quarta-feira, 28 de março de 2018

DECLARAÇÃO FINAL DO FÓRUM ALTERNATIVO MUNDIAL DAS ÁGUAS

Nós, construtores e construtoras do Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), reunidos de 17 a 22 de março de 2018, em Brasília, declaramos para toda a sociedade o que acumulamos após muitos debates, intercâmbios, sessões culturais e depoimentos ao longo de vários meses de preparação e nestes últimos dias aqui reunidos. Somos mais de 7 mil trabalhadores e trabalhadoras da cidade e do campo, das águas e das florestas, representantes de povos originários e comunidades tradicionais, articulados em 450 organizações nacionais e internacionais de todos os continentes. Somos movimentos populares, tradições religiosas e espiritualidades, organizações não governamentais, universidades, pesquisadores, ambientalistas, organizados em grupos, coletivos, redes, frentes, comitês, fóruns, institutos, articulações, sindicatos e conselhos.
Na grandeza dos povos, trocamos experiências de conhecimento, resistência e de luta. E estamos conscientes que a nossa produção é para garantir a vida e sua diversidade. Estamos aqui criando unidade e força popular para refletir e lutar juntos e juntas pela água e pela vida nas suas variadas dimensões. O que nos faz comum na relação com a natureza é garantir a vida. A nossa luta é a garantia da vida. É isso que nos diferencia dos projetos e das relações do capital expressos no Fórum das Corporações – Fórum Mundial da Água.
Também estamos aqui para denunciar a 8º edição do Fórum Mundial da Água (FMA), o Fórum das Corporações, evento organizado pelo chamado Conselho Mundial da Água, como um espaço de captura e roubo das nossas águas. O Fórum e o Conselho são vinculados às grandes corporações transnacionais e buscam atender exclusivamente a seus interesses, em detrimento dos povos e da natureza.
Nossas constatações sobre o momento histórico
O modo de produção capitalista, historicamente, concentra e centraliza riqueza e poder, a partir da ampliação de suas formas de acumulação, intensificação de seus mecanismos de exploração do trabalho e aprofundamento de seu domínio sobre a natureza, gerando a destruição dos modos de vida. Vivemos em um período de crise do capitalismo e de seu modelo político representado pela ideologia neoliberal, na qual se busca intensificar a transformação dos bens comuns em mercadoria, através de processos de privatização, precificação e financerização.
A persistência desse modelo tem aprofundado as desigualdades e a destruição da natureza, através dos planos de salvamento do capital nos momentos de aprofundamento da crise. Nesse cenário, as ações do capital são orientadas pela manutenção a qualquer custo das suas taxas de juros, lucro e renda.
Esse modelo impõe à América Latina e ao Caribe o papel de produtores de artigos primários e fornecedores de matéria prima, atividades econômicas intensivas em bens naturais e força de trabalho. Subordina a economia desses países a um papel dependente na economia mundial, sendo alvos prioritários dessa estratégia de ampliação da exploração a qualquer custo.
O Brasil, que sedia esta edição do FAMA, é exemplar nesse sentido. O golpe aplicado recentemente expõe a ação coordenada de corporações com setores do parlamento, da mídia e do judiciário para romper a ordem democrática e submeter o governo nacional a uma agenda que atenda seus interesses rapidamente. A mais dura medida orçamentária do mundo foi implantada em nosso país, onde o orçamento público está congelado por 20 anos, garantindo a drenagem de recursos públicos para o sistema financeiro e criando as bases para uma onda privatizante, incluindo aí a infraestrutura de armazenamento, distribuição e saneamento da água.
Quais são as estratégias das corporações para a água?
Identificamos que o objetivo das corporações é exercer o controle privado da água através da privatização, mercantilização e de sua titularização, tornando-a fonte de acumulação em escala mundial, gerando lucros para as transnacionais e ao sistema financeiro. Para isso, estão em curso diversas estratégias que vão desde o uso da violência direta até formas de captura corporativa de governos, parlamentos, judiciários, agências reguladoras e demais estruturas jurídico-institucionais para atuação em favor dos interesses do capital. Há também uma ofensiva ideológica articulada junto aos meios de comunicação, educação e propaganda que buscam criar hegemonia na sociedade contrária aos bens comuns e a favor de sua transformação em mercadoria.
O resultado desejado pelas corporações é a invasão, apropriação e o controle político e econômico dos territórios, das nascentes, rios e reservatórios, para atender os interesses do agronegócio, hidronegócio, indústria extrativa, mineração, especulação imobiliária e geração de energia hidroelétrica. O mercado de bebida e outros setores querem o controle dos aquíferos. As corporações querem também o controle de toda a indústria de abastecimento de água e esgotamento sanitário para impor seu modelo de mercado e gerar lucros ao sistema financeiro, transformando direito historicamente conquistado pelo povo em mercadoria. Querem ainda se apropriar de todos os mananciais do Brasil, América Latina e dos demais continentes para gerar valor e transferir riquezas de nossos territórios ao sistema financeiro, viabilizando o mercado mundial da água
Denunciamos as transnacionais Nestlé, Coca-Cola, Ambev, Suez, Veolia, Brookfield (BRK Ambiental), Dow AgroSciences, Monsanto, Bayer, Yara, os organismos financeiros multilaterais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, e ONGs ambientalistas de mercado, como The Nature Conservancy e Conservation International, entre outras que expressam o caráter do “Fórum das Corporações”. Denunciamos o crime cometido pela Samarco, Vale e BHP Billiton, que contaminou com sua lama tóxica o Rio Doce, assassinando uma bacia hidrográfica inteira, matando inúmeras pessoas, e até hoje seu crime segue impune. Denunciamos o recente crime praticado pela norueguesa Hydro Alunorte que despejou milhares de toneladas de resíduos da mineração através de canais clandestinos no coração da Amazônia e o assassinato do líder comunitário Sergio Almeida Nascimento que denunciava seus crimes. Exemplos como esses têm se reproduzido por todo o mundo.
Os povos têm sido as vítimas desse avanço do projeto das corporações. As mulheres, povos originários, povos e comunidades tradicionais, populações negras, migrantes e refugiados, agricultores familiares e camponeses e as comunidades periféricas urbanas têm sofrido diretamente os ataques do capital e as consequências sociais, ambientais e culturais de sua ação.
Nos territórios e locais onde houve e/ou existem planos de privatização, aprofundam-se as desigualdades, o racismo, a violência sexual e sobrecarga de trabalho para as mulheres, a criminalização, assassinatos, ameaças e perseguição a lideranças, demissões em massa, precarização do trabalho, retirada e violação de direitos, redução salarial, aumento da exploração, brutal restrição do acesso à água e serviços públicos, redução na qualidade dos serviços prestados à população, ausência de controle social, aumentos abusivos nas tarifas, corrupção, desmatamento, contaminação e envenenamento das águas, destruição das nascentes e rios e ataques violentos aos povos e seus territórios, em especial às populações que resistem às regras impostas pelo capital.
A dinâmica de acumulação capitalista se entrelaça com o sistema hetero-patriarcal, racista e colonial, controlando o trabalho das mulheres e ocultando intencionalmente seu papel nas esferas de reprodução e produção. Nesse momento de ofensiva conservadora, há o aprofundamento da divisão sexual do trabalho e do racismo, causando o aumento da pobreza e da precarização da vida das mulheres.
