sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

As palavras e as coisas: desafios da reforma agrária na Amazônia no 27º ano da morte de Chico Mendes[1]

Israel Souza[2]

Ambientalismo, não; reforma agrária: as palavras certas para nossa luta

Em levantamento recente (início de dezembro), a ONG Global Witness apontou que 78 “ambientalistas” foram mortos no mundo neste ano de 2015 (Ao menos 78 ambientalistas foram assassinados em 2015: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/09/internacional/1449685932_807960.html). Segundo um porta-voz da ONG britânica, essas pessoas foram assassinadas por “lutarem por seu direito a um ambiente saudável”.
Ainda de acordo com o mesmo levantamento, em todo mundo, entre 2008 e 2012, período de alta dos preços de commodities, o número de mortes passou de 40 para 147 mortes por ano. Em 2015, portanto, tivemos uma diminuição no número de mortes dos “ambientalistas”.
Em 2014, Brasil e Colômbia foram responsáveis por quase 50% desse total de mortes, sendo, por isso, considerados os “piores países para a atuação de ambientalistas”. O Brasil ficou no topo da lista (Brasil lidera mortes de ambientalistas: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/brasil-lidera-em-mortes-de-ambientalistas-9896.html. 40% dos mortos são indígenas, vítimas da exploração madeireira, da mineração e das hidrelétricas.
Não entrarei no mérito dos números. Há muito, porém, o que refletir sobre a definição dos que foram assassinados e sobre o motivo de suas mortes. Esse é um claro exemplo em que as palavras não correspondem às coisas.
Em toda essa maneira de falar e interpretar, há uma espécie de invisibilização, de acobertamento da realidade pelas palavras. Para mim, esse é um dos grandes desafios da reforma agrária na Amazônia nestes nossos dias. Precisamos nos valer das palavras certas para falar de nossas lutas e de nossos objetivos.
O levantamento aqui em questão fala de assassinato de “ambientalistas”, de pessoas que morreram lutando por um “ambiente saudável”. Uma expressão plástica como esta sugere que pessoas foram assassinadas por varrerem suas casas e lavarem seus lençóis, pois isso é também zelar por um “ambiente saudável”. Talvez por desinformação, mas não conheço nem um caso de alguém que fora assassinado por isso.
A verdade, porém, é que essas pessoas (referidas naquele levantamento) foram assassinadas por se colocarem contra os madeireiros, empreiteiros, mineradores e latifundiários. Foram assassinadas por lutarem por suas terras, seus territórios. Numa palavra: estas pessoas foram vítimas de conflitos agrários.
Não por acaso, a maioria dos mortos era de indígenas e posseiros, pessoas que, mesmo quando têm seus direitos reconhecidos pela lei, não os têm respeitados na prática.
Se tratamos tudo isso como “luta ambientalista”:

1) encobrimos a realidade, borramos importantes diferenças entre práticas e lutas distintas, e findamos por romantizar a tragédia;
2) não conseguimos verbalizar e mostrar para os outros nossas dores, nossos sonhos e lutas. É como se lutássemos no escuro e em silêncio. Ninguém nos vê ou entende. Isso não é coisa de pouca monta. Cabe lembrar que os avanços que a luta dos seringueiros obteve, sob a liderança de Chico Mendes, se deveu ao fato de ter rompido o cerco, de ter comunicado ao mundo sua luta. Se sua luta tivesse se restringido ao Acre, aqui mesmo ela teria sido silenciada e hoje, no mundo e mesmo na capital Rio Branco (AC), provavelmente poucos saberiam quem foi Chico Mendes;
3) usamos a linguagem de nossos inimigos. Assim sendo, é como se nossos inimigos falassem por nossas bocas. As palavras que sairiam de nossas bocas não seriam nossas, e sim deles. Nossa língua contaria, não nossa história, mas a história deles, do ponto de vista e dos interesses deles. Ao fazer isso, usar a linguagem de nossos inimigos, estamos nos rendendo e dando mais forças a eles, pois assumimos a visão que eles têm das coisas.
Por isso é que, sob o manto do “ambientalismo”, eles vêm sufocando o que realmente está em jogo: a luta por terras e territórios com todas as riquezas (materiais e imateriais) que eles encerram. Uma luta demasiado antiga e, não obstante, atualíssima. É o contínuo avanço do capital para se interpor entre o homem e a natureza, buscando lucrar sobre as duas fontes de riqueza: o trabalho e a natureza. De um lado, os que precisam do território para sobreviver. De outro, aqueles que querem lançar mão deles apenas aumentar suas fortunas.
Os primeiros não lutam apenas por quererem “um ambiente saudável”. Isso conta, obviamente. Mas lutam, sobretudo, porque disso depende sua sobrevivência física e cultural. Os últimos não afrontam os direitos desses a seus territórios por não quererem um ambiente saudável, mas porque querem suas riquezas.

