sábado, 21 de outubro de 2017

AMARONAC: Sul do Amazonas, Rondônia e Acre, na roda do agronegócio e mineração


A parte Sul da Amazônia brasileira, incluindo o Sul do estado do Amazonas, Rondônia e Acre (AMARONAC), tem sido alvo da sanha do agronegócio e da mineração, o que tem elevado significativamente a violência e assassinatos de trabalhadoras e trabalhadores rurais e povos indígenas. Este aumento da violência trás uma necessidade de uma atenção maior por parte dos setores  e organizações ligadas aos direitos humanos e a luta no campo.

Recentemente, em conversa com o amigo e jornalista Alceu Castilho, que mantem o observatório DE OLHO NOS RURALISTAS , por ocasião do II seminário Nacional do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores dos Direitos Humanos (CBDDDH), percebemos a necessidade de darmos maior visibilidade a esta região e iniciarmos uma articulação maior com entidades e movimentos que atuam mais diretamente nesta região com o intuito de prevenir e evitar tantas mortes e violências quanto possível.

Para facilitar o processo de articulação e principalmente para divulgação é que entendemos que seria interessante criarmos uma nomenclatura que expressasse a região da qual estamos falando, por isso estou grafando a região com a sigla AMARONAC.  Sei que a demanda é imensa mas se não fizermos algo agora, o depois poderá ser tarde demais.

Este post tem por finalidade fazer uma convocatória para que instituições, movimentos e pessoas preocupadas com o tema possam criar ou ampliar a rede de articulação na região. Convocar também pesquisadoras e pesquisadores para que se juntem a nós e facilitem a produção de subsídios e pesquisas nesta área. Também convocamos as pastorais do campo para que tenham esta região em conta nos seus planejamentos.

Uma lamentável prova do aumento dos assassinatos e violências em geral no campo e nesta região do AMARONAC,  pode ser notada na publicação VIDAS EM LUTA  publicado recentemente e que trás casos de assassinatos na disputa pela terra e por serem as vítimas defensoras e defensores de direitos humanos.. 

Seguimos defendendo vidas.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Temer, o maître do agronegócio

"As lideranças indígenas, por sua vez, vem reafirmando que não são peças de museu ou representantes do passado, mas povos que com sua diversidade, culturas e experiências nos apontam para um futuro onde na base não estão as riquezas apropriadas e privatizadas, mas o pleno exercício da partilha que gera igualdade"