A violência contra as mulheres é uma ferramenta de controle sobre nossos corpos, nosso trabalho e nossa autonomia. Essa violência se intensifica com o avanço do capital, refletindo-se no aumento de assassinato de mulheres, da prostituição e da violência sexual. Tudo isso impossibilita as mulheres de viver com dignidade e prazer.
Para as diversas religiões e espiritualidades, todas essas injustiças em relação às águas e seus territórios, caracterizam uma dessacralização da água recebida como um dom vital, e dificultam as relações com o Transcendente como horizonte maior das nossas existências.
Destacamos que para os Povos Originários e Comunidades Tradicionais há uma relação interdependente com as águas, e tudo que as atinge, e que todos os ataques criminosos que sofre, repercutem diretamente na existência desses povos em seus corpos e mentes. Esses povos se afirmam como água, pois existe uma profunda unidade entre eles e os rios, os lagos, lagoas, nascentes, mananciais, aquíferos, poços, veredas, lençóis freáticos, igarapés, estuários, mares e oceanos como entidade única. Declaramos que as águas são seres sagrados. Todas as águas são uma só água em permanente movimento e transformação. A água é entidade viva, e merece ser respeitada.
Por fim, constatamos que a entrega de nossas riquezas e bens comuns conduz a destruição da soberania e a autodeterminação dos povos, assim como a perda dos seus territórios e modos de vida.
Mas nós afirmamos: resistimos e venceremos!
Nossa resistência e luta é legítima. Somos os guardiões e guardiãs das águas e defensores da vida. Somos um povo que resiste e nossa luta vencerá todas as estruturas que dominam, oprimem e exploram nossos povos, corpos e territórios. Somos como água, alegres, transparentes e em movimento. Somos povos da água e a água dos povos.
Nestes dias de convívio coletivo, identificamos uma extraordinária diversidade de práticas sociais, com enorme riqueza de culturas, conhecimento e formas de resistência e de luta pela vida. Ninguém se renderá. Os povos das águas, das florestas e do campo resistem e não se renderão ao capital. Assim também tem sido a luta dos povos, dos operários e de todos os trabalhadores e trabalhadoras das cidades que demonstram cada vez maior força. Temos a convicção que só a luta conjunta dos povos poderá derrotar todas as estruturas injustas desta sociedade.
Identificamos que a resistência e a luta têm se realizado em todos os locais e territórios do Brasil e do mundo e estamos convencidos que nossa força deve caminhar e unir-se a grandes lutas nacionais e internacionais. A luta dos povos em defesa das águas é mundial.
Água é vida, é saúde, é alimento, é território, é direito humano, é um bem comum sagrado.
O que propomos
Reafirmamos que as diversas lutas em defesas das águas dizem em alto e bom som que água não é e nem pode ser mercadoria. Não é recurso a ser apropriado, explorado e destruído para bom rendimento dos negócios. Água é um bem comum e deve ser preservada e gerida pelos povos para as necessidades da vida, garantindo sua reprodução e perpetuação. Por isso, nosso projeto para as águas tem na democracia um pilar fundamental. É só por meio de processos verdadeiramente democráticos, que superem a manipulação da mídia e do dinheiro, que os povos podem construir o poder popular, o controle social e o cuidado sobre as águas, afirmando seus saberes, tradições e culturas em oposição ao projeto autoritário, egoísta e destrutivo do capital.
Somos radicalmente contrários às diversas estratégias presentes e futuras de apropriação privada sobre a água, e defendemos o caráter público, comunitário e popular dos sistemas urbanos de gestão e cuidado da água e do saneamento. Por isso saudamos e estimulamos os processos de reestatização de companhias de água e esgoto e outras formas de gestão. Seguiremos denunciando as tentativas de privatização e abertura de Capital, a exemplo do que ocorre no Brasil, onde 18 estados manifestaram interesse na privatização de suas companhias.
Defendemos o trabalho decente, assentado em relações de trabalho democráticas, protegidas e livre de toda forma de precarização. Também é fundamental a garantia do acesso democrático e sustentável à água junto à implementação da reforma agrária e defesa dos territórios, com garantia de produção de alimentos em bases agroecológicas, respeitando as práticas tradicionais e buscando atender a soberania alimentar dos trabalhadores e trabalhadoras urbanos e do campo, florestas e águas.
Estamos comprometidos com a superação do patriarcado e da divisão sexual do trabalho, pelo reconhecimento de que o trabalho doméstico e de cuidados está na base da sustentabilidade da vida. O combate ao racismo também nos une na luta pelo reconhecimento, titulação e demarcação dos territórios dos povos originários e comunidades tradicionais e na reparação ao povo negro e indígena que vive marginalizado nas periferias dos centros urbanos.
Nosso projeto é orientado pela justiça e pela solidariedade, não pelo lucro. Nele ninguém passará sede ou fome, e todos e todas terão acesso à água de qualidade, regular e suficiente bem como aos serviços públicos de saneamento.
Nosso plano de ações e lutas
A profundidade de nossas debates e elaborações coletivas, o sucesso da nossa mobilização, a diversidade do nosso povo e a amplitude dos desafios que precisam ser combatidos nos impulsionam a continuar o enfrentamento ao sistema capitalista, patriarcal, racista e colonial, tendo como referência a construção da aliança e da unidade entre toda a diversidade presente no FAMA 2018.
Trabalharemos, através de nossas formas de luta e organização para ampliar a força dos povos no combate à apropriação e destruição das águas. A intensificação e qualificação do trabalho de base junto ao povo, a ação e a formação política para construir uma concepção crítica da realidade serão nossos instrumentos. O povo deve assumir o comando da luta. Apostamos no protagonismo e na criação heroica dos povos.
Vamos praticar nosso apoio e solidariedade internacional a todos os processos de lutas dos povos em defesa da água denunciam a arquitetura da impunidade, que, por meio dos regimes de livre-comércio e investimentos, concede privilégios às corporações transnacionais e facilitam seus crimes corporativos.
Multiplicaremos as experiências compartilhadas no Tribunal Popular das Mulheres, para a promoção da justiça popular, visibilizando as denúncias dos crimes contra a nossa soberania, os corpos, os bens comuns e a vida das mulheres do campo, das florestas, águas e cidades.
A água é dom que a humanidade recebeu gratuitamente, é direito de todas as criaturas e bem comum. Por isso, nos comprometemos a unir mística e política, fé e profecia em suas práticas religiosas, lutando contra os projetos de privatização, mercantilização e contaminação das águas que ferem a sua dimensão sagrada.
O Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA) apoia, se solidariza e estimulará todos os processos de articulação e de lutas dos povos no Brasil e no mundo, tais como a construção do “Congresso do Povo”, do “Acampamento Terra Livre”, da “Assembleia Internacional dos Movimentos e Organizações dos Povos”, da “Jornada Continental pela Democracia e Contra o Neoliberalismo”; da campanha internacional para desmantelar o poder corporativo e pelo “tratado vinculante” como ferramenta para exigir justiça, verdade e reparação frente aos crimes das transnacionais.
Convocamos todos os povos a lutar juntos para defender a água. A água não é mercadoria. A água é do povo e pelos povos deve ser controlada.
É tempo de esperança e de luta. Só a luta nos fará vencer. Triunfaremos!
Assinam o documento 36 organizações. As demais entidades do Brasil e do mundo que quiserem subscrever o documento, devem enviar solicitação, até o dia 12 de abril, à Secretaria Operativa do FAMA, pelos e-mails:operativafama@gmail.com/metodologiafama2018@gmail.com.

