certeza de que os créditos vendidos são válidos. Vera Reis, diretora executiva da agência ambiental estadual do Acre, disse que a credibilidade é "primordial" e que o país tem, sim, sistemas de monitoramento precisos, que detectam áreas menores.

A reportagem retrata também um problema de mercado, ao citar uma fracassada tentativa de implementação de uma indústria de cacau no Estado.

A matéria cita Fluvio Mascarenhas, analista do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Segundo ele, o governo tentou fazer com que as pessoas valorizassem produtos florestais brasileiros, como castanha e borracha, mas o mercado não acompanhou. "O mundo está nos dizendo que temos que preservar", disse ele, "mas ninguém está nos mostrando como fazer isso."

Esse tipo de problema é recorrente em projetos de compensação florestal em todo o mundo, explica a reportagem. Eles em geral têm como alvo moradores de zonas rurais que cortam árvores árvores para obter combustível ou para a agricultura, e que deixariam, em tese, de fazê-lo, mas isso só funciona se as vendas de crédito de carbono forem uma alternativa viável. Elas raramente são, diz a matéria.

A borracha da Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, é vendida por cerca de 2 reais o quilo, o suficiente apenas para uma xícara de café, enquanto uma vaca vale 800 reais.

Brasil usa programa de satélite que rastreia a perda de árvores em grande escala, mas há sinais de que os proprietários de terras estão desmatando áreas menores para escapar da detecção, diz reportagem

"O Brasil tem muito orgulho de ter produzido uma queda acentuada no desmatamento da Amazônia desde 2004. No entanto, é impossível dizer qual foi benefício adicional de financiadores estrangeiros. A queda coincidiu com um enorme programa federal de preservação. Quando o país afrouxou as restrições e a fiscalização em 2012, o desmatamento começou a aumentar", escreve a repórter.

A matéria cita uma pesquisa recente sobre as contribuições da Noruega para o Fundo Amazônia que observou que "ainda precisa ser comprovado com rigor analítico um elo causal para diminuir as taxas de desmatamento no Brasil".

No caso da reserva Chico Mendes, a reportagem explica que a cobertura florestal está mantida em 94%, mas, mesmo assim, o desmatamento aumentou 60% entre 2000 e 2016, de acordo com dados do pesquisador Mascarenhas.

A reportagem explica como a situação política pode influenciar o problema. O desmatamento já vinha crescendo. Agora, há incerteza diante do fato de que o governo do Acre está alinhado com o presidente Jair Bolsonaro, que apoia o agronegócio.

O dilema dos 100 anos

A reportagem explica que o dióxido de carbono permanece na atmosfera por cerca de 100 anos. Sendo assim, as compensações florestais só funcionam se as árvores permanecerem intactas por um século.

Só que isso não acontece.

Por exemplo, há o caso de créditos comprados pela Fifa como parte de um compromisso de sustentabilidade que a entidade fez antes da Copa do Mundo de 2014, no Brasil.

A ideia original era cessar o desmatamento em áreas altamente exploradas ao longo das fronteiras do território da tribo indígena Paiter-Suruí, em Rondônia.

Mas alguns membros do grupo, desiludidos com a quantidade de dinheiro que estava sendo destinada a grupos internacionais para gestão de logística, se juntaram a madeireiros e ativistas contrários aos programas de compensação de carbono para sabotar o projeto.

Se a Amazônia perder muitas árvores, ela atingirá um ponto de inflexão, deixará de ser um ecossistema exuberante e se transformará numa savana semiárida

O projeto vendeu 250.000 créditos. Enquanto isso, um líder tribal documentava a destruição. "Todos os dias, 300 caminhões deixam nosso território repletos de madeira", escreveu ele em uma carta pública em 2016. O projeto foi suspenso no ano passado, depois que os madeireiros destruíram mais árvores do que todos os créditos vendidos.

Os cientistas e especialistas em florestas com quem a repórter conversou dizem que, "se a Amazônia perder muitas árvores, ela atingirá um ponto de inflexão, deixará de ser um ecossistema exuberante e se transformará numa savana semiárida. As consequências seriam globais. E os países ricos não são generosos o suficiente para financiar a preservação das florestas tropicais sem receber algo em troca".


E-mail da pesquisadora Jutta Kill:


Bom dia a tod@s,

Novo artigo na BBC Brasil traduz grande parte do artigo de ontem de Lisa Song da ProPublica sobre REDD+, mas também faltam algumas partes importantes sobre a implementação de REDD na Reserva Chico Mendes, por exemplo. 
A materia na BBC confunde uns detalhes, como que o programa REDD+ do governo no Acre ainda não vende "créditos de carbono" . Mas são detalhes - no fundo, o calculo sobre carbono que o governo acreano faça para receber o dinheiro da alemanha (e agora também do governo do Reino Unido: https://www.pib.socioambiental.org/es/Not%C3%ADcias?id=197305 ** ) é exactamente o mesmo feito para vender os créditos de carbono aos industrias poluidoras. Mas, no geral, acho que o artigo da BBC Brasil é um bom resumo do artigo original publicado por Lisa Song. 