Para os que gostam de cinema, permitam-me uma alegoria tendo como base “Titanic”, filme de James Cameron que neste ano completará 20 anos. No premiado filme, que conta a história de um dos maiores naufrágios da história, visivelmente percebemos a disposição das classes sociais no transatlântico. Diferenças que se evidenciam principalmente quando o navio está afundando.
Desde a alçada de Temer à Presidência fica cada vez mais evidente para quem pilota este timoneiro. Nas luxuosas cabines do navio-Brasil, regadas à Moët & Chandon, seguem os ruralistas recebendo, em seus cardápios, opcionais que vão desde perdão das dívidas a refinanciamentos inimagináveis. Em matéria publicada pelo Cimi, podemos notar que além de timoneiro Temer também é um bom maître. Citando a relação explícita do (des)governo com os ruralistas, afirma a matéria, referindo-se aos almoços da bancada ruralista em região nobre de Brasília:
“Recentemente, o banquete contou com a presença – nada incomum – de Michel Temer, com quem os ruralistas negociaram o perdão da dívida de R$ 5,4 bilhões de proprietários de terras com a previdência rural. Para salvar-se das denúncias de corrupção e garantir sua permanência no governo, Temer foi generoso: autorizou o pagamento de dívidas rurais até 2032, com redução de 100% dos juros e de 25% das multas. O abono resultou que dos 263 votos pelo arquivamento da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o presidente, 129 foram dados por deputados da FPA”.
Esta promíscua relação já dava seus sinais quando Temer recebia, em abril de 2016, as propostas a ele entregue pelos ruralistas. Estas propostas, chamada “Pauta Positiva” da Frente Parlamentar da Agricultura, apresentava dentre as primeiras “necessidades do agronegócio” a chamada por eles “segurança jurídica”. Após assumir ilegitimamente o cargo de Presidente participa de atividades do agronegócio, mantendo um discurso não muito diferente de Lula, embora não tenha chamado o setor de “heróis”.
Na posse da nova diretoria da FPA, em fevereiro de 2017, Temer afirmou: “quando dizemos que o Brasil tem rumo eu olho na direção do agronegócio”. Ninguém menos tomava posse naquela data que o deputado ruralista do PSDB de Mato Grosso, Nilson Leitão, presidente da Comissão Especial da PEC 215/2000 e investigado pelo Ministério Público Federal por atuar junto aos invasores da Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante, localizada no nordeste de Mato Grosso. Este mesmo que conduziu a CPI que supostamente investigaria Funai e Incra, e que na verdade converteu-se, já em uma segunda versão, em palco para pedir o indiciamento indígenas, servidores e organizações defensoras dos direitos dos povos indígenas.
Aqui lembremos novamente de Cameron, que em outro de seus filmes, Avatar, evidencia que os interesses exploradores da natureza não respeitam nada que se interponha a possibilidade de transformar a natureza em riquezas apropriadas por alguns em detrimento dos povos.
As lideranças indígenas, por sua vez, vem reafirmando que não são peças de museu ou representantes do passado, mas povos que com sua diversidade, culturas e experiências nos apontam para um futuro onde na base não estão as riquezas apropriadas e privatizadas, mas o pleno exercício da partilha que gera igualdade. Talvez isso nos remeta a outro filme de James Cameron: O Exterminador do Futuro, cujo ator principal agora cede seu lugar à Temer e ao seu “exército de exterminadores”.
Dentre as armas empunhadas, um Parecer de número 01, da Advocacia Geral da União, visivelmente resultado de algum almoço, jantar ou cafezinho de agentes do governo com o ruralista Luis Carlos Heinze, como o mesmo divulgou em vídeos antes mesmo da publicação. O Parecer, assinado por Temer poucos dias antes, buscava de forma evidente influenciar o julgamento de Ações Cíveis Originárias no STF, ocorrido no dia 16 de agosto.
Como nas cenas finais da ficção Avatar, na realidade concreta dos povos indígenas as alianças seguem firmadas e os povos se unem na defesa do simples desejo de seguirem sendo eles mesmos em seus territórios.
Em repudio às iniciativas da bancada ruralista e à audiência convocada por Leitão, o Instituto Raoni, em carta divulgada no dia 11 de outubro, sentencia: “Queremos manter nossos territórios para manter nossa cultura e nosso modo de vida. Nosso futuro depende do nosso território, livre de invasores e de parlamentares com opiniões e atitudes contrárias e que infere aos direitos indígenas.”
 Publicado em   Congresso em Foco
Reproduç

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

O “Fluxograma de Marillac” e o Papa Francisco I

O “Fluxograma de Marillac”, como denominei seu gráfico, propunha uma Igreja contemporânea, feminina, materna e compreensiva.
Amyra El Khalili*
Amyra-el-Kalyli(1)Ela queria ser santa. Desde menina, a vocação para a vida religiosa clamava em sua alma. Irmã Maria do Carmo Costa foi referência para muitas comunidades por sua sabedoria e serenidade, principalmente na hora de sua morte. Por convicção, acreditou na medicina alternativa, nas plantas medicinais e nas terapias herdadas dos povos indígenas e  tradicionais e com eles aprendidas.
Marillac era seu nome de batismo na Igreja católica. Fundou o Instituto de Educação para a Saúde Integral (IESAI). Como enfermeira religiosa, diretora da Escola de Enfermagem Wenceslau Braz (EEWB) e madre superiora da Congregação das Irmãs de GAP (Itajubá-MG), por quatro mandatos, trabalhou para implementar a cura pela água, pelas terapias preventivas e pela boa alimentação agroecológica.
Antes de falecer, acometida pelo câncer, presenteou-me com um exemplar da Bíblia. Na dedicatória, o recado:
“Minha querida Amyra, o melhor presente para a festa da vida é a Palavra de Deus! Nela você encontrará o que seu coração busca: a paz, a serenidade, o sentido da vida, o Amor Incondicional de Deus! Com carinho e amor, sua tia Ir. Maria do Carmo Costa. 16/07/2004″.