terça-feira, 6 de março de 2018

Dia Internacional da Mulher: a feminística de mulheres e homens pela Paz

Por Amyra El Khalili


A expressão "feminística" foi concebida em 8 de março de 2006, no Dia Internacional de Mulher. Foi numa mesa-redonda em torno de "Questão de Gênero",durante o I Fórum da Cidade de São Paulo - Objetivos do Milênio (ODM), realizado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e pela Câmara Municipal da capital. A inspiração veio de uma questão que me incomoda: a cobrança diuturna para rotular as pessoas. Todos querem rótulo em tudo. Vivemos no mundo de clichês.
Não é à toa que, frequentemente, as (os) jornalistas perguntam: "o Movimento Mulheres pela P@Z! é feminista?" Digo não. Contestam perguntando: "Mas é um movimento que tem homem?" Digo sim. Aí, concluem: "Não é um movimento de mulheres pela paz, mas um movimento de mulheres e homens pela paz". Percebo que nem eles nem eu ficamos satisfeitos. Porém, um comentário da escritora Vilma Marchitiello sobre a mística feminina me ajudou a encontrar a definição: O Movimento Mulheres pela P@Z é feminística!
É um movimento feminístico, da mística feminina, essência que no homem também existe.
Este movimento de mulheres e homens nasceu em 8 de março de 2002, de uma atitude de mulheres palestinas, judias e brasileiras, depois de várias cisões em nossos grupos pacifistas israelo-palestinos. Nasceu no momento em que os homens tensionavam as discussões e não saíam da mesma retórica, o que, aliás, é comum na natureza masculina: não saber recuar, não saber flexibilizar, não saber feminizar. Quando aprendem, crescem muito como seres humanos!
Mulheres em Meio Ambiente
Tem sido muito mais fácil sensibilizar as mulheres em relação à preservação e conservação ambiental devido à sua própria condição biológica, como gestora da vida, portadora de útero. As mulheres devem assumir a sua condição de guardiãs das florestas, dos rios, da biodiversidade, de nosso ambiente, uma vez que, no dia a dia, com as tarefas domésticas, são as que mais sofrem com a falta de água, de energia, de alimentos.
A violência contra a mulher não se manifesta apenas na agressão corporal ou verbal, mas, igualmente, na pobreza, na falta de educação, de trabalho, na saúde, na falta de recursos básicos de sobrevivência. Uma pode culminar com a sua morte. A outra, subjetiva, indireta, subliminar, atinge a ética, a estética e a moral. É a mais perniciosa das agressões. Ela pode se dar de várias maneiras: agressão psicológica, assédio moral, assédio sexual, por intimidação, racismo, destruição da autoestima. É o que chamamos de PCC - Poder, Comando, Controle. O que mata e morre.
O poder da palavra
A palavra tem força. Podemos, por meio dela, desativar uma bomba no sistema financeiro ou uma ação racista. Podemos denunciar um site de pedofilia ou derrubar sites mentirosos, mascarados. Podemos desarmar um ataque à Amazônia ou uma farsa montada por estelionatários. Tudo pela internet, a distância, pois não podemos estar em todos os lugares simultaneamente. Outras pessoas, porém, à frente de outros computadores, precisam desse ECO para suportar a pressão da agressão dos confrontos e das guerras em suas regiões e territórios.
Não falo somente das que se veem, com mísseis, caças F16, bombas. Falo daquelas que não se veem, que podem ser tão ou mais perigosas que as que assumidas por governantes. A guerra que travamos diariamente contra a corrupção, contra a manipulação política, contra a degradação ambiental, contra a violência, contra as desigualdades.
No entanto nenhum movimento ou frente se consolida apenas com motes. Essa consolidação só se dá quando suas lideranças e membros assumem efetivamente a causa, carregam suas bandeiras, expõem-se publicamente com todos os riscos.
São especiais as pessoas realmente comprometidas com as causas socioambientais, dispostas a entregar a sua vida expondo-se, assim como com as questões de direitos humanos, direitos políticos, liberdade de expressão, democratização da informação, questões de gênero e etnia. Assumir uma causa, ou uma missão, é decisão exclusiva e intransferível de foro pessoal.
O que podemos fazer, quando identificamos tais formadoras (es) de opinião (stakeholders), é apoiá-las (os), dar-lhes estímulo e força para que persistam no seu trabalho e se estabeleçam.
Não estamos falando de dinheiro, mas de ação, apoio moral e psicológico. Um apoio que se dá sem interesses, maniqueísmos ou segundas intenções e, principalmente, sem imprimir-lhes rótulos. É aquele apoio que fortalece o ser humano para que consiga encontrar soluções sem destruir-se, degradar-se moralmente frente às pressões e humilhações a que são submetidas (os).
Mulheres e homens que lideram comunidades e diversas frentes proativas são, muitas vezes, pressionadas (os), intimidadas (os) e ameaçadas (os) por corruptos, por questões ideológicas, políticas, religiosas, etnicas. Quando é possível, viajamos até a região, conversamos com a comunidade, organizamos uma estratégia. Sabemos que essa pessoa permanecerá ali quando formos embora. Dá uma sensação estranha. De um lado, satisfação enorme pela chance de,  alguma forma, contribuir, apoiar, estimular. De outro, a impotência de querer fazer mais sem saber exatamente o quê e como.
É importante apoiar essas pessoas, pois são elas que carregam, provocam e impulsionam outras. Se elas fraquejam, enfraquecem alguns milhões de dependentes de suas ações, que também precisam de apoio e estímulo para seguirem adiante.
Então buscamos formas de "empoderar" essas pessoas para que possam seguir em frente. Esta é uma das premissas do movimento de mulheres e homens pela paz, principalmente se essa pessoa for uma mulher. São elas as mais discriminadas e excluídas no processo de empoderamento socioeconômico. Conquistaram o mercado de trabalho; são a maioria consumidora, mas não foram empoderadas, ou, mesmo, preparadas para ter poder.
Hoje, o mercado está com os olhos voltados para a mulher. Debatem-se as mulheres em todos os cantos, por todos os lados. Mas não se enganem! Em muitos casos, não é por consciência da importância da questão de gênero, ou por alguma percepção humanitária, mas porque descobriram que a mulher é “consumidora”.  Ela é quem toma as decisões de consumo para as outras pessoas da família.
Eventos conscientes são aqueles organizados por movimentos sérios e gente com histórico de defesa dessas justas causas. Não desejamos legitimar a questão de gênero na concepção de que a mulher não passaria de mais uma consumidora. O mundo já faz isso o tempo todo com as mulheres. O que queremos é que ela seja capaz de ser tomadora de decisões sobre os mais diversos assuntos. Seja ela produtora rural, artesã, empreendedora, executora, o que importa é que decida sobre o contrato mercantil, a cláusula contratual do seguro, sobre como é que vai pagar a prestação, como o banco vai debitar a taxa de juros. Decisão é a palavra-chefe. A mulher tem que decidir, não somente produzir-consumir.
É nossa prioridade trabalhar a autoestima feminina. Tanto a exterior quanto a interior, para que as mulheres possam ser "empoderadas". Seja para o trabalho, o empreendedorismo, a economia, o amor, a família: o empoderamento de mulheres é a meta.
Desejamos que esta semana, em comemoração ao “Dia Internacional da Mulher”, seja um momento de reflexão sobre a mística feminina de mulheres e homens, para que possam compartilhar essa virtude, fortalecendo-se mutuamente de igual para igual, um ao lado do outro!