O ambientalismo dos governos federal e local

Para termos clareza quanto a isso, vejamos a retórica e a prática dos governos federal e local. Comecemos lembrando que o governo federal alardeava que seria liderança na COP21 (conferência sobre o clima que ocorreu recentemente em Paris), uma espécie de guia para os outros países a respeito do que fazer em tempos de “crise ambiental” e “mudanças climáticas”. Ocorre que, dos anos de chumbo para cá, o governo Dilma foi o que menos realizou assentamentos e reconheceu Terras Indígenas e quilombolas. E ainda. Até meados de dezembro de 2015, o Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, da CPT, registrou o maior número de assassinatos no campo desde 2004 (NOTA PÚBLICA: O momento político atual e a surdez do governo Dilma: http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes-2/destaque/3040-nota-publica-o-momento-politico-atual-e-a-surdez-do-governo-dilma). Foram 46. Não por acaso, 44 destes foram na Amazônia, região com vastos e ricos territórios.
Segundo o já citado levantamento da Global Witness, tivemos, em todo o mundo, uma diminuição no número de mortes de “ambientalistas” em 2015. No Brasil, porém, seguimos na contramão. Aqui, aumentou o número daqueles que lutam por seus territórios e contra o avanço do capital sobre a natureza. E a culpa por isso recai, maiormente, sobre as costas do governo.
É consabido que, onde as populações locais têm efetivamente seus direitos territoriais assegurados, a depredação da natureza é barrada. No entanto, o governo federal segue numa linha de favorecimento a atividades sabidamente danosas à natureza, como construção de hidrelétricas, mineração e agronegócio. Kátia Abreu, rainha do agronegócio e inimiga declarada de populações locais, é ministra e, segundo dizem (as boas e as más línguas), uma das melhores amigas da presidente.
Por tudo isso, não causa estranheza que, sob este governo, por sua ação e inação, campeie o genocídio de indígenas no Mato Grosso do Sul e sejam forjados a PEC 215, o Novo Código de Mineração, a modificação do conceito de trabalho escravo, fragilização e enquadramento de órgãos fiscalizadores, aceleração e deturpação de licenciamentos ambientais, bem como as CPIs da FUNAI e do INCRA (em Brasília) e do CIMI (em Mato Grosso do Sul).
Seguindo a mesma lógica do Novo Código Florestal, o conjunto de tudo isso procura assegurar o acesso do capital aos mais diversos e ricos territórios, fragiliza os direitos territoriais das populações locais e criminaliza todos aqueles que ousem se levantar contra essa ordem de coisas.
Por seu turno, para justificar sua política de “desenvolvimento sustentável”, o governo local se apropriou da figura de Chico Mendes e se fortaleceu dividindo o movimento dos trabalhadores rurais, cooptando uma parte e isolando a outra[3]. Como sabemos esta é uma política que, sob a justificativa de preservação ambiental, tem favorecido grandes madeireiras (todas de fora), algumas ONGs e o próprio governo, através de financiamento externo.
O Estado vai se afundando num “círculo vicioso da dívida pública”. Os empréstimos são vultosos. E nós nunca vemos seus benefícios. Sequer sabemos onde foram investidos. Todavia, para pagá-los, o governo usa a floresta e os tais manejos sustentáveis. Sob este governo, que já vai contar 20 anos usando a abusando da figura de Chico Mendes, os índios tiveram o processo de demarcação de suas terras paralisado. Muitos agentes governamentais e ongueiros vão até eles, tentando convencê-los a aceitar políticas de crédito de carbono. Prometem milhões para isso.
Por outro lado, quem aceita o manejo pode derrubar centenas e até milhares de ha de florestas. Enquanto os outros, a maioria, não pode nem cortar uma árvore para uso doméstico, como construir casa, cercar o terreno e coisas assim.
Sabemos que não apenas isso. Caçar e colocar roçado para comer virou crime. Pode dar multas impagáveis e cadeia. Para citar apenas um caso: sabemos daquele seringueiro que, por cortar 5 árvores para uso doméstico, recebeu um multa de mais de 300 mil reais.  
Sob a política do “desenvolvimento sustentável”, os inimigos da floresta foram transformados em heróis; e os amigos da floresta, aqueles que efetivamente cuidam dela, foram transformados em bandidos, criminosos.
Dizendo estar realizando o sonho de Chico Mendes, que foi transformado em “ambientalista”, o governo local diz que todos (madeireiros, índios, empresários, seringueiros, posseiros etc.) estão unidos pela preservação da floresta. Segundo ele, já não há problemas com a reforma agrária. Não há mais luta pela terra. Quanto a isso, ainda de acordo com o governo, estão todos satisfeitos. A preocupação de todos é ambiental, e não agrária. E assim, mais uma vez, o ambientalismo encobre nossa luta, justifica a opressão e a exploração.
Como depende de propaganda enganosa a respeito desse modelo de desenvolvimento para atrair investidores e assegurar empréstimos, é imperativo para o governo silenciar qualquer reivindicação pela terra, pois isso mostraria que os problemas agrários não foram resolvidos. Ao contrário. Vêm até se agravando por força de sua política de desenvolvimento sustentável.
É necessário reafirmar nossa luta e seu sentido. Ter claro que Chico Mendes não era ambientalista, e, se o fosse, no sentido que o governo local propala, não teria sido assassinado. Chico era seringueiro e socialista. Lutava pela reforma agrária e contra o capital, e por isso foi morto. Foi sagaz ao perceber que, naquele momento, as pessoas não se importavam com a dor dos seringueiros. Mas, se falassem em proteção da floresta amazônica, iam se interessar. Isso já serviu. Não serve mais. É uma armadilha. Devemos nos desvencilhar dela.
Pela visão ambiental, eles falam em proteger a floresta. Mas proteger de quem? De nós, que sempre a protegemos, e hoje somos tratados como criminosos. Pela visão ambiental, eles falam em proteger a floresta. Mas proteger para quem? Para aqueles como os madeireiros, que sempre destruíram (e destroem) a floresta, mas têm capital, e, por isso, são amigos e patrões do governo.
            Por isso há que se dizer que, mais que um país perigoso para a atuação de ambientalistas, o Brasil é perigoso para quem defende a reforma agrária. Aqui, no Acre, a maioria dos ambientalistas (e suas ONGs) está irmanada com o governo no intuito de expropriar as comunidades locais e garantir que o capital tenha acesso irrestrito a seus territórios e riquezas. Aqui, o maior risco que a maioria dos ambientalistas corre é ser bem remunerada pelo governo e pelos capitalistas por seus prestimosos serviços.