Foto: Sítio Iesai, Piranguinho, MG
Sítio Iesai, Piranguinho, MG

Foi o que fiz: em um momento de profunda angústia, sem saber para que lado seguir nesta caminhada, resolvi ler a Bíblia sem o apoio de clérigo ou teólogo. Quando comecei a ler o livro do Gênesis, lembrei-me do “Fluxograma de Marillac”.
Maria do Carmo desenhou um fluxograma para explicar as doenças da humanidade no plano material e espiritual e a transformação através da cura. Dizia-me: “Amyra, tudo foi redimido, mas nem tudo foi curado. Cristo caiu no fundo do poço para que todos(as) caiam nele!”.
Para Maria do Carmo, esse Deus não tinha gênero. Era pai-mãe-providência.
O “Fluxograma de Marillac”, como denominei seu gráfico, propunha uma Igreja contemporânea, feminina, materna e compreensiva. Nele, Maria do Carmo criticava duramente a Igreja Católica por sua postura patriarcal e conservadora. Para ela, esta era a verdadeira razão pela qual tantos fiéis estavam se afastando da doutrina. Eu mesma me tornei muçulmana por questões de identidade étnica e cultural. Ela me entendeu e apoiou sem questionar ou criticar. Ela era ecumênica e bebia de diferentes fontes para inspirar-se.
Ela pedia, em orações, a transformação da Igreja e agia, em sua pregação, para que isso acontecesse no caminho da cura, do perdão e da compreensão. O fluxograma e suas palavras de bom senso pautaram  minha trajetória profissional quando rompi com a ortodoxia econômico-financeira e passei a combater, com conhecimento de causa, as mazelas do sistema financeiro. Seus ensinamentos passaram a ser o “princípio norteador” de meu trabalho como economista, professora e ativista, apoiando as “lutas emancipatórias dos povos”.
Ao ler a Bíblia, do livro do Gênesis até “os Livros Proféticos”, ficou clara a mensagem do “Fluxograma de Marillac”: era necessária a ruptura. Sem a ruptura, não seria possível a transformação; desta forma, retornaríamos ao caminho da  dor (guerra e doenças) e não do amor (paz e cura). Parei por aí. Não me sentia capaz de continuar sem suporte. Aquilo estava me torturando.
Ao nos presentear com a encíclica ecológica, o Papa Francisco I nos convida à reflexão.
Ao nos presentear com a encíclica ec.ológica, o Papa Francisco I nos convida à reflexão

Um mês depois dessa leitura, o Papa Francisco I nos brinda com a Encíclica Ecológica. Não acreditei no que li. Cada palavra soava como a fala de Maria do Carmo e seu fluxograma. Mesmo que ainda se mantenha o conservadorismo em relação a alguns tabus, ali estava o suporte de que eu necessitava para compreender a mensagem de minha amada tia, orientadora e matriarca da família.
Muito se tem escrito, analisado e debatido sobre a encíclica ecológica “Laudato Si” do Papa Francisco I. Porém, aqueles que conheceram Maria do Carmo e com ela conviveram, entenderão a magnitude deste posicionamento para “aclarar as ideias” neste momento de crise econômica e sociopolítica mundial.
Maria do Carmo nos ensinou que, sem cura, o perdão não se sustenta, pois o ódio, a miséria e a tragédia se perpetuarão pela dor. 
Ao nos presentear com a encíclica ecológica, o Papa Francisco I nos convida à reflexão e valida o chamamento que já constava nas súplicas do coração amoroso e maternal de Marillac.
Se Maria do Carmo, desde menina, queria ser santa, esta “graça” se materializou nos novos rumos que a Igreja Católica está tomando a partir das iniciativas do Papa Francisco I, especialmente nesse documento.
Talvez o Papa Francisco I nunca venha a saber, mas ao nos guiar pelo amor, ele simplesmente reconheceu a santidade de Marillac!
*Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras.

terça-feira, 3 de outubro de 2017

SER OU NÃO SER MERCADORIA - EIS A QUESTÃO!