"Todos os seres humanos estão presos numa teia inescapável de mutualidade; entrelaçados num único tecido do destino. O que quer que afete a um diretamente, afeta a todos indiretamente. Não posso nunca ser o que deveria ser até que você seja o que deveria ser e você não pode nunca ser o que deveria ser até que eu seja o que devo ser" (Martin Luther King).
Nota:
O "Movimento Mulheres pela P@Z!" é uma formação de rede, de caráter transdisciplinar, não sectário, que tem como objetivo promover a paz entre grupos étnicos, povos e nações, através do debate, da informação e de ações que propiciem a aproximação, a criação e o fortalecimento de relações inter-raciais e interculturais, orientando a não-intervenção, a não-ingerência e a não-dominação de uns sobre outros, fomentando a tolerância, a concórdia e a colaboração e o auxílio mútuo, de modo que a identidade e a liberdade sejam indissociáveis e utilizadas como instrumentos para a construção de um mundo que compreenda a existência de desígnios superiores e transcendentais para a Humanidade.
Referências:
EL KHALILI, Amyra. Palestra proferida no 1º Fórum da Cidade de São Paulo — "Objetivos do Milênio (ODM)", organizado pelo PNUD e pela Câmara Municipal São Paulo. Mesa-redonda: "Questão de Gênero”,  dia 8 de março de 2006.
JUSTE, Marília. ODM devem ser ‘feminizados’, diz jurista. – São Paulo, 8 mar. 2006. In: www.pnud.org.br;
*Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental. Foi economista com mais de duas décadas de experiência nos mercados futuros e de capitais. É fundadora do Movimento Mulheres pela P@Z! e editora da Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras. É autora do e-book “Commodities Ambientais em Missão de Paz: Novo Modelo Econômico para a América Latina e o Caribe”. Acesse gratuitamente: www.amyra.lachatre.org.br

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

O que são Commodities Ambientais?

Por Amyra El Khalili

As commodities ambientais são mercadorias originárias de recursos naturais, produzidas em condições sustentáveis, e constituem os insumos vitais para a indústria e a agricultura. Estes recursos naturais se dividem em sete matrizes: 1. água; 2. energia, 3. biodiversidade; 4. floresta (madeira); 5. minério; 6. reciclagem; 7. redução de emissões poluentes (no solo, na água e no ar).
As commodities ambientais obedecem a critérios de extração, produtividade, padronização, classificação, comercialização e investimentos e dá um tratamento diferente aos produtos que no jargão do mercado financeiro são chamados de commodities (mercadorias padronizadas para compra e venda). Não são mercadorias que se encontram na prateleira dos supermercados, na lista de negócios agropecuários (soja, milho, café, boi, cana, açúcar, pinus etc.), nem entre os bens de consumo em geral industrializados, mas estão sempre conjugadas a serviços socioambientais – ecoturismo, turismo integrado, cultura e saberes, educação, informação, comunicação, saúde, ciência, pesquisa e história, entre outros.

O modelo das commodities ambientais

Para melhor compreensão, as commodities tradicionais (ou convencionais) são mercadorias padronizadas para compra e venda. Tudo o que está na prateleira do supermercado está padronizado. Por exemplo, encontram-se, dentre os critérios de comoditização convencional, garrafas de água mineral, todas iguais e com a mesma quantidade, mesmo critério de engarrafamento, mesmo tratamento fitossanitário. O consumidor que compra um produto industrializado exige certificado de qualidade, selos que comprovem a fiscalização sanitária e, nos dias de hoje, questiona se se tratam de alimentos convencionais, transgênicos ou orgânicos.

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Para ser uma commodity, o produto passa por uma série de exigências de comercialização, tributação, transporte, entre outros, além de enfrentar negociações com os agentes internacionais na sua colocação no mercado externo. A commodity disputa espaço enfrentando embargos, barreiras tarifárias e não-tarifárias, como se pôde verificar no caso da carne brasileira, embargada por um curto período em decorrência de suspeitas infundadas de contaminação pelo vírus da vaca-louca.
Pelo mesmo crivo passam as commodities ambientais. Assim, comoditizar (padronizar) não é algo tão simples como retirar orquídeas, bromélias, xaxins, entre outras espécies da mata Atlântica e vender em mercados e estradas, tal qual muitos fazem, sem qualquer sustentabilidade.
Justamente por obedecerem a critérios de padronização, as commodities poderiam ser chamadas de moeda, pois rapidamente se transformam em dinheiro em qualquer parte do mundo. Como diriam os economistas, as commodities têm liquidez, pois há vendedores dispostos a oferecer as produções (orquídeas, cacau, maracujá, caju, xaxim, caixeta, goiaba, mate etc.) em condições sustentáveis e compradores dispostos a pagar por esses produtos (agroecológicos, orgânicos, permacultura, biodinâmica), mesmo que por um preço mais alto do que pagariam por aqueles retirados das florestas e/ou produzidos no campo sem sustentabilidade.
No centro do tripé socioeconômico das commodities ambientais há o ‘cidadão’ (legítimo representante do Mercado e do Estado), que unifica o sistema financeiro e o meio ambiente.
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Não são, assim, mercadorias que se encontram na prateleira dos supermercados, na lista de negócios agropecuários, nem, em geral, entre os bens de consumo industrializados.
Diferentemente das commodities tradicionais, as commodities ambientais obedecem a um modelo em cujo topo se encontram os ‘excluídos’ (aqueles que não têm emprego e renda, por exemplo); à direita está o mercado financeiro e, à sua esquerda, o meio ambiente. A diferença está na base monetária deste novo modelo que está sendo construído no Brasil.