Saber pelo quê e por quem lutar

A polarização política que marca a atual conjuntura torna nossos desafios ainda maiores. Muitos têm sucumbido a ela. No último dia 16/12/15, indígenas tomaram o Congresso contra a PEC 215 e contra Cunha, mas a favor da Dilma, por incrível que pareça.
Sim. Também eles, que vêm sofrendo miseravelmente pelo abandono e pela violência, saíram em defesa da presidenta, tratando o impeachment “como golpe”. Deixaram-se enredar na luta entre governo e oposição, e tomaram as dores do governo, mesmo sem nada a ganhar de ambas as partes.
Quanto a isso, o caso do MST é ainda mais curioso e trágico. Sistematicamente, tem saído em defesa de Dilma, mesmo que ela venha conduzindo o pior governo para a reforma agrária, considerando governos militares e mesmo os do PSDB.
Será que o movimento leva isso em consideração quando sai pelas ruas em “defesa da democracia”? Será que deixou de compreender que, num país em que a concentração de terra é colossal, a reforma agrária é um componente indispensável da questão democrática? Não sei. Mas, pelo que vemos, hoje, para o maior movimento de luta pela terra da história brasileira, a manutenção do governo lhe parece mais importante que sua causa (a reforma agrária).
Precisamos vencer este desafio de entender que a causa do governo não é a nossa. PT e PSDB não são esquerda e direita, um defendendo os explorados e o outro, os exploradores. Tais partidos não são senão as “alas vermelha e azul da direita brasileira”. Ambos são golpistas. A polarização que protagonizam apenas expressa a miséria política por que ora passamos, bem como a confusão que se abateu sobre as forças populares.
É preciso abandonar, e de vez, o medo de a “direita voltar ao poder central”. Ela nunca saiu de lá. E só ganhou com os governos do PT. Ganhou mais partidos e defensores para suas causas.
Os desafios da Amazônia neste 27° ano da morte de Chico Mendes são os desafios que ele enfrentou em vida: os desafios da reforma agrária. Dentre outras coisas, para sermos exitosos nesta luta devemos assumir com clareza nossos objetivos, abandonar a linguagem e a visão de nossos inimigos; devemos evitar as ilusões para com o Estado, governos e partidos. A luta pela Amazônia é a luta da reforma agrária. A luta pela reforma agrária não pode deixar de ser contra o capital e todas as suas personificações e serviçais.



[1] O presente texto é uma síntese da palestra que proferi na sede do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais na cidade natal de Chico Mendes (Xapuri), em22/12/15, em razão do 27º ano de sua morte. Embora traga no título uma referência a um conhecido livro de Foucault, a abordagem é bem outra.
[2] Cientista Social com habilitação em Ciência Política, mestre em Desenvolvimento Regional e membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental - NUPESDAO. E-mail: israelpolitica@gmail.com
[3] Dois eventos foram realizados em locais vizinhos, em Xapuri, em razão do 27° ano da morte de Chico Mendes. Um deles, ocorrido na sede do sindicato, falava de um Chico militante da reforma agrária, tratava dos desafios da reforma agrária, da expulsão de posseiros que vem ocorrendo, dos desmatamentos, da repressão de órgãos como Ibama e ICMbio etc. O outro, ocorrido no salão paroquial, bem ao lado, falava de um Chico ambientalista cujos sonhos haviam se concretizado e exaltava a política de desenvolvimento do governo local, calcada na exploração madeireira.  

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