Por Amyra El Khalili*
"Por que temos que comprar alimentos caros e ruins nos supermercados? Se é que o que está no supermercado pode se considerar 'alimento'. Dar uma papinha industrializada para seu bebê é estar alimentando-o?"
O debate sobre a “descomoditização” é antigo. Começou bem antes da fundação do Movimento Via Campesina (1992) e do slogan cunhado pelo ativista campesino José Bové — “O mundo não é uma mercadoria” (1999). Essa discussão desenvolveu-se em fins da década de 80 e início da década de 90 entre alguns operadores de commodities e de futuros desde a adoção pelos banqueiros e políticos da teoria neoliberal de Milton Friedman, da escola de Chicago.
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A origem dos mercados futuros é também anterior ao capitalismo. Sua história tem registros há milênios na China e na Índia entre os povos nômades que levavam mercadorias de um lado para o outro atravessando os desertos da Ásia, da África e do Leste Europeu e combinavam o preço futuro (trocas) quando retornassem à porta da casa do freguês trazendo na volta suas encomendas. Os chineses são os maiores, em volume de negócios, e os mais agressivos operadores de commodities e de futuros do mundo.

Mercados sempre existiram com ou sem o capitalismo, porém com o capitalismo as trocas se tornaram monetárias, ou seja, em vez de trocarmos as coisas por outras coisas, por exemplo, um pedaço de carne por pão, uma galinha por um quilo de farinha, passamos a trocar as coisas por moeda (dinheiro). Daí, o que era feito de forma limitada e por subsistência (para atender às necessidades básicas) passou a ter outra conotação e relação de valores.

Poderíamos discutir as trocas de seres humanos por comida, de crianças por animais, entre tantas outras que também existiam antes do capitalismo e ainda persistem com todas as duras conquistas pelos direitos humanos e ambientais. O fenômeno de mercantilizar coisas e pessoas ou o que deve ou não ser mercadoria, a ética e que tipo de valores pautam essas atitudes, independentemente de ideologias e religiões, devem ser estudados à luz da ciência econômica, social, política, jurídica e, sobretudo, à luz da psiquiatria. Somente o ser humano mata por prazer. As outras espécies não agem dessa forma.

Voltemos para os mercados futuros e tomemos como exemplo o caso do matemático chinês David X. Li, cuja fórmula elegante, a Cópula de Gaussian, foi reproduzida pelos operadores de Wall Street. O método de David X. Li foi adotado por todos, desde os investidores em títulos, os bancos de Wall Street, agências de classificação de riscos (rating) e reguladores. E tornou-se tão profundamente enraizado no “modus operandi” do sistema financeiro que muitos fizeram dinheiro com este modelo matemático, porém ignoraram as advertências sobre as limitações do uso dessa metodologia e seus potenciais riscos. Não existe probabilidade zero nos mercados futuros. Sempre haverá riscos proporcionais ao tamanho dos ganhos. Aliás, dependendo do volume financeiro da aplicação, os riscos podem ser também correspondentes à capacidade da alavancagem (velocidade e volume entre alta e baixa) desses mercados. Assim sendo, estima-se que, para cada grama de ouro, multiplicam-se em torno de 100 vezes a possibilidade de se realizar prejuízos.

O modelo de David X. Li se desfez, produzindo falhas que apareceram desde o início da crise em 2008 com a quebra do Banco Lehman Brothers, engolindo trilhões de dólares e colocando em risco a sobrevivência do sistema financeiro internacional, que, como papagaio, repete as mesmas práticas sem qualquer fundamento técnico quando se trata de ganhar dinheiro rápido com o mantra: “temos que aproveitar as oportunidades que as crises nos proporcionam!”.

