quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Nem tudo o que é econômico é financeiro. Lamentavelmente, porém, tudo o que é financeiro é econômico.

Por Amyra El Khalili*
Para entender como e por que o capitalismo verde avança sobre os territórios indígenas e das populações tradicionais, é necessário reconhecer os paradoxos da água; ou seja, a água é vida e morte, liberdade e escravidão, esperança e opressão, guerra e paz. A água é um bem imensurável, insubstituível e indispensável à vida em nosso planeta, considerada pelo Artigo 225 da Constituição Brasileira, bem difuso, de uso comum do povo.
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Nesse sentido, a recente descoberta do que pode ser o maior aquífero de água doce do mundo na região amazônica, o Alter do Chão, que se estende sob as bacias do Marajó (PA), Amazonas, Solimões (AM) e Acre, todas na região amazônica, chegando até as bacias subandinas, exige atenção e cuidado por parte da sociedade brasileira.
Convulsões sociais ocorrerão se não estivermos preparados para novos enfrentamentos geopolíticos, uma vez que o aquífero Alter do Chão, que chega a 162.520 mil quilômetros cúbicos, possui mais que o triplo da capacidade hídrica do Aquífero Guarani com 45 mil quilômetros cúbicos, considerado até então, o maior do mundo. Segundo estimativas de cientistas, o Alter do Chão abasteceria o planeta por pelo menos 250 anos. Sendo assim, ele atrai, inevitavelmente, a cobiça dos países do hemisfério Norte, que já não têm mais água para o consumo. Processo similar acontece no Oriente Médio, com disputas sangrentas pelo petróleo e gás natural.
O controle sobre essa riqueza hídrica depende exclusivamente do controle territorial. As águas são transfronteiriças e avançam sobre os limites entre municípios, estados e países. O recorde histórico da cheia do Rio Madeira em 2014, que inundou cidades na Bolívia, além das trágicas inundações nos estados de Rondônia e no Acre, é um bom exemplo dessa característica das águas.
De modo geral, a água está sendo contaminada com a mineração e com o despejo de efluentes, agrotóxicos e químicos, e poderá ser poluída também com a iminência da exploração de gás de xisto, onde a técnica usada para fraturar a rocha pode contaminar as águas subterrâneas, além de intoxicar o ar.
Segundo estimativas de um relatório do projeto Land Matrix, que reúne uma série de organizações internacionais focadas na questão agrária, mais de 83,2 milhões de hectares de terra em países em desenvolvimento foram vendidos em grandes transações internacionais desde 2000. Os países economicamente mais vulneráveis da África e da Ásia perderam extensas fatias de terras em transações internacionais nos últimos 10 anos. A África é o principal alvo das aquisições, seguida da Ásia e América Latina. Essas compras foram estimuladas pelo aumento nos preços das commodities agrícolas e pela escassez de água em alguns dos países compradores, que o fazem para a exploração da agricultura, mineração, madeira e do turismo.
Outros países são alvos dessa ofensiva fundiária, como a Indonésia, Filipinas, Malásia, Congo, Etiópia, Sudão e o Brasil, que teve mais de 3,8 milhões de hectares vendidos para estrangeiros somente nos últimos 12 anos. E estamos falando de terras que poderiam ser adquiridas legalmente através da compra; porém, as terras indígenas e de populações tradicionais são terras da União e, portanto, não podem ser negociadas e nem alienadas, pois estão protegidas por leis nacionais e internacionais.
São justamente essas terras que estão preservadas e conservadas ambientalmente, além de serem as mais ricas em biodiversidade, água, minério e energia (bens comuns). São nessas áreas que ocorre o avanço desenfreado do capitalismo verde que, na verdade, é o mesmo velho e desgastado modelo colonialista e extrativista. Com uma nova roupagem ecológica e supostamente sustentável, mas imperialista e expansionista neoliberal, visa, prioritariamente, à apropriação dos bens comuns. De uso público e tutelados pelo Estado, esses bens são definidos como “recursos naturais”, assim como os trabalhadores são considerados pelo sistema como “recursos humanos”. Tudo neste modelo “verde” é transformado em “utilitário” com a finalidade de ser usado ilimitadamente e no curto prazo.
Essa concepção utilitarista do capitalismo verde já é confrontada com outros modelos econômicos e outras propostas de vida, como o Bem Viver, dos povos das florestas e campesinos, a economia socioambiental, a economia solidária e a agroecologia, dentre outras que estão florescendo.
Como já dito, esse modelo econômico com purpurina verde pretende apropriar-se dos bens comuns e, para isso, é necessário tomar as terras que estão sob o guarda-chuva da União e que pertencem há milênios aos povos indígenas e demais povos das florestas.
Para que essa guerra seja viabilizada, algumas leis estão sendo aprovadas com o claro propósito de beneficiar o mercado financeiro. Paralelamente, outras leis são desmanteladas para institucionalizar e legitimar a ocupação de estrangeiros, empresários e banqueiros em territórios latino-americanos e caribenhos, como é o caso dos direitos fundamentais dos povos indígenas, o Código Florestal, os direitos trabalhistas, entre outros.
