terça-feira, 5 de agosto de 2014

Discurso do subcomandante Marcos sobre Gaza, no Festival Mundial da Digna Fúria, 4 de Janeiro de 2009

Traduzido para várias línguas inclusive o árabe pela TLAXCALA

Em Português

Talvez o que vou dizer não venha a propósito do que é o tema central desta reunião, ou talvez sim.

Há dois dias, no mesmo dia em que falávamos de violência, a inefável Condoleezza Rice, funcionária do governo usamericano, declarou que o que estava a acontecer em Gaza era culpa dos palestinianos devido à sua natureza violenta.

Os rios subterrâneos que percorrem o mundo podem mudar de geografia, mas cantam a mesma canção. E a que ouvimos agora é de guerra e de pesar.

Não muito longe de aqui, num lugar chamado Gaza, na Palestina, no Médio Oriente, aqui ao lado, um exército fortemente armado e treinado, o do governo de Israel, continua a sua marcha de morte e destruição.

Os passos que tem seguido até agora são os de uma guerra militar clássica de conquista: primeiro um bombardeamento intenso e massivo para destruir pontos militares “estratégicos” (assim o diz os manuais militares) e para enfraquecer a resistência.

Depois um controlo feroz da informação: tudo o que é ouvido e visto “no exterior”, ou seja fora do campo de operações, deve ser seleccionado com critérios militares.

Agora fogo intenso da artilharia sobre a infantaria inimiga para proteger o avanço das tropas para novas posições.

Depois será o cerco para debilitar a guarnição inimiga. Em seguida o ataque para conquistar posição e aniquilar o inimigo.

Por fim a limpeza dos prováveis “ninhos de resistência”. As forças militares invasoras estão a seguir, com algumas variações e acréscimos, o manual militar da guerra moderna.

É verdade que nós não sabemos muito sobre o assunto, para isso existem especialistas sobre o chamado “conflito no Médio Oriente”, mas desde o nosso canto do mundo temos algo a dizer: segundo as fotografias das agências de notícias os pontos “estratégicos” destruídos pela aviação do governo de Israel são casas de habitação, cabanas, edifícios civis. Não vimos nenhum bunker, quartel, aeroporto militar, nem canhões no meio da destruição.

Então, e por favor desculpem a nossa ignorância, pensamos que ou os bombardeiros têm má pontaria ou esses tais pontos “estratégicos” militares não existem em Gaza.

Não temos a honra de conhecer a Palestina, mas supomos que nessas casas, cabanas e edifícios vive gente, homens, mulheres, crianças e idosos, e não apenas soldados.

Também não vimos a fortificação da resistência, apenas escombros. Vimos, isso sim, os esforços em vão do cerco informativo, os governos de vários países a tentarem decidir se devem ignorar ou aplaudir a invasão, e a ONU, inútil desde há muito, a emitir tépidos comunicados de imprensa.

Mas esperem! Ocorre-nos que talvez o governo israelense considere aqueles homens, mulheres, crianças e idosos soldados inimigos, e que por isso as cabanas, as casas e os edifícios em que vivem são quartéis que têm de ser destruídos.

Por isso seguramente a chuva de balas que caiu esta manhã em Gaza era para proteger a infantaria do exército de Israel desses homens, mulheres, crianças e idosos.

E a guarnição inimiga que querem debilitar com o cerco que se está a fazer à volta de Gaza não é outra coisa senão a população palestiniana que aí vive.

E o ataque procurará aniquilar essa população. E qualquer homem, mulher, criança ou idoso que tente escapar, escondendo-se do ataque previsivelmente sangrento, será depois “caçado” para que se complete a limpeza e para que os encarregados da operação possam enviar os seus relatórios aos superiores dizendo “terminámos a nossa missão”.

Desculpem mais uma vez a nossa ignorância, talvez o que estou a dizer não venha, de facto, ao caso. E que em vez de estar a repudiar e a condenar o crime em curso, como indígenas e como guerreiros que somos, deveríamos estar a falar e a tomar posição no debate sobre se é “sionismo” ou “anti-semitismo”, ou se foram as bombas do Hamas a origem de tudo isto.

Talvez a nossa maneira de pensar seja muito simples, e talvez nos faltem nuances e comentários sempre tão necessários para as análises mas, para nós os zapatistas, em Gaza há um exército profissional a assassinar uma população indefesa.

Quem é que, em qualquer lugar do mundo, pode ficar calado? Vale a pena dizer alguma coisa? Os nossos gritos detêm alguma bomba? A nossa palavra salva a vida de alguma criança palestiniana? Achamos que sim.

Talvez não paremos uma bomba, nem a nossa palavra se converta num escudo blindado que evite que essa bala de calibre 5.66 mm ou 9 mm, com as letras “IMI” (Indústria Militar Israelense) gravadas na base do cartucho, chegue ao peito de uma criança.

Mas talvez a nossa palavra consiga unir-se a outras no México e no mundo e talvez inicialmente seja um murmúrio, depois uma voz alta e finalmente um grito que se ouve em Gaza.

Não sabemos o que vocês pensam mas nós, os zapatistas do Exército Zapatista de Libertação Nacional, sabemos o quanto é importante, no meio da destruição e da morte, ouvir palavras de alento.

Não sei como explicar, é verdade que as palavras de longe talvez não consigam deter uma bomba, mas são como se se abrisse uma greta no quarto escuro da morte ou como se entrasse uma luzinha.

Quanto ao resto, o que acontecer acontecerá.

O governo de Israel declarará que deu um severo golpe ao terrorismo, ocultará do seu povo a magnitude do seu massacre, os grandes produtores de armamento obterão apoio económico para enfrentar a crise, e a “opinião pública mundial”, esse ser maleável sempre a jeito, voltará a olhar para outro lado.

Mas não só.

Também vai acontecer que o povo palestiniano vai resistir e sobreviver e vai continuar a lutar, e continuará a ter a simpatia dos de baixo pela sua causa.


E talvez um menino ou uma menina de Gaza sobreviva também.

Talvez com eles cresça a coragem, a indignação, a revolta.

Talvez venham a ser soldados ou milicianos de algum dos grupos que lutam na Palestina.

Talvez combatam contra Israel. Talvez o façam disparando uma arma.

Talvez se imolem com um cinto de cartuchos de dinamite na cintura.

E então, lá em cima, escreverão sobre a natureza violenta dos palestinianos e far-se-ão declarações condenando essa violência e voltar-se-á a debater se é sionismo ou anti-semitismo.

E ninguém perguntará quem semeou o que está a colher.

Em nome dos homens, mulheres, crianças e idosos do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Subcomandante Insurgente Marcos
México, 4 de Janeiro de 2009

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