Modelos matemáticos

Seriam uma fórmula matemática e seu autor os responsáveis pelo rombo de Wall Street?

A tragédia encontra-se no subprime, o sistema multitrilionário que permitiu que os fundos de pensão, companhias de seguros e os fundos de hedge (cobertura) emprestassem trilhões de dólares para as empresas, países e compradores de casas.

A responsabilidade, na verdade, é de quem usou a fórmula inadvertidamente, até porque, em um mercado desregulamentado, ninguém é obrigado a utilizar nenhuma metodologia, a não ser que seja imposta por força da lei ou por um lobbypoderosíssimo como está ocorrendo com a adoção da TEEB (“The Economics of Ecosystems and Biodiversity” — A Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade), cujo relatório foi coordenado pelo físico e economista indianoPavan Sukhdev. Como usar a TEEB e interpretá-la também deve ser responsabilidade atribuída aos que dela se utilizam. Porém não significa que a partir do momento em que a ONU adota essa metodologia não deve ser questionado para o quê e com quê objetivos a TEEB foi concebida.

Como economista brasileira de origem beduíno-palestina, recuso-me a aceitar fórmulas matemáticas e modelos econômicos impostos de cima para baixo e de fora para dentro, testando teorias financistas com seres humanos e o ambiente. Sou autora de uma fórmula matemática que ainda, por questões de segurança, noção de risco e por não subestimar a inteligência alheia, não revelei e não pretendo revelar tão cedo.

Diferentemente de David X. Li, não a fiz para ganharem dinheiro com ela e também, a exemplo do executivo indiano egresso do Deutsche Bank, Pavan Sukhdev, não a fiz por encomenda dos banqueiros, das corporações e nem da ONU.

Foi por convicção de que era necessário introduzir uma célula benigna no corpo da economia cancerígena que produz metástases, como a da crise de 2008, que a desenvolvi. Iniciei o desenho dessa fórmula em 1990 motivada pela guerra Irã-Iraque, com a minha experiência prática como operadora nos mercados decommodities minerais, ouro, petróleo e derivativos (derivado de ativos ou futuros). Como disse anteriormente, a discussão sobre “descomoditização” se deu muito antes da fundação da Via Campesina e da notoriedade alcançada porJosé Bové com sua luta antiglobalização e anti-industrialização inspirando os Fóruns Sociais Mundiais.

Sobre a fórmula que criei, trata-se da sequência numérica que decodifica as matrizes das “commodities ambientais”. É a “descomoditização” do padrão convencional que determinou o sistema que promove a “comoditização”. Como a palavra “descomoditização” é mais complicada e de difícil explicação, tornando-se uma expressão, tanto quanto a palavra “commodity”, cunhei a expressão “commodities ambientais”. Sobre este tema esclareço com o artigo “Pós Rio+20 – Reflexões conceituais sobre a ‘comoditização’ dos bens comuns”.

Compreendo a histeria dos ativistas indianos contra a “comoditização”, já que eles têm sido as principais vítimas destes modelos irresponsáveis e utilitaristas pelos alunos da escola neoliberal de Milton Friedman. Curiosamente, o executivo coordenador do controvertido e questionável relatório TEEB é um indiano.

Porém, não será porque a palavra “commodities” está sendo demonizada com toda a razão que devemos omiti-la, ignorá-la ou mesmo substituí-la por outra que tente minimizar suas consequências sem discutirmos a essência do seu significado ou como podemos combater o sistema que a tornou um grande problema socioambiental. Quem disse que commodity tem que ser o que é? Aqui, em Terra Brasilis, usam-na há 517 anos sem traduzi-la e, principalmente, sem ser contestada. Foram os europeus e estadunidenses os que nos fizeram “engolirem-na” com seu jeito tecnológico de nos fazerem produzi-las, pagando uma miséria por elas, enquanto os produtores rurais ou agricultores (as) e campesinos (as), como queiram, correm todos os riscos de clima, safra, financeiros, além do risco de precificação.