Dessa forma, contratos unilaterais e perversos são assinados por atores com relações de forças totalmente desiguais (assimétricas), em que confunde-se, propositadamente, “financiar” com “financeirizar”.
Aqui cabe uma elucidativa exemplificação: financiar é, por exemplo, permitir que uma costureira compre uma máquina de costura e consiga pagá-la com o fruto de seu trabalho, tornando-se independente de um empregador para que venha a ser empreendedora.
Já, financeirizar é fazer com que a costureira endivide-se para comprar uma máquina de costura e jamais consiga pagá-la, até que o credor possa tomar a máquina da costureira por inadimplência (não cumprimento do acordo mercantil).
A financeirização faz com que uma parte do acordo, a descapitalizada, fique endividada e tenha que entregar o que ainda possui, como as terras indígenas. E, assim, são desenhados contratos financeiros e mercantis com a finalidade de vincular as terras ricas em bens comuns para que essas garantias fiquem alienadas e à disposição da parte mais forte: a capitalizada.
Nesses termos, as populações indígenas e os povos das florestas deixam de poder usar o que lhes mantêm vivos e o que preservam há séculos para as presentes e futuras gerações, as florestas e as águas, para que terceiros possam utilizá-los, além de passarem a controlar também seus territórios.
É essa a lógica perversa do capitalismo verde, sustentado pelo argumento de que as florestas “em pé” somente serão viáveis se tiverem valor econômico. O que é uma falácia, pois valor econômico as florestas “em pé” e as águas sempre tiveram. O que não tinham, até então, era valor financeiro, já que não há preço que pague o valor econômico das florestas, dos bens comuns e dos “serviços” que a natureza nos proporciona gratuitamente.
O capitalismo somente avança nas fronteiras que consegue quantificar; porém, jamais conseguirá se apropriar do que a sociedade puder qualificar.
O bem ambiental, conforme explica o art. 225 da Constituição, é “de uso comum do povo”, ou seja, não é bem de propriedade pública, mas, sim, de natureza difusa, razão pela qual ninguém pode adotar medidas que impliquem gozar, dispor, fruir do bem ambiental, destruí-lo ou fazer com ele, de forma absolutamente livre, tudo aquilo que é da vontade, do desejo da pessoa humana no plano individual ou metaindividual.
Ao bem ambiental, é somente conferido o direito de usá-lo, garantido o direito das presentes e futuras gerações.
Não podemos nos omitir nem deixar de nos posicionar em favor daqueles que são os guardiões das florestas e das águas. Temos muito que aprender com esses povos para também preservar os conhecimentos milenares da origem da humanidade.
Somente qualificando o bem comum, ao dar-lhe importância econômica pela garantia da qualidade de vida que nos proporciona e nos recusando a colocar-lhe preço (financeirizando-o), é que poderemos impedir o avanço desenfreado do capitalismo verde sobre os territórios indígenas e das populações tradicionais.
Se o povo, o proprietário hereditário dos bens comuns decidir que o ouro, o petróleo e o gás de xisto, dentre outros minérios, devem ficar debaixo do solo para que possamos ter água com segurança hídrica e alimentar, que sua vontade soberana seja cumprida.
Notas:
1 “Aquífero na Amazônia pode ser o maior do mundo, dizem geólogos”. Disponível em: <http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/04/aquifero-na-amazonia-pode-ser-o-maior-do-mundo-dizem-geologos.html>. Acesso em: 19 abr. 2010.
2 “Plantando no vizinho. 10 países que estão comprando terras estrangeiras aos montes”. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/economia/mundo/noticias/10-paises-que-estao-comprando-terras-estrangeiras-aos-montes>. Acesso em: 24 mai. 2012.
3 MADEIRO, Carlos. Maior aquífero do mundo fica no Brasil e abasteceria o planeta por 250 anos. Disponível em 21 mar. 2015. Acesso em 21 abr. 2017 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/03/21/maior-aquifero-do-mundo-fica-no-brasil-e-abasteceria-o-planeta-por-250-anos.htm.
Referências:
Financeirização da Natureza: a última fronteira do capital. Jornal Porantim. Publicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo vinculado à CNBB. Ano XXXVI, nº 368, Brasília, Set 2014. Disponível em 09 dez. 2014. Acesso em 21 mar. 2017. http://cimi.org.br/pub/Porantim%20368%20-%20para%20SITE_1.pdf
EL KHALILI, Amyra. A lógica perversa do capitalismo verde. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 13, n. 78, p. -, nov./dez. 2014.
_____O que está em jogo na “economia verde?. Disponível em 19 mar. 2017 em português:http://operamundi.uol.com.br/dialogosdosul/o-que-esta-em-jogo-na-economia-verde/19032017/ em espanhol:http://operamundi.uol.com.br/dialogosdelsur/que-esta-en-juego-en-la-economia-verde/18032017/. Acesso em 21 de abr. 2017
*Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras

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