Políticas públicas e o aspecto socioeconômico

O mercado de commodities ambientais traz conceitos e práticas inovadores, que oferecem alternativas viáveis para contrapor-se ao modelo das commodities convencionais, buscando neutralizar os vícios concentradores e predatórios trazidos pelo sistema, pelos quais as grandes corporações e poucos países desenvolvidos, detentores exclusivos de capital e tecnologia de ponta, usufruem de inúmeras vantagens (que vão da economia de escala, com amplitude global, à internalização dos lucros), aliadas à socialização dos prejuízos, agravada pelo fato de que este modelo acentua a exclusão. Neste modelo, o socioambiental, busca-se a inserção dos excluídos na economia, em condições de igualdade com os trabalhadores.
Os projetos, por esta metodologia, potencializam o mercado de trabalho com a formação de equipes multidisciplinares pelo aumento da procura por profissionais especializados com a visão holística de um novo modelo econômico de inclusão das variáveis social e ambiental. Prevê comprometimento com promoção do desenvolvimento sustentável. Conscientiza sobre a importância da preservação de valores históricos, artísticos, culturais, paisagísticos, antropológicos, socioambientais. Promove a inclusão social com a mudança de paradigmas (inserção dos excluídos, aposentados e minorias em geral numa sociedade digna, ética e participativa). Nesta perspectiva, propõe-se transformar estruturas, analisados os efeitos micro e macroeconômicos.

Efeitos microeconômicos

Propõe-se:
a) viabilizar a geração de ocupação e renda com inclusão social; b) fomentar a geração de novos mercados, produtos e serviços; c) criar novos hábitos de consumo, potencializando-os; d) provocar o desenvolvimento da atividade local com redução da economia informal; e) educar para a conscientização ambiental; f) aumentar a base da integração social com cidadania e qualificação; g) buscar a melhoria da qualidade de vida; h) vislumbrar melhores perspectivas para gerações futuras; i) criar e fortalecer organizações do terceiro setor; j) incentivar a formação de parcerias para micro-organizações autossustentáveis.

Efeitos macroeconômicos:

Propõe-se:
a) criar riquezas com aumento do PIB; b) aumentar a arrecadação fiscal; c) aumentar a mobilidade social; d) melhorar a distribuição de renda; e) incluir o legislativo como regulador, evitando gastos desnecessários; f) melhorar a saúde pública; g) reduzir a violência; f) reduzir os gastos (custo ambiental e social) com políticas públicas compensatórias; h) reorientar a política fiscal, com incentivo e proteção ao meio ambiente; i) reorientar os investimentos públicos com priorização para saúde; j) promover a educação e preservação ambiental; l) reduzir a carga tributária do país; promover a passagem de um país puramente extrativista para um país conservacionista e preservacionista.
Finalmente, commodities ambientais é muito mais do que um modelo alternativo para o desenvolvimento sustentável. É o resgate de princípios e valores universais, em que se busca a inclusão social sem o assistencialismo e a dependência sobejamente conhecidos no modelo tradicional.

Construção participativa do modelo

O desenvolvimento desse novo modelo econômico requer a conscientização de todos os segmentos da sociedade civil organizada e a sensibilização de empresários, sistema financeiro, empreendedores, políticos egovernos sobre a importância de se criarem condições para uma economia justa, socialmente digna, politicamente participativa e integrada.
Assim, é o que produz agricultura sustentável, de preservação e conservação florestal, de proteção a mananciais, que casa a produção agrícola com a utilização de parte das terras para plantio e pecuária e outra parte para reflorestamento, pesquisa de plantas ornamentais e medicinais, piscicultura, apicultura, criação de animais e aves exóticas e em extinção; é o que explora conscientemente o turismo rural/ecológico, com planejamentos de educação e treinamentos agroambientais para o agricultor/campesino, seus filhos e comunidades nos mais diversos níveis, desde a infância até o idoso, estimulando-os e abstraindo-lhes a total produtividade e experiência. Enfim, valorizando a natureza e o ser humano.
Isto se dará por meio de discussões que envolvam princípios filosóficos do desenvolvimento sustentável e debates sobre as interações entre meio ambiente, direitos humanos e mercado financeiro.
Não poderia ser diferente, uma vez que seria praticamente impossível criar mecanismos para gerar emprego, ocupação, trabalho e renda combatendo a degradação ambiental, a exclusão e as desigualdades sociais, financiados pela democratização do capital, sem o envolvimento e o comprometimento daquele que será seu proprietário e maior beneficiário: o povo brasileiro!

Nota:
*Matrizes ambientais: nunca dissemos que matrizes ambientais são mercadorias e tampouco propusemos instrumentos econômicos para mercantilizá-las e financeirizá-las, mesmo que o entendimento do senso comum procure resumir a expressão “commodities ambientais” ao conjunto de mercadorias e suas matrizes, já que uma (a commodity) não existirá sem preservar a conservar a outra (matriz). Pelo contrário, a defesa das commodities ambientais  e suas matrizes, consiste justamente no direito de uso dos bens comuns pelas presentes e futuras gerações e no princípio da “dignidade da pessoa humana”.
Referência:

El Khalili, Amyra. Commodities ambientais em missão de paz – novo modelo econômico para a América Latina e o Caribe / Amyra El Khalili.  – Bragança Paulista, SP : Heresis, 2017. 336 p.

*Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental. É fundadora do Movimento Mulheres pela P@Z! e editora da Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras. É autora do e-book “Commodities Ambientais em Missão de Paz: Novo Modelo Econômico para a América Latina e o Caribe”.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Brasil, o país que mais mata pessoas trans no mundo

Na segunda-feira (29) é celebrado o “Dia Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais”, data para fortalecer as lutas, conquistas e desafios da população trans e travesti em todo o mundo.  O dia é celebrado desde 2004, à época o Ministério da Saúde e entidades da sociedade civil lançaram a campanha “Travesti e Respeito”, em reconhecimento à dignidade dessa população.
Apesar de diversas conquistas, a violência contra essa população ainda é muito grande.  A cada 48 horas uma pessoa trans é assassinada no Brasil. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) vem contabilizando os tristes números  de assassinatos de travestis e transexuais no Brasil. O mapa da violência aponta que em 2017 foram 179 assassinatos, sendo  169 contra travestis e 10 contra homens transexuais.  Destes crimes,  85%  são praticados com requintes de crueldade. Outra constatação é de que 60% das vítimas tinham entre 16 e 29 anos,  sendo  adolescentes e jovens.  A expectativa de vida de uma pessoas trans no Brasil é de, aproximadamente, 35 anos.
O estado de Minas Gerais é onde se registra o maior número de assassinatos da população trans, com 20 assassinatos. Em seguida vem a Bahia com 17; São Paulo e Ceará com 16 assassinatos;  Rio de Janeiro e Pernambuco com 14; Paraná com 8, Alagoas, Espírito Santo e Palmas com 7; Mato Grosso 6; Amazonas, Goiás, Rio Grande do Sul e Santa Catarina  com 5; Tocantins com 3. O Distrito Federal, Maranhão, Mato Grosso do Sul e Sergipe somam duas mortes cada. Acre, Amapá, Piauí, Rio Grande do Norte e Roraima registraram uma em cada. As informações estão no Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil em 2017, lançado nesta quinta-feira (25), pela Antra, em Brasília. Para a secretária de Articulação Política da Antra e autora do estudo, Bruna Benevides, o Brasil é o pais que mais mata travesti no mundo. Ela ressalta que todos os dados são coletados de forma voluntária por ativistas LGBTs ligados à ANTRA e  à Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT). Bruna relata que fazer o mapeamento não é tarefa fácil “Durmo pensando nas vítimas, imaginando o próximo nome, ou qual o estado fará a próxima vítima”, destaca.
Deborah Sabará,  secretária nacional de Direitos Humanos  da ABGLT, diz que a violência contra as pessoas trans acontece desde muito cedo, geralmente, por familiares, na escola e outros ambientes sociais que impõem  padrões culturais relacionados à masculinidade e feminilidade. “Quando uma criança ou adolescente sai deste padrão, ela começa a apanhar,  sofrendo  agressões físicas e morais.  Quando iniciam a transição, as travestis, em sua maioria, são expulsas de casa e vão viver na rua,  em sua maioria, como trabalhadora do sexo”, explica Deborah.
Ela destaca que, é perceptível, nas grande cidades, um alto índice de pessoas da população travesti e trans em situação de rua, e essa vulnerabilidade leva, muitas vezes, essa população ao sistema prisional. Os  serviços públicos  não estão preparados, a inserção no mercado de trabalho se torna impossível depois que assumem sua identidade de gênero. Uma realidade de negação de direitos.
“É preciso, antes de criticar e segregar,  entender,  incluir e sensibilizar  a população. Principalmente, o  poder público para a adoção de medidas urgentes, visando  minimizar  a transfobia e  dando  um tratamento digno às irmãs travestis e transexuais”, lembra.

Colaboração: Antra e ABGLT

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Lei de pagamentos por serviços ambientais do Acre beneficia mercado financeiro

Por Amyra El Khalili e Arthur Soffiati

A Lei nº 2.308, de 22 de outubro de 2010, do Estado do Acre, que cria o Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais (SISA), o Programa de Incentivos por Serviços Ambientais (ISA), Carbono e demais Programas de Serviços Ambientais e Produtos Ecossistêmicos parece já manifestação da economia verde, antes que este conceito fosse badalado na Rio+20. Se o trabalho dos polinizadores pode ser valorado e precificado, quem receberá o dinheiro por eles, já que a natureza trabalha sem ter noção do que é trabalho e do que é remuneração? Alguém pode receber por eles. Quem será? Isto facilita muito a entrada de grandes empresários e grupos para receber por aquilo que a natureza faz de graça, queiramos ou não queiramos. O urubu trabalha diariamente durante o dia, seja sábado, domingo ou feriado. Ele age assim porque é da sua natureza, não porque precisa de dinheiro. Contudo, alguém pode querer receber por este serviço gratuito, valorando-o e precificando-o.

A formação de preços (precificação) nos mercados de capitais, especificamente nos mercados bursáteis (bolsas de valores e de mercadorias), é determinado por três fatores: a análise fundamentalista, que é o estudo da conjuntura econômica; a análise matemática, que compreende os cálculos de taxas de juros, prazos e custos; e a análise gráfica, que registra as oscilações de oferta e demanda do objeto (ativo ou commodity). Portanto, a complexidade para a formação de preços exige profundo conhecimento do objeto.

Na escola neoliberal, para encurtar o caminho para a precificação, criaram-se os “índices” produzidos por universidades de grife e institutos de pesquisa, pagando régias mesadas a essas instituições para, com estes indicadores, viabilizar as decisões dos players (comprar e vender) e, assim, girar cada vez mais e mais rapidamente contratos nos mercados de futuros.

A indústria de futuros, chamada de derivativos (derivado de ativos), tornou-se muito lucrativa no curto prazo, principalmente para corretoras e bancos, uma vez que os agentes intermediários ganham no volume negociado a despeito do resultado, ou seja, ganham corretagem quando o cliente está ganhando e também quando o cliente está perdendo.

Com o tempo, já não interessava mais ganhar “corretagem” sobre operações de compra e venda para cada contrato negociado. O apetite pela especulação e a ganância sobre as vantagens de comprar e vender rápido, muitas vezes em segundos, criou oportunidades para que os agentes intermediários (brokers e traders) ganhassem também no jogo financeiro. Entenda-se: jogando com o trabalho produtivo e o dinheiro dos outros. Jamais com seu próprio dinheiro.

A indústria financeira especulou com o aumento desproporcional (virtual) da produção de bens e serviços e avançou com a desregulamentação, dando chances para se realizar lucros ou prejuízos sem que o próprio sistema de garantias pudesse suportar as liquidações com a concentração de poder nas mãos de apenas meia dúzia de bancos também avalistas de garantias para os negócios que os mesmos bancos ofertavam para seus clientes.

Em dezembro de 2007, o Banco de Compensação Internacional (conhecido pela sigla BIS, em inglês) estimou em US$681 trilhões os negócios com derivativos - dez vezes mais o PIB de todos os países do mundo combinados. É a raposa tomando conta do galinheiro.

Se os autores da Lei SISA do Acre conhecem o funcionamento do mercado financeiro, não sabemos. O que sabemos é que o aparato conceitual utilizado por eles é antigo e pode nos levar a conclusões equivocadas. E exatamente eles, que sugerem ocupar postura pioneira. Usar o conceito de preservação de modo generalizado faz tábula rasa da natureza não humana. Parece irrelevante nossa observação. No entanto, se os autores recorrerem ao artigo “Duas filosofias de proteção à natureza”, de Catherine Larrière, incluído no livro Filosofia e natureza: debates, embates e conexões, organizado por Antônio Carlos dos Santos (Aracaju: Ed. Universidade Federal de Sergipe, 2008), verificarão que os conceitos de conservação e de preservação são antigos e de fundamental importância para compreender as relações entre sociedades humanas (antropossociedades) e natureza não humana.

Preservação significa manter íntegra a natureza não humana. Conservação indica o uso da natureza não humana respeitando seus limites. Em que sentido eles usam o conceito de preservação? Pelo visto, empregam-no como sinônimo de proteção, conceito que envolve preservação e conservação. Sugerimos sempre a nossos alunos e colegas: na dúvida, usar o conceito de proteção.

Entre os defensores da natureza não humana mais simplórios e dos críticos do movimento ecologista e ambientalista, os conceitos de conservação e de preservação são entendidos como opostos e excludentes. Trata-se de uma falsa questão, pois preservação e conservação se complementam. Não se pode ser preservacionista numa cidade, tampouco conservacionista numa reserva biológica.

Eles também atribuem à Cúpula dos Povos, movimento paralelo à Rio+20, o uso inadequado da artilharia ideológica, chamando a atenção para a sua ideologia desinformada. Aqui, eles entram num terreno minado e muito perigoso, pois, por uma vertente de pensamento (Mannheim e Althusser, por exemplo), todo ser humano pensa de forma ideológica, enquanto que o marxismo clássico entende como ideologia o pensamento conservador. Daí dizer-se que a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. A qual dos dois sentidos de ideologia se referem? Do jeito que a expressão é usada, parece que eles estão fora das ideologias, enquanto que a Cúpula dos Povos é prisioneira de uma.

Os autores da Lei sustentam que o SISA busca a “compatibilização do desenvolvimento econômico e social com as melhores práticas de preservação ambiental”. Já examinamos o conceito de preservação.  Compatibilização é uma postura que, segundo os ecologistas de boa estirpe, tenta conciliar desenvolvimento predatório, ou seja, crescimento econômico convencional com a proteção do ambiente. Historicamente, desde a década de 1970, os pensadores mais lúcidos sabem que tal conciliação é possível provisoriamente. Quando a corda a unir proteção do ambiente e desenvolvimento se rompe, o beneficiado é sempre o desenvolvimento. Mas existem concepções distintas de desenvolvimento. A qual delas seus autores se referem? A resposta a esta pergunta vem logo em todo o texto da Lei: desenvolvimento sustentável.

O conceito de desenvolvimento sustentável se afirmou nos anos 1980, principalmente com o livro Nosso futuro comum, oriundo da Comissão Brundtland. Progressivamente, ele substituiu o conceito de ecodesenvolvimento, bem mais claro, e tornou-se  central na Conferência Rio 92. Com o tempo, seu uso foi tão generalizado que perdeu o sentido. Hoje, fala-se de juros sustentáveis, lucro sustentável, renda sustentável, crescimento sustentável, práticas sustentáveis e até corpo sustentável sem o mínimo rigor conceitual. E seus autores rebatendo opiniões críticas à Lei SISA fazem o mesmo. As consequências de tal uso é o emprego de crescimento de renda e de PIB. Ora, a produção de armas de guerra e os serviços ligados a ela geram renda e contribuem para o aumento do PIB. Onde o pioneirismo destes autores em uso tão acrítico?

Falar em meio ambiente é redundância. Meio significa ambiente e ambiente significa meio. Ou falamos em meio ou em ambiente. Da mesma forma, discutir créditos de carbono é voltar ao passado ou não sair dele. O mercado de carbono não ataca a crise ambiental antrópica de frente, mas procura transformá-la em fonte de lucros. Mas o passado está também embutido no presente, assim como no futuro. Basta examinar o conceito de economia verde, tão propalado antes, durante de depois da Rio+20. Qual o seu conteúdo? Não se sabe ao certo. Só se sabe que ele já está sendo usado para que negociantes ganhem dinheiro com a natureza. Basta ver o livro A economia verde: descubra as oportunidades e os desafios de uma nova era dos negócios, de Joel Makower (São Paulo: Gente, 2009). O conceito de economia verde abre caminho para a valoração do ar e da fotossíntese, por exemplo. Produtor e produto, prestador e serviço são colocados no mesmo saco.

Parece que caminhamos para uma nova escravidão, esta bem mais sutil. No sistema escravista, o escravo e os bens e serviços por ele gerados podiam ser valorados. Um escravo, mesmo de braços cruzados, tinha preço. Podia ser comprado e vendido, independentemente dos bens e serviços que produzisse. A nova escravidão se assemelha mais com o que o filósofo francês Étienne de La Boétie chamava de servidão voluntária. As plantas realizam a fotossíntese voluntariamente para existirem, não porque as obrigamos. Mas alguém pode se arvorar em cobrar por ela ou ganhar alguma concessão governamental para explorá-la. Paremos por aqui, pois a lista de explorações indevidas é longa.

Portanto a Lei SISA abre um precedente perigoso para a raposa tomar conta, recebendo muita grana para cuidar do galinheiro, pois permite a captação dos recursos e a administração pelo sistema financeiro através do mercado de carbono. Está na mídia sendo apregoada como modelo de lei para o mundo. Enquanto o mercado de carbono vinagra na Europa contaminada pela crise financeira de 2008, aqui, nestas paragens, prega-se o mercado de carbono como a salvação da lavoura.

Causa estranheza que os idealizadores Lei de Pagamento por Serviços Ambientais do Acre desconheçam os impactos da precificação de produtos agropecuários nos mercados de commodities internacionais, como o caso do cacau, açúcar, café, soja, milho e boi, entre outros. Fica a impressão de que não foram estudadas as regras básicas de precificação, constituídas das análises fundamentalistas (conjuntura econômica), matemática (juros, prazos e custos) e da análise gráfica (oferta e demanda).

Não se faz mercado artificialmente com leis e marketing ambiental. As experiências que tivemos nos mercados de commodities e derivativos nos ensinaram que a participação do Estado diretamente na regulação para fomentar a comercialização criou distorções e estimulou a especulação.

Quando o Banco Central regulava o câmbio no mercado de ouro, havia liquidez porque a autoridade monetária alimentava o mercado comprando e vendendo ouro. Quando o Banco Central saiu do ouro, o mercado de ouro evaporou. Não existia o mercado de câmbio futuro porque simplesmente não havia vendedores futuros de câmbio. Quando o banco estabeleceu o controle da moeda pela banda cambial, o mercado futuro de câmbio na antiga BM&F emergiu do zero e hoje é o mercado que sustenta, juntamente com o de taxa de juros, o impressionante movimento financeiro da BovespaBM&F.

Que o Estado faça seu papel de agente regulador e fiscalizador do sistema financeiro, que seja agente de fomento, mas que não se meta a fazer “mercado”. Se o Estado não consegue sequer fiscalizar a degradação e a devastação ambiental, como pode o mesmo Estado virar agente financeiro ou, na melhor das intenções, repassar para terceiros (a raposa) essa função?

Perguntem à BovespaBM&F: por que os mercados de commodities agropecuárias não avançam? Ou: por que os produtores rurais deste continente não operam na Bolsa de Futuros para se protegerem contra oscilações bruscas de preços das commodities agropecuárias? Perguntem aos players: por que o preço de soja nacional é definido pela Bolsa de Chicago e não por um preço formado com custo Brasil?

Façam mais perguntas antes de fazer leis para dar “valor” e/ou “valorar” os bens ambientais. Perguntem aos árabes e africanos: por que a água (bem escasso no Oriente Médio e África) nunca foi cotada em Bolsas de Valores? Ou: por que os árabes e nordestinos não inventaram, ainda, o mercado futuro de água?

Também perguntem aos membros da Aliança RECOs (Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras), que constroem um novo modelo econômico para América Latina e o Caribe, cujos relatórios e consultas públicas são assinados por mais de 5000 profissionais multidisciplinares e centenas de comunidades e instituições ao longo de duas décadas: por que não propusemos (ou melhor, pensamos) nessa Lei SISA antes?

Talvez porque não sejamos tão inteligentes quanto os idealizadores da Lei SISA a ponto de mobilizar o urubu.

O urubu mobilizado
de João Cabral de Melo Neto:

Durante as secas do sertão, o urubu
de urubu livre, passa a funcionário.
Ele nunca retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto,
ele, que no civil que o morto claro.
Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e secretário,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
Com que age, embora em posto subalterno:
ele, um convicto profissional liberal.

Referências:

EL KHALILI, Amyra; SOFFIATI, Arthur. Lei de pagamentos por serviços ambientais do Acre beneficia mercado financeiro. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 12, n. 68, p.9-12, mar./abr. 2013.

EL KHALILI, Amyra. As commodities ambientais e a métrica do carbono. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 16, n. 93, p.26-31, maio./jun. 2017.
Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras.

Arthur Soffiati é Doutor em História Social com concentração em História Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor aposentado da Universidade Federal Fluminense, integra o Núcleo de Estudos Socioambientais da mesma universidade. Publicou dez livros, além de vários capítulos de livros, de artigos em revistas especializadas e de artigos jornalísticos semanais.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

CNDH manifesta preocupação quanto a aumento da violência em conflitos no campo

O crescimento da violência que vitima povos, comunidades e trabalhadores e trabalhadoras do campo também foi visto com preocupação pelo Plenário do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), reunido em Brasília nos dias 31 de janeiro e 1° de fevereiro em Brasília,  em sua 34ª Reunião Ordinária.
Em nota aprovada pelo Plenário nesta quarta-feira (31 de janeiro), o colegiado alerta sobre o crescimento da violência contra defensores e defensoras de direitos humanos, especialmente vinculada a conflitos fundiários; contra povos indígenas, e para a quantidade de chacinas ocorridas em 2017. “As execuções em Colniza/MT (nove trabalhadores), Pau D’arco/PA (nove trabalhadores e uma trabalhadora) e Vilhena/RO (três trabalhadores), demonstram um ataque indiscriminado à luta pelos direitos humanos, especialmente vinculados às questões agrárias no Brasil”, diz a nota.
“O ano de 2018 começa com o assassinato de dois defensores de direitos humanos (execuções ocorridas em Anapu/PA e Iramaia/BA), o assassinato de dois professores indígenas (mortos a pauladas, em Penha/SC, e por apedrejamento, em Confresa/MT) além de um atentado por arma de fogo contra um indígena Munduruku em Itaituba/PA. São casos que apontam para um quadro gravíssimo de violência que requer urgente e necessária proteção e garantia dos direitos humanos”, destaca o documento do CNDH.
O colegiado também destaca que, “paralelo a este crescimento nos dados sobre a violência no campo, o Estado brasileiro tem tomado medidas que, na contramão dos direitos humanos, podem agravar um quadro que já é extremamente grave”, citando a Medida Provisória 759/2016 (altera a política de reforma agrária), a redução orçamentária para políticas públicas voltadas para a agricultura familiar, a paralisação das demarcações dos territórios indígenas e quilombolas, dentre outras questões.
Assessoria de Comunicação do CNDH
+55 61 2027-3348 / cndh@mdh.gov.br

Morto a pedradas

A notícia no site do Cimi passou quase em branco. No dia 29 de janeiro, o professor Daniel Kabixana, da etnia Tapirapé, foi encontrado morto a pedradas no município de Confresa, no Mato Grosso. Foi o segundo professor indígena assassinado este ano – no dia 1o de janeiro Xokleng Marcondes Namblá, da TI Naklãnõ, no Vale do Itajaí, foi morto a pauladas na praia da Penha, no litoral de Santa Catarina. 

Aparentemente são crimes diferentes. Dois dos três homens que atacaram o professor Daniel disseram à polícia que queriam roubar 20 reais da vítima que encontraram em um bar. Em relação ao outro professor, há imagens do agressor – que aparentemente espancou o indígena até a morte sem motivo – gravadas por câmeras do comércio, mas a polícia ainda não identificou o culpado. 

Os missionários do Cimi, porém, que vivem nas regiões onde a violência eclode, veem mais que coincidência entre os episódios. As áreas onde vivem as vítimas são valorizadas – uma pela soja outra pelo turismo – e as invasões são constantes. Eunice Dias de Paula, que vive junto aos Tapirapé, por exemplo, conta que, a partir de 2016, quando a área se tornou ponto de escoamento da soja para o porto de Itaqui (Maranhão) houve uma explosão de prostituição, drogas e violência em Confresa. “Dormem na cidade de 80 a 100 carretas, esperando vaga para o descarregamento no porto”, explica a missionária.  

Ela também fala do racismo na região, alimentado pela mentira de que os índios receberiam dinheiro do governo sem trabalhar (o que é mentira) e que ocupam terras que trariam mais riqueza à população se destinadas ao agronegócio (outra mentira).

O silêncio sobre o racismo já trouxe sofrimento demais ao brasileiros. Como se diz, a luz do sol é o melhor desinfetante. Vamos encarar que somos um país violento e racista e nos educar.

Aprender com os indígenas, ouvir suas vozes e ideias. E desmascarar as mentiras que semeiam o ódio. Afinal, sabemos todos que não será nas aldeias que encontraremos os privilegiados e os parasitas desse país. Mais fácil procurar na cúpula do Judiciário.
Marina Amaral, co-diretora da Agência Pública