Assim como a bula de um médico prescreve tomar “diclofenato de sódio”, nome técnico-científico, e fala-se em biodiversidade, ecossistemas, biomas no “biologuês”, sirvo-me dos nomes técnicos e científicos em economia e finanças para prescrever o receituário de um remédio, mas não me atrevo, no entanto, a aplicá-lo sem antes analisar com a sociedade se terá efeito positivo ou negativo o tal remédio. Nem tenho também a pretensão de produzi-lo sozinha, pois considero essa alquimia um conjunto de muitos fatores, sendo necessário o envolvimento de diversos atores socioambientais nesta longa empreitada. Quanto a conceituá-la, ainda é algo que, para ter o efeito desejado, deve ser assimilado por um considerável grupo de mentes pensantes. Do contrário, não será conceito, podendo ser apenas um amontado de ideias interessantes ou não.

Concordo com a ecofeminista e cientista Vandana Shiva sobre sua afirmação: “alimento não é commodity”. De fato, alimento não pode se resumir a alguns produtos da pauta de exportação brasileira, por exemplo: soja, cana, boi, pinus e eucaliptos. A palavra commodity não encontra tradução ao pé da letra em português, fato este que está registrado na literatura financeira apenas em inglês por se tratar de uma expressão mundial de finanças e de comércio exterior.

Direito à alimentação

Como seres humanos, alimentamo-nos com muitos outros produtos, e melhor e mais saudável seria que não fossem produzidos com veneno, como os agrotóxicos. Infelizmente, essa maneira de produzir  ainda faz parte de nossa alimentação urbana fast food. São esses os ditos “alimentos” que compramos no supermercado e nas feiras livres, com poucas ou raras exceções, com a agroecologia disputando espaços restritos nas prateleiras dos supermercados e nos poucos guetos a preços inacessíveis para a maioria dos mortais sem poder de compra.

A cientista Vandana Shiva diz algo que deve ser considerado à luz da ciência econômica, já que a produção de commodities nem nos alimenta e nem nos sustenta financeiramente. Há muito tempo, deixou de ser alternativa econômica, gerando emprego e renda no campo, para ser concentração de capital na mão dos mesmos capitalizados com a “oportuna” falta de política agropecuária, de soberania e segurança alimentar que estão diretamente ligadas às mais das emergências reinvindicações de campesinos, sem terra, comunidades tradicionais e povos da floresta: a reforma agrária e o direito à terra.

No entanto, não poderíamos afirmar que “alimento não é mercadoria”, usando a palavra em português sem explicá-la no “financês”. A afirmação “alimento não é mercadoria” não encontra respaldo na realidade e no imaginário das pessoas comuns (não politizadas). Pode ser palavra de ordem, uma expressão derivada da frase cunhada a partir da justa e necessária luta de José Bové, que encontrou apoio na Via Campesina. Esta sim encontra respaldo na realidade em que vivemos nessa economia de mercado, ao afirmar que “o mundo não é uma mercadoria” — seja em português como em inglês — “o mundo não é uma commodity”.

Senão vejamos: alimento é mercadoria sim, porque ainda temos que comprar alimento no supermercado, na padaria, nas feiras livres, nos hortifrutigranjeiros, nos mercados, nas quitandas, entre outros cantos. Também o Estado não nos proporcionará alimento gratuito. Mera ilusão achar que o Estado vai dar comida grátis para todo o contingente dos mais de 7,5 bilhões de seres humanos neste planeta, sem contar, é claro, os demais seres vivos.

Certamente, como defende Vandana Shiva, “alimento não é commodity”, porque, afinal, não nos alimentamos com monocultura intensiva (uma única cultura), sendo apenas cinco principais produtos da pauta de exportação brasileira, e nem podemos deixar de nos alimentar com outras variedades que são mais importantes e garantem a segurança alimentar e nutricional, como raízes, verduras, legumes, frutas, cereais, folhas verde, cascas, mel de abelha, temperos, condimentos, leite, ovos, farinhas, carnes diversas (não somente a de gado, frango e suíno), peixes, frutos do mar, e por aí vai afora, sem contar com as plantas que curam. Medicamentos podem ser tradicionais ou alternativos. Por que estamos nos matando na medicina convencional com drogas que viciam e provocam efeitos colaterais?