Para ler o artigo no original em EN, com fotos adicionais e texto sobre a situação na Reserva Chico Mendes e comentários de vari@s moradores da reserva:
um abraço,
Jutta

terça-feira, 21 de maio de 2019

O Mundo da Vida em Habermas


Habermas e o Mundo da Vida
Lindomar Dias Padilha[1]

            Aqui a ideia central é apontar relações nem sempre cordiais muito menos idênticas entre o mundo da vida em Husserl e Habermas. Em Habermas, o mundo da vida, por sua natureza de compreensão mesma, relaciona-se com o direito por interferências entre um e outro. Ainda que o direito, neste caso específico, não seja o tema central, temos que apontar que o direito é tido, ora como um meio de controle e organização dos sistemas do Estado e da economia, ora como instituição. E, a partir do momento que o direito como meio amplia sua função reguladora no mundo da vida, ele exerce a “colonização do mundo da vida”. “[…] invade destrutivamente o mundo da vida, perturbando lhe os processos de reprodução e, assim, ameaçando a manutenção dos seus componentes” (NEVES, 2006, p. 75).

            Foi o filósofo Edmund Husserl que, segundo MIRANDA (2009, p. 102, apud,  Pizzi,p.29), primeiro adotou o termo “mundo da Vida” em contraposição ao positivismo sociológico dos sec. XIX e início do XX. Nota-se em Husserl que o Mundo da Vida é uma tentativa de compreender as situações que norteiam a conduta humana que rompe com uma postura, digamos, natural. Assim, o mundo da vida em Husserl está diretamente ligado à cultura, ao mundo circunstancial e, digamos, independente da ciência ou pré-científica.

            Mas a análise, com enfoque na fenomenologia do mundo da vida em Husserl, seria realmente a mesma base, por assim dizer, em Habermas?

Não vou me deter aqui no método de Husserl, nem no contexto que cerca a introdução de seu conceito “mundo da vida”; eu me aproprio do conteúdo material dessas pesquisas, estribando-me na ideia de que também o agir comunicativo está embutido num mundo da vida, responsável pela absorção dos riscos e pela proteção da retaguarda de um consenso de fundo. (HABERMAS, 2002 p. 86, grifo nosso).

De fato, nos parece neste texto que Habermas, ainda que considerando e sendo intelectualmente honesto com tal conceito, sua preocupação e intenção é, antes, se valer do conceito direto sem considerar o momento e contexto em que Husserl o concebe. Daí falar em apropriação do conceito material. Ou seja, se de um lado, o mundo da vida em Hussel não seja tal e qual o concebe Habermas, é na realidade inserida culturalmente que ele se faz notar em ambos os casos. Por isso, a afirmação de que o agir comunicativo também está embutido “num” mundo da vida, onde “conteúdo material” sejam convicções comuns, familiares e culturais e interações linguísticas.

Entretanto, Habermas, ainda que se valendo do conceito de mundo da vida, se distancia de Husserl. Um ponto importante neste distanciamento é que o autor entende que a posição husserliana ainda se propõe a atuar numa filosofia da consciência em que o sujeito individualmente é responsável pelo conhecimento do mundo da vida e ainda se coloca, como o eu, sendo parte deste mesmo mundo conhecido. Neste caso, Habermas adota a filosofia da linguagem onde os conhecimentos dos indivíduos são construídos intersubjetivamente.

O autor não visualiza como desejável uma completa racionalização do mundo da vida, isto é, uma completa problematização de todos os conteúdos do mundo da vida e sua completa substituição por consensos reflexivos, ele entende que o processo de racionalização não acontece por ato de simples decisão racional.

A teoria do agir comunicativo destranscendentaliza o reino do inteligível a partir do momento em que descobre a força idea-lizadora da antecipação nos pressupostos pragmáticos inevitá-veis dos atos de fala, portanto, no coração da própria prática de entendimento […] A idéia do resgate de pretensões de validez criticáveis impõe idealizações, as quais, caídas do céu transcen-dental para o chão do mundo da vida, desenvolvem seus efeitos no meio da linguagem natural. (HABERMAS, 2002, p. 89)

Se o eu só é conhecido por meio de uma interação intersubjetiva, o mundo da vida só poderá ser conhecido na relação também intersubjetiva dos sujeitos de uma mesma comunidade linguística. Decorre daí, outro distanciamento onde Habermas diz que Husserl utiliza “mundo da vida” como oposto às idealizações feitas nas ciências sociais. Assim, “Husserl conclama o mundo da vida como a esfera imediatamente presente de realizações originárias” (HABERMAS, 2002, p. 88). O agir comunicativamente, então, se apoiaria, segundo o autor, também em pressupostos idealizadores. Ou seja, há por consequência do próprio agir comunicativo e a intersubjetividade no mundo da vida, uma estrutura transcendental.

O mundo da vida ocupa uma posição de destaque na obra do autor por se constituir como pano de fundo do agir comunicativo. A função mesma do mundo da vida é, ao mesmo tempo permitir que se formem consensos mas, se manter aberta às problematizações e ao risco de dissensos profundos. Tais dissensos, quando houver, o próprio mundo da vida e seu agir comunicativo, se incumbirá de, democraticamente recompor as possibilidades de novos consensos.

A introdução do agir comunicativo em contextos do mundo da vida e a regulamentação do comportamento através de instituições originárias podem explicar como é possível a integração social em grupos pequenos e relativamente indiferenciados, na base improvável de processos de entendimento em geral. É certo que os espaços para o risco do dissenso embutido em tomadas de posição em termos de sim/não em relação a pretensões de validade criticáveis crescem no decorrer da evolução social. Quanto maior for a complexidade da sociedade e quanto mais se ampliar a perspectiva restringida etnocentricamente, tanto maior será a pluralização de formas de vida, as quais inibem as zonas de sobreposição ou de convergência de convicções que se encontram na base do mundo da vida […] Este esboço é suficiente para levantar o problema típico de sociedades modernas: como estabilizar, na perspectiva própria dos atores, a validade de uma ordem social, na qual ações comunicativas tornam-se autônomas e claramente distintas de interações estratégicas? (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 44-45)

            A resposta a esta pergunta de Habermas, de forma simples e objetiva, seria o Direito. Na teoria discursiva, o papel que restaria ao mundo da vida é o de prover temas e argumentos para problematização em discursos de justificação, pelo devido processo legislativo. A linguagem coloquial, típica do mundo da vida e circulante na esfera pública, deve ser problematizada e transformada em direito legítimo. O mundo da vida, ao passar da subjetividade a intersubjetividade, teria que necessariamente contar com a existência de um sistema regulador, legislativo, o que não seria, para Habermas, demérito algum do “mundo da vida” uma vez que, na esfera pública, ainda que de forma regulamentada, o mundo da vida segue sendo sensos e dissensos da intersubjetividades.

Entretanto, como dissemos a análise do direito e mesmo da teoria do direito em Habermas, demandaria algo mais que um artigo. Podemos falar desta “regulamentação do comportamento através de instituições originárias” em termos mais propriamente relacionados com o agir comunicativo onde a intersubjetividade entre os sujeitos, em constante construção crítica de consensos, teria posição na regulamentação, ainda que não fosse em termos sistematicamente e abrangentes.

Poderíamos então dizer que na Teoria da Ação Comunicativa, Habermas quer, antes, convencer-nos de que o mundo simbólico em comum é na verdade um mundo da vida na medida em que o construímos e descontruímos, criticamente, e sempre em construção de consensos e dissensos que brotam das “intersubjetividades” dos sujeitos.


Referências:
ALMEIDA, A. A. de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa.
Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005.

HABERMAS, J. Pensamento pós-metafísico. Estudos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

HABERMAS,J. Direito e democracia. Entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 2003.

NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. O Estado Democrático de
Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MIRANDA, M. da S. O mundo da vida e o Direito na obra de Jürgen Habermas.
Prisma Jurídico, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 97-119, jan./jun. 2009.


[1] Lindomar Dias Padilha é bacharel em filosofia pelo instituto Paulo VI, licenciado em filosofia pela UECE, especialista em desenvolvimento social no campo povos indígenas, quilombolas e comunidade tradicionais, Pela UnB, e mestrando em  Direito pela Universidade Católica de Petrópolis - UCP.

domingo, 19 de maio de 2019

Chico Mendes vive na luta anticapitalista e antifascista! (que é uma luta só)


Chico Mendes vive na luta anticapitalista e antifascista!  (que é uma luta só)[i]

Michael F. Schmidlehner[ii]

Acesse a revista Trinta anos pós assassinato de Chico Mendes e destruição oculta de florestas e vidas no Acre  Clicando aqui e confira este e outros artigos)

O que queremos realmente dizer, quando afirmamos que “Chico Mendes vive”? A frase expressa a ideia de que as pessoas que tiraram a vida dele não conseguiram destruir seus ideais, e que estes ideais continuam sendo defendidos hoje. Mas eis a pergunta: quais seriam estes ideais e quem poderia ser considerado defensor do legado de Chico Mendes? Um texto do jornal Empate de 2003 (cit,in MORAIS 2012, p.26), mostra o quanto esta questão é controversa e polemica:

Os princípios que projetaram as lutas dos trabalhadores rurais acreanos e lançaram seu representante maior no cenário internacional foram abandonados em troca de um enganoso projeto de ‘desenvolvimento estadual’ com ‘sustentabilidade’. Os inimigos de Chico Mendes o eliminaram fisicamente. Os que se diziam seus amigos e aliados que, hoje, vivem e acumulam cargos e benefícios à custa de sua memória, tratam de eliminar seus sonhos, seus projetos, sua herança, seus princípios de não mercantilizar a floresta.

Analisando a apropriação e ressignificação dos ‘sonhos e ideais’ de Chico Mendes pelo Governo da Frente Popular do Acre – FPA, Maria de Jesus Morais (2012) mostra como este governo criou um discurso da identidade acreana ao associar a luta dos seringueiros com seu modelo de “desenvolvimento sustentável”. Aspectos mais radicais ou polêmicos do pensamento de Chico Mendes foram sistematicamente omitidos nesta narrativa governamental. Criava-se assim uma espécie de “Chico Mendes light”, que servia perfeitamente como produto promocional para inserir as florestas do Acre no emergente mercado global das “soluções” ambientais e climáticas – manejo madeireiro “sustentável”, carbono florestal, serviços ambientais – e atrair financiamentos de bancos e agências de desenvolvimento internacionais.

Voltando à pergunta inicial, que queremos dizer com “Chico Mendes vive” devemos ter em mente duas coisas. Primeiro: ao proclamar que Chico Mendes vive, situamo-nos inevitavelmente na esfera da interpretação. O homem não está mais fisicamente aqui para nos contradizer ou dar razão. Ninguém pode ser único ou “legitimo” articulador de seu legado na atualidade. O grau de legitimidade da nossa interpretação vai depender de quanto ela é referenciada nas ações e palavras da pessoa histórica de Chico Mendes. Segundo: as ações e as palavras de Chico Mendes têm que ser interpretadas como sua reação – a aplicação de seus ideais – à uma determinada situação histórica e política. Em outro momento histórico estes mesmos ideais tinham e terão que se expressar de outra forma. Enquanto Chico Mendes estava vivo, sua luta era contra a espoliação da Amazônia pelos fazendeiros. Diante a mercantilização da floresta em seu nome, os ideais de Chico Mendes foram – em nossa interpretação – defendidos pelos dissidentes deste projeto (como por exemplo o autor do artigo do Jornal Empate citado acima). Em reação à nova conjuntura política do Brasil a partir de 2019, a luta em nome de Chico Mendes terá que se reformular novamente.
Entendemos que Chico Mendes tinha forte espirito comunitário e não queria ser “advogado” dos povos da floresta no sentido de falar por eles. O apelo dele hoje provavelmente seria para não nos fixarmos demais em sua pessoa ou idolatrá-lo. Honrar o legado de Chico Mendes significa também usar nossa própria capacidade crítica e criatividade para levar a luta adiante. Neste sentido propomos, para fins deste ensaio, a seguinte resposta: “Chico Mendes vive” quer dizer que a luta da qual ele se tornou símbolo se renova e aprofunda na medida em que a realidade sociopolítica a qual ela precisa reagir muda.

Legado anticapitalista

Para hoje fazer referência aos ideais de Chico Mendes é preciso resgatar aqueles aspectos do seu pensamento que foram omitidos ou suprimidos na versão oficial das últimas duas décadas. Neste contexto precisa ser lembrado Euclides Fernandes Távora que é a pessoa que provavelmente mais contribuiu com a formação do pensamento de Chico Mendes.  Euclides era um militante do Partido Comunista Brasileiro que havia se refugiado na floresta acreana. Elder Andrade de Paula e Silvio Simione da Silva (2012, p.105) resumem a importância de Euclides na vida de Chico Mendes assim:

Com as ferramentas ofertadas por Euclides Távora, Chico Mendes não só aprendeu a ler e escrever. Apreendeu, sobretudo, a paixão pelas ideias revolucionárias de seu “velho amigo e instrutor” (forma respeitosa com que se referia a Euclides) e ao seu modo, um método de análise da realidade que orientou sua trajetória política e o projetou para reescrever a História da luta de resistência de uma parcela dos segmentos sociais subalternos na Amazônia brasileira.


Os ideais comunistas de Chico Mendes e sua clara ideia de luta social estão evidentes em seus textos, por exemplo, quando ele escreve em sua Carta ao Jovem do Futuro sobre a revolução socialista mundial que “unificou todos os povos do planeta num só ideal e num só pensamento de unidade socialista”. Outro exemplo é a forma como ele se refere ao Banco Interamericano - BID, (banco este, inclusive que no Governo da FPA ia se tornar o primeiro grande financiador do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Estado do Acre - PDSA), usando estas palavras: “Com isso, a ONU e as entidades ambientalistas americanas nos convidaram para participar de uma reunião do BID em Miami, em março de 1987. Eu fui, sabendo que estava em terreno inimigo.” (CUT/CNS 1988). A luta pela humanidade da qual Chico Mendes fala não é ambientalista, mas antes de tudo anti-capitalista.

Dois discursos - um só sistema de espoliação

Em 28 de outubro 2018 um novo presidente foi eleito no Brasil. A mudança no cenário político brasileiro, que está em curso desde 2016, se insere naquilo que críticos chamam “surto fascista”, fenômeno com que atualmente se deparam diversos países, onde políticas de extrema direita ganham espaço com um discurso de perseguição de minorias. No Brasil, além desta perseguição, espera-se nos próximos anos uma acelerada destruição da Amazônia.
As novas tendências fascistas, antes de tudo, têm que ser entendidas como consequência de décadas de globalização neoliberal, que criou um clima de insegurança e precarização e uma profunda frustração diante as múltiplas crises que ela criou e para a quais ela não tem resposta credível. A atual viragem a direita que na superfície parece “dar um basta”, romper com o sistema anterior, de fato – e isso pretendemos mostrar neste texto – conserva em grande parte existentes estruturas econômicas e de poder.
Nossa avaliação da atual conjuntura coincide com a tese formulada na década de 1930 por Georgi Dimitroff, que explica fascismo e "democracia burguesa" como duas formas diferentes do capitalismo. Neste sentido, a situação do Brasil hoje é em determinados aspectos comparável com aquela no início da década de 1920 na Itália ou aquela durante a Grande Depressão na Alemanha, quando a democracia burguesa foi transformada numa ditadura fascista, que manteve a exploração capitalista, mesmo com os meios mais brutais. Segundo Dimitrov (1938, p. 2, tradução nossa) fascismo é “ditadura abertamente terrorista dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas, e mais imperialistas do capital financeiro. ”
Podemos dizer que o sistema capitalista, em termos ideológicos, possui um caráter “camaleônico”, com dois principais discursos oscilando na sua superfície, que no contexto das atuais crises neoliberais se apresentam assim:
·        O primeiro discurso é de um suposto “consenso”, socialmente “inclusivo” e “politicamente correto”, reconhecendo parcialmente a existência de uma crise global e apresentando as políticas capitalistas – cujas consequências violentas e destrutivas ele oculta –  como “soluções”, através das quais “todos ganham”. Este discurso legitima mecanismos hegemônicos (menos violentos) de dominação. Ele pode ser chamado o discurso das falsas soluções.
·        O segundo discurso opera a partir da construção de um inimigo que possa ser excluído e abertamente perseguido. A crise global é basicamente negada e a “crise nacional’ simplesmente atribuída à atuação deste inimigo, dando-se a solução através da sua (política, cultural ou física) eliminação. Este discurso legitima mecanismos coercitivos (mais violentos) de dominação.  Ele pode ser chamado o discurso da negação.

Nas próximas páginas pretendemos mostrar, no contexto da Amazônia brasileira, que estes dois discursos se complementam e como – enquanto eles alternam e se sobrepõem – a espoliação continua e seus mecanismos econômicos em grande parte não mudam.

Exploração madeireira “sustentável”

O discurso das falsas soluções na esfera ambiental e climática foi idealizado inicialmente no âmbito do Banco Mundial e da ONU e consolidado nas grandes convenções que foram assinados na Eco-92. Consagrando o conceito de “desenvolvimento sustentável”, estes tratados preconizaram preservação do ambiente e do equilíbrio climático sem questionar o principal paradoxo do desenvolvimento capitalista: seu paradigma de crescimento económico ilimitado diante da limitação dos recursos naturais.
O Governo da FPA, como descrevemos no início do texto, reproduziu o novo discurso em nível local. No centro do desenvolvimento sustentável configuraram inicialmente os projetos de manejo madeireiro. O discurso apresenta estes projetos como inclusivos e participativos, denominando-os “manejo florestal comunitário sustentável”, enquanto os impactos violentos estão sendo sistematicamente ocultados. O relatório da Plataforma DhESCA de 2014 – veementemente desmentido pelo Governo da FPA – revela alguns aspectos deste “lado escuro” do manejo madeireiro, resumindo as queixas das comunidades afetadas, como por exemplo: “diminuição do território disponível para a realização de atividades tradicionais e de subsistência, [...] fuga de animais de caça, [...]  ‘Invasão’ de pessoas de fora das comunidades trazidas pelas madeireiras [...] exploração sexual de mulheres e meninas” (FAUSTINO; FURTADO, 2014, p.18)
O corte raso da floresta e a violenta expulsão de seus moradores que ocorreram em décadas anteriores seguindo o lema “integrar para não entregar”, foram trocados por uma matança silenciosa da vida do seringueiro. A proposta da Reserva Extrativista – originalmente do movimento seringueiro – foi desvirtuada e sucessivamente transformada em negócio pelas grandes ONGs e as madeireiras.

Dominação via Carbono

A relação de tutela que o Governo e as ONGs criaram com as comunidades rurais no Acre ao implementar os projetos madeireiros facilitou, predominantemente na década de 2010, a introdução dos programas para Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal – REDD e Pagamentos por Serviços Ambientais – PSA. Em 2012 o Governo criou por meio da Lei estadual 2.308 de 2010 (conhecida como lei SISA) e de um acordo com o estado da Califórnia (EUA) a base para um mercado regulado de Carbono e, com esta política, atraiu recursos do Fundo Amazônia (dinheiro principalmente da Noruega e da Petrobras), da Alemanha e recentemente do Reino Unido. Os países industrializados e os exploradores de combustíveis fósseis (A Noruega é um dos principais produtores mundiais de petróleo e gás) tem grande interesse em – através da compra de carbono florestal – “compensar” as emissões causadas por suas atividades, ou seja, “pagar para poluir”.
O discurso que enfatizava a vocação florestal do Acre e a previsão de poder vender créditos de carbono para Califórnia serviram como convite para os diversos empreendimentos de REDD privado que até hoje se instalaram no estado. Olhando de perto para alguns destes projetos, REDD revela-se como um poderoso novo mecanismo de espoliação da Amazônia que – mesmo utilizando a nova roupagem discursiva – conserva e reafirma antigas estruturas de dominação.   
A empresa estadunidense Carbon Co. LLC em parceria com a empresa Freitas International Group, LLC (nome de fantasia Carbon Securities) efetivou desde 2012 quatro projetos REDD no Acre: Purus, Russas, Valparaíso e Envira. As áreas onde estes projetos foram implantados são antigos seringais. Os parceiros locais da Carbon Co. que alegam ser proprietários destas florestas são em parte descendentes dos antigos seringalistas ou empresários que “compraram” as terras dos mesmos. Nestas áreas há históricos de conflitos de longa duração entre as comunidades – ex-seringueiros, ribeirinhos, pequenos produtores – e os supostos proprietários. Gerson Albuquerque (2012) descreve alguns destes conflitos no antigo seringal Valparaíso, e como as arcaicas relações de trabalho lá sobrevivem até hoje. Em entrevistas realizadas na década de 1990, moradores da área descrevem a relação com o atual “proprietário” da área, Manoel Batista Lopes:

Moro há 53 anos lá. Ele, lá no seringal, mata nossos porco, nossos cachorro. Primeiro ele mandava os capanga matá. A gente tinha que assiná um contrato prá prantá e só podia prantá pouco, na capoêra, num podia desmatá. Quem pescá no lago tem que dividi cum ele, se não dé ele diz que vai dá parte na justiça. (ALBUQUERQUE 2012, p. 18).

O violento regime de dominação que perdura nas florestas acreanas desde o primeiro surto da borracha não só não mudou com a nova economia florestal promovida pelo Governo da FPA, mas reafirmou-se na lógica dos projetos REDD. A proibição das atividades de subsistência que antes objetivava a maximização da produção de borracha, hoje serve para maximizar a estocagem de carbono na biomassa. O que mudou drasticamente com o novo modo de produção é o discurso. Agora encontram-se placas do projeto REDD nas colocações da área exibindo – ao lado das proibições do projeto – a frase: “A comunidade é parceira”.

Na mesma linha “eufemística”, as descrições oficiais dos projetos da Carbon Co. no Acre, enfatizam aspectos como participação, transparência e repartição de benefícios com a comunidade.  No documento descritivo do projeto Envira (MCFARELAND 2015, p.42) lemos por exemplo que eventuais queixas por parte da comunidade seriam atendidas pela empresa do promotor local do projeto, Duarte José de Couto Neto. Esta empresa seria ao mesmo tempo proprietária da área, ou seja, para os moradores Duarte de fato representa o “patrão”. O nível de participação e transparência que pode ser esperado do “atendimento” por este empreendedor ambientalista pode ser deduzida de suas declarações públicas, nas quais afirma entre outros ter “saudade, e muita do regime militar” (cit. in KILL, 2018).
Por meio do carbono como novo produto, implementa-se um novo modo de produção nas florestas, assentado nas antigas relações de dominação capitalista criadas pelos seringalistas. Para vender este produto – projetado para salvar o mundo da catástrofe climática –, o discurso que o promove precisa ofuscar as reais relações da sua produção. Neste sentido, a vinculação com o “legado” de Chico Mendes é um elemento essencial para a promoção dos projetos REDD. Na página de venda online da Carbon Securities (na versão em inglês) consta:

Hoje, a Carbon Securities firmou parceria com a Fundação Chico Mendes, gerida e operada por Ilzamar Mendes e Elenira Mendes, esposa e filha de Chico Mendes. Temos o prazer de manter vivo o espírito e a iniciativa de Chico Mendes e estaremos sempre lutando para salvar a floresta tropical juntos. (CARBON SECURITIES 2018, tradução nossa)

REDD: a ameaça vira ”oportunidade”
Surge a questão sobre o futuro dos projetos do tipo REDD no novo cenário político no Acre e no Brasil a partir de 2019. As esperadas políticas de eliminação do – como diz o presidente eleito – “ativismo xiita ambiental” e a reduzida fiscalização ambiental vão afetá-los ou inviabilizá-los? Seguindo nossa tese que o discurso das falsas soluções e o discurso da negação se complementam em uma só lógica de espoliação capitalista, esta mudança não pode afetá-los fortemente. Sem alongar especulações sobre o futuro, podemos mencionar duas circunstâncias que apontam para a persistência destes projetos.
Primeiro: projetos privados de REDD, como aqueles da Carbon Co. por enquanto vendem certificados apenas no mercado voluntário. Para isso eles não dependem de uma base jurisdicional específica. Mesmo se, com o fim do Governo da FPA, as transações com Califórnia não se realizem, estes projetos podem continuar vendendo seus créditos para empresas ou pessoas físicas no mundo inteiro que desejam diminuir ou apagar sua “pegada de carbono”. Entre 2016 e 2017, o projeto Envira vendeu créditos no valor de pelo menos 750.000 toneladas de carbono. (KILL 2018) No site da Carbon Securities (2018) pessoas podem comprar tais créditos online por dez dólares por tonelada. Baseado neste preço, o valor de mercado do carbono vendido pelo projeto Envira em dois anos totalizaria mais que 7,5 milhões de dólares.
Projetos privados de REDD teoricamente podem se tornar ainda mais lucrativos num cenário geral de desmatamento aumentado, uma vez que podem reivindicar mais “adicionalidade”. Que significa isto? Na medida em que um empreendedor REDD pode argumentar que a floresta que seu projeto supostamente preserva esteja ameaçada, este seu projeto vale mais redução de carbono em comparação com um cenário sem projeto. Na paradoxal logica da adicionalidade, a ameaça de desmatamento ou degradação florestal acaba “valorizando” o carbono florestal e transformando a ameaça em oportunidade de negócio.
Segundo: mesmo que algumas declarações do novo presidente eleito apontam para uma possível saída do Brasil do acordo de Paris, há indícios que isto não ocorra. A permanência do Brasil, com a consequente concretização de uma política nacional de REDD compensa economicamente. Um analista da revista Forbes argumenta neste sentido:

Os europeus fazem questão de destacar para Bolsonaro e para os poderosos interesses agrícolas que o apoiam, que o Brasil é um dos maiores beneficiários de ser signatário do Acordo de Paris. Como o país está na vanguarda da vulnerabilidade às mudanças climáticas e da capacidade de combatê-lo, ele recebe milhões em subsídios como parte do regime de Paris que desapareceria se abandonasse o acordo. (KAETING 2018, tradução nossa)

Para sustentar seu vício em combustíveis fosseis, os países industrializados necessitam o pretexto de “compensar” suas emissões.  Para o Brasil, por sua vez, esta dependência apresenta uma oportunidade de fazer um jogo duplo de ameaça e proteção da Amazônia, barganhando-a como “sumidouro de carbono”.

Sinergias com o agronegócio: o novo Código Florestal

O texto acima citado menciona os “poderosos interesses agrícolas” que apoiam o novo presidente do Brasil. Por que projetos “ambientalistas” como REDD e PSA seriam no interesse do agronegócio? Dois anos depois da criação da Lei SISA, o então senador Jorge Viana foi relator do novo Código Florestal (Lei nº12.651 de maio de 2012). Esta lei, marca a mudança de uma política exclusivamente de restauração para uma política com amplas possibilidades de compensação de desmatamentos. A Cota Rural Ambiental (CRA) é a peça central neste sistema de compensação, uma vez que pode ser usada para cumprir a obrigação de Reserva Legal em outra propriedade, ou seja, o proprietário que desmatou além do permitido, por exemplo um sojeiro da Amazônia mato-grossense, pode compensar essa dívida através de CRAs de outro local, dentro do mesmo bioma, seja em Mato Grosso ou, por exemplo, do Acre. O Novo Código Florestal, em seu artigo 41 inclusive autoriza e incentiva a “cumulação” de diversos tipos de compensações, quando autoriza o Poder Executivo a instituir programas para “pagamento ou incentivo a serviços ambientais [...] isolada ou cumulativamente” (grifos nossos), listando os sete serviços ambientais que haviam sido definidos em 2010 na Lei SISA e acrescentando como oitavo item “a manutenção de Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito”.
O relatório “Preparando a implementação da Cota de Reserva Ambiental em Mato Grosso” explica este “uso cumulativo” dos diversos serviços ambientais a partir da CRA pelos latifundiários do estado:

Além disso, a CRA sendo um atestado da existência de uma área florestal conservada, ela pode ser usada para outros fins e em outros mercados além da compensação de passivos de reserva legal: por exemplo, pode ajudar a viabilizar mecanismos de Redução de Emissões do Desmatamento e Degradação Florestal (REDD), estabelecendo um título conversível em toneladas de carbono; ou ainda, pode servir em ações de responsabilidade ambiental de empresas, como um “vale-floresta”, etc. Poderia também ser usada em pagamento da compensação ambiental de empreendimentos hidrelétricos, conversão de multas de impactos ambientais como derramamento de petróleo, dentre outros. (sem prejuízo da responsabilidade de remediação dos danos). (ICV 2013, p.9)

Neste sentido, a então Senadora e presidenta Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Katia Abreu comenta que sua organização procura “fundos e corporações que querem compensar suas emissões com a redução das emissões dos agricultores brasileiros” (cit, in CARDOSO 2012).
O novo Código Florestal cria fortes sinergias entre dois poderosos mecanismos de acumulação de capital no Brasil: o do agronegócio e o do carbono. Além disso, ele oferece para as agro-oligarquias – até então “anti-ambientalistas” que reproduziram o discurso da negação – a possibilidade de se apresentarem como protetores da Amazônia. Ou seja, de se apropriarem do discurso das falsas soluções. Nas palavras de Jorge Viana sobre o novo Código Florestal esta função fica clara: "Quando o meio ambiente ganha, ganha o agronegócio, ganha a produção, ganha a economia". (SENADO FEDERAL 2011)

“Limpando o ar” para as multinacionais

Não são apenas os latifundiários que ganham com o agronegócio. Alimentando o crescente vício do mundo industrializado em carne e biocombustíveis, a produção das commodities agrícolas (como soja, cana de açúcar, milho) por sua vez é viciada no uso de produtos de empresas multinacionais, tais como sementes (patenteadas ou transgênicas) e agrotóxicos. Nos últimos três anos houve forte concentração corporativa neste ramo. Atualmente, os quatro “gigantes” do agronegócio mundial são: Corteva Agriscience (resultante da fusão de Dow com Dupont em 2015), Chem China (que comprou Syngenta em 2017), Bayer (que comprou Monsanto em 2018) e BASF.
Para nossa análise, Bayer – agora a maior corporação agrícola do mundo – e BASF merecem especial atenção. Após a compra da empresa americana Monsanto pela Bayer por cerca de US$ 66 bilhões, a BASF – por exigência das autoridades de defesa da concorrência – adquiriu ativos da Bayer no valor de cerca de US$ 7,24 bilhões. Com isto, estas duas multinacionais alemãs assumem uma posição dominante no agronegócio brasileiro. Combinadas, as vendas de Bayer e Monsanto no Brasil somam R$ 15 bilhões anuais (PORTALDOAGRONEGOCIO. 2018). Ao mesmo tempo, por serem fortes componentes da economia exportadora alemã, Bayer e BASF vêm participando em diversas iniciativas juntas com o governo daquele país. Estes programas, como por exemplo German Food Partnership (GFP, Parceria Alimentar Alemã), fóruns para “soja responsável” e “óleo de palma responsável” frequentemente são criticadas por organizações da sociedade civil, que veem nelas uma “lavagem verde” para as insustentáveis práticas do agronegócio. O apoio à implementação do novo Código Florestal pelo Governo Alemão é igualmente consistente com seu interesse na expansão do agronegócio no Brasil. Entre 2014 e 2020, o Ministério para Cooperação e Desenvolvimento da Alemanha (BMZ) apoiou a operacionalização do CAR com 5,5 milhões de Euro. (GIZ 2017)
Mas, sobretudo temos que mencionar neste contexto a recente implantação do programa alemão REDD Early Movers no estado de Mato Grosso (para mais informação sobre este programa, leia o artigo de Jutta Kill nesta revista). Por que a Alemanha quer “premiar” por sua política climática justamente aquele estado Brasileiro, que desde décadas é considerado o líder em desmatamento e o berço do agronegócio brasileiro?
O período em que o acordo para financiar REM em Mato Grosso foi fechado (final 2017) coincide com a consolidação da compra de Monsanto pela Bayer. Neste momento já se sabia que a Bayer terá que lidar com as grandes polêmicas em torno dos produtos agrotóxicos que assumiria da Monsanto. No foco desta polêmica internacional estão os herbicidas da linha Roundup com o princípio ativo glifosato, que segundo estudos independentes é considerado possivelmente cancerígeno. O presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja-MT) comenta sobre este veneno: “Sem glifosato não tem safra no Brasil” e “Hoje produtor não sabe mais plantar de outra forma a não ser esta” (ESTADÂO 2018). A função de “lavagem verde” pelo programa REM – isto é a tentativa de com ele encobrir os impactos violentos do agronegócio por meio do discurso das falsas soluções – fica evidente a partir deste momento.
Olhar para o histórico das duas corporações alemães nos permite entender ainda melhor certas dinâmicas discursivas. Na época do regime nacional-socialista alemão, Bayer e BASF faziam parte de uma só empresa aglomerada, chamada IG Farben. A IG Farben foi responsável pela produção do gás venenoso Zyklon B que foi usado para assassinar milhões de pessoas nos campos de extermínio. A mão de obra da empresa era em grande parte trabalho forçado, incluindo 8000 internos dos campos de concentração. A estreita cooperação com o Governo nazista levou a um quintuplicar dos lucros líquidos da IG Farben entre 1933 e 1943. (HAYES 1987, p.124)
Hoje, a Bayer diz “contribuir para a formação e o bem-estar da sociedade, além de [desenvolver] ações de preservação do meio ambiente.” e BASF assegura criar “química para um futuro sustentável”. Como tal “conversão” pode ser explicada? Insistimos que as corporações capitalistas não possuem ideologia ou filosofia. Elas obedecem unicamente ao imperativo da acumulação de capital. O caráter inexorável da progressão desta lógica encontra sua simples expressão no título da revista mensal da IG Farben de maio 1938: "De fábrica para fábrica".

Empresas como Bayer e BASF, seguindo a dinâmica camaleônica do sistema capitalista, constantemente adaptam seu discurso para conciliar seus mecanismos de acumulação com a moral da época. Esta dinâmica acaba conservando estruturas de poder: o discurso muda justamente para que as relações de poder não mudem. Desta forma, as estruturas coloniais e imperiais vêm se reafirmando ao longo dos séculos.

Concluindo

A intensificação do desmatamento e dos atos de violência contra os povos da floresta que se iniciam com a nova presidência e seu discurso da negação desafia a sociedade civil para adotar formas mais diretas de resistência. Porém, o perigo neste momento é que o discurso das falsas soluções possa se fortalecer diante da ameaça, apresentando-se como “única alternativa” para lidar com a crise. Não devemos cair neste engano. Os movimentos sociais precisam reconhecer que os dois discursos se complementam e juntos promovem a espoliação capitalista da Amazônia
Na medida em que o capitalismo extingue vida na terra, a luta da esquerda se tornará uma luta ecológica. Uma ecologia política – isto é uma abordagem que reconhece a dimensão essencialmente política da questão ambiental – inspirada na luta anticapitalista do movimento dos povos da floresta e Chico Mendes pode nortear a esperada reformulação da esquerda no Brasil pós-2018. As palavras que Euclides Távora dirigiu a Chico Mendes em 1964, parecem valer novamente para nós hoje: “[...] por maior que seja o massacre, sempre existirá uma semente que renascerá e aí você terá que entrar, mesmo que seja daqui a oito, dez anos.” (CUT/CNS 1998) Só que hoje a acelerada destruição da base da vida pelo capitalismo não nos permite mais esperar muito.


Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues. Cultura, Trabalho e Lutas Sociais entre Trabalhadores Agro-Extrativistas do Rio Valparaíso na Amazônia acreana. Revista Nera, n. 5, p. 13-33, 2012.
CARBON SECURITIES. Who we are. Website da empresa Freitas International Group, LLC. Disponível em: http://www.carbonsecurities.org/about.html. Acesso 06 de novembro 2018.
CARDOSO, Alessandra, Novo Código Florestal: arquitetura institucional e financeira para o "agronegócio verde" Publicado em 15/06/2012. Disponível em: http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-do-inesc/2012/junho/novo-codigo-florestal-arquitetura-institucional-e-financeira-para-o-agronegocio-verde. Acesso 07/11/2018
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[i] Artigo pulicado originalmente na revista Trinta anos pós assassinato de Chico Mendes e destruição oculta de florestas e vidas no Acre, em dezembro 2018
[ii] Michael Franz Schmidlehner, formado como mestre em filosofia na Universidade de Viena, nativo da Áustria e brasileiro naturalizado, é pesquisador e professor de filosofia.