Assim sendo, proponho adotar outra frase, que compreendo ser mais adequada ao que se pretende comunicar: “alimento é direito humano e dos demais seres vivos”. Não deixarei os outros seres vivos de fora desta pendenga, considerando o aprendizado adquirido com o eco-historiador e ambientalista Arthur Soffiati, que nos apresenta o desafio do novo paradigma naturalista organicista contemporâneo:
O paradigma mecanicista continua impregnado no ser humano ocidentalizado, agora de forma prática. Por outro lado, emerge um novo paradigma, que poderíamos chamar de naturalista organicista contemporâneo. Em lugar do “penso, logo existo”, coloca-se agora o “computo, logo existo”. Computar é processar as informações e transformá-las em conhecimento para a vida. Todos os seres vivos — unicelulares ou pluricelulares — computam. Logo, todos podem ser considerados sujeitos e objetos.
Se entendermos que “alimento é direito humano e dos demais seres vivos”, estaremos empunhando uma bandeira que encontrará respaldo no imaginário das pessoas e levantará um questionamento fundamental: por que temos que comprar alimentos caros e ruins nos supermercados? Se é que o que está no supermercado pode se considerar “alimento”. Dar uma papinha industrializada para seu bebê é estar alimentando-o?

Com estas indagações, entre outras, provocamos inquietudes e, dessa forma, promovemos uma discussão filosófica e mais eficiente nas mentes, nos corações e nos estômagos, conscientizando as pessoas sobre o que afinal estamos produzindo e consumindo.

Podemos começar filosofando como o poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare: “Ser ou não ser mercadoria: eis a questão!”.

Notas:

1.      Descomoditização – ação de não produzir mercadorias com padrão industrial, mantendo critérios diferenciados, como as produções artesanais e tradicionais de doces, queijos, farinhas, entre outros alimentos e produtos.

2.                 Milton Friedman foi um dos mais destacados economistas do século XX e um dos mais influentes teóricos do liberalismo econômico. Principal apóstolo da Escola Monetarista e membro da Escola de Chicago, além de defensor dolaissez faire e do mercado livre. Friedman foi conselheiro do governo chileno de Augusto Pinochet e muitas de suas ideias foram aplicadas na primeira fase do governo Nixon e em boa parte do governo Ronald Reagan. Era pai do teórico David Friedman
3.      TEEB: A iniciativa The Economics of Ecosystems and Biodiversity (A Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade) nasceu em 2007 durante o encontro de ministros do Meio Ambiente do G8+5 em Potsdam, na Alemanha, e começou a funcionar em 2008 sob coordenação do executivo Pavan Sukhdev, do Deutsche Bank. O objetivo era abarcar o valor econômico dos serviços dos ecossistemas e da biodiversidade, a fim de protegê-los de mais destruição e ações predatórias. O relatório final do estudo foi lançado em 2010 durante a 10ª Conferência das Partes (COP 10) da Convenção sobre Diversidade Biológica em Nagoya, no Japão.

Referências:

EL KHALILI, Amyra. Pós RIO+20: Reflexões conceituais sobre a “comoditização” dos bens comuns.
EL KHALILI, Amyra. Ser ou não ser mercadoria: eis a questão!Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 13, n. 74, p.77 -80, mar./abr. 2014.
SALMON, Felix. Recipe for Disaster: The Formula That Killed Wall Street.
UNMÜßIG, Barbara. Ninguém pretende colocar etiquetas com preços na natureza. Entrevista concedida a Pavan Sukhdev.
OLIVEIRA, Péricles de. Agronegócio, um modelo esgotado. Entrevista concedida a Vandana Shiva. Brasil de fato.

Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras.