segunda-feira, 27 de abril de 2020

Financeirização e mercantilização da natureza em tempos de Coronavirus

Republico aqui uma entrevista que concedi à jornalista Nayá Fernandes, do EcoDebate, ainda em 2017 cujo título já apontava para os perigos da mercantilização e financeirização da natureza por meio de projetos de REDD (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal ou, em inglês, Reducing Emissions from Deforestation and Forest Degradation), REM (Programa REDD+ para Early Movers, ou REDD para pioneiros), como os que vem sendo adotados no Acre e apontados como "alternativa"  à insana poluição de nosso planeta. Interessante que no combate ao Virus, essa mesma gente que se beneficia desses projetos  ligados ao "mercado do AR" e da natureza nega, ou finge não ver a clara relação entre estes projetos que vendem o "direito de poluir",  e o virus, que sintomaticamente e infelizmente, ataca prioritariamente as vias respiratórias.

Aliás, em matéria publicada ontem , o governo do Acre anunciou mais de 2 milhões para investimentos em REM e, claro, dizendo ser  destinado aos povos indígenas do estado do Acre. Fala mesmo que contemplará, pasmem, 28 terras indígenas. Há que se perguntar às comunidades indígenas quanto dos milhões de EUROS gastos nesses projetos realmente chegou às famílias, às comunidades, ao povo. Os administradores desses recursos tem a obrigação de prestar contas ao povo  já que se trata de recursos públicos.

Eis a minha entrevista:

Pan-Amazônia: ‘Se falta o ar, compremos os pulmões’, entrevista com Lindomar Dias Padilha

Por Nayá Fernandes*
26/04/2017
Lindomar Dias Padilha é graduado em filosofia, especializado em Desenvolvimento e Relações Sociais pela Universidade Nacional de Brasília e formado em Direitos Humanos. Padilha atua junto aos povos indígenas da Amazônia brasileira desde 1991. Casado e pai de dois filhos, trabalha no observatório Pan Amazônico prestando serviços de análises sobre temas relacionados à Amazônia, aos territórios, e à mercantilização e financeirização da natureza. Na entrevista, Padilha, que é também membro do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, aprofunda questões relacionadas aos povos da Amazônia e ao bem viver.
* Podemos falar sobre um histórico de violação dos direitos humanos na Amazônia?
Regra geral, os povos indígenas são violados, saqueados e assassinados, física e culturalmente, desde a invasão europeia. O problema de fundo é que estes povos sempre foram “vítimas” de projetos sonhados por outros, e nunca foram considerados sujeitos e propositores de seus próprios projetos. Entretanto, creio que os ciclos que se seguiram após o contato também tiveram e têm papel preponderante na ação de expropriar e mercantilizar a natureza. Tivemos neste caso, aqui no Acre, dois ciclos onde a seringueira era a matéria prima para a produção de borracha para as fábricas que alimentavam a guerra e o “progresso”.
Neste momento, a tese principal tem sido a do uso intensivo do que ainda resta de matéria prima sob o pseudônimo de “sustentabilidade”. Está em curso um perverso modelo de ataque aos territórios indígenas e comunidades tradicionais. Destaco três aspectos deste modelo: um primeiro é o incentivo à produção de peixes em cativeiro (peixes de granja) num claro interesse de alimentar os mercados de ração e atacar a soberania alimentar das comunidades e, claro, criar ainda mais dependência; um segundo é o chamado “manejo” que, no caso do Acre, tem sido mais uma “autorização” para o desmate. Chamam de manejo sustentável, mas na prática, é insustentável porque, entre outras coisas, foca exclusivamente na madeira e desconsidera todos os outros elementos deste complexo bioma Amazônico, por exemplo, as fontes de água e os animais, notadamente as espécies endêmicas. E um terceiro aspecto são os projetos de Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA) especialmente os de REDD+ que não são outra coisa que não a autorização para que empresas e países que mais poluem, sigam poluindo por meio da compra de créditos de carbono. Ou seja, os povos indígenas, a título de preservarem seus territórios, estão na verdade vendendo o usufruto destes territórios para empresas que, assim, podem “compensar” a emissão de gases de efeito estufa e outros. A lógica do capitalismo verde é simples: se falta ar, então, compremos os pulmões.
Este é um tema propositadamente envolto a uma nuvem de suposta complexidade, mas na verdade, trata-se simplesmente do comércio do ar que respiramos. Quem pode, compra o direito de seguir poluindo e pronto.
* Que órgãos têm lutado a favor da defesa destes povos?
Teoricamente, temos muitos órgãos na defesa dos povos indígenas. Entretanto, temos que ter muito cuidado porque muitas ONGs, são basicamente “Organizações Neo Governamentais” porque dependem diretamente de recursos públicos. Por outro lado, muitas delas são dependentes de recursos externos, justamente de países ou financiadoras que desenvolvem trabalhos no campo da dita economia verde. Ou seja, empresas e governos se valem dessas ONGs para terem acesso às comunidades e induzi-las à venda de sua autonomia territorial.
Na prática, são pouquíssimas as instituições que, de fato, trabalham na defesa dos interesses dessas comunidades. Para não ser injusto, prefiro não citar nomes de organizações. Entretanto, posso afirmar com toda certeza que as mega ONGs, de atuação internacional, são, na verdade, empresas do capitalismo verde e, portanto, a serviço do grande capital e contra os povos indígenas e comunidades tradicionais. Também essas ONGs/empresas, fazem parte do sofisticado mecanismo de expropriação.
A REPAM (Rede Eclesial Pan Amazônica) tem se apresentado como uma proposta de rede capaz de articular essas entidades, ainda que o campo de atuação seja muito mais ligado à Igreja Católica. Aliás, isso aponta para uma nova etapa , uma etapa pós Laudato Sì. Essa é uma importante iniciativa e traz esperanças para os povos indígenas e comunidades da nossa Pan Amazônia.
* Sobre os casos concretos – de violação dos direitos dos povos – que foram levados aos Estados Unidos da América, há perspectivas de que os responsáveis sejam punidos?
Os sistemas ligados à Organização dos Estados Americanos (OEA), a despeito de sua boa vontade, é lento quando se trata de punição, talvez por ser uma organização financiada e mantida justamente pelos estados, na maioria das vezes, os que mais violam ou deixam violar os direitos. Nossa perspectiva, no entanto, é muito boa, porque mais que punir espera-se dar visibilidade aos casos e criar nos próprios estados, junto à sociedade civil, um clima mais favorável à Amazônia e seus povos, pessoas que vivem, produzem e cuidam desta vasta área riquíssima em bio-sócio-diversidade.
Todos os casos apresentados na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA por nós, são exemplos da gravíssima situação de violação dos direitos em nossos territórios e, cuja denúncia esperamos, alcance os ouvidos das pessoas de bem e boa vontade para que saiam na defesa desses povos e territórios. No caso do Acre, é preciso que o Brasil e o mundo saibam dessas violações travestidas de sustentáveis e apresentadas como “modelo” ao mundo. É preciso que a cortina se descerre e as pessoas vejam a verdade por trás desses projetos ligados à economia verde para que, assim, possam compreender o que realmente está se passando no Acre e em nossa grande Amazônia.
* Como podemos pensar no equilíbrio entre desenvolvimento econômico e defesa das comunidades tradicionais na Amazônia?
Esta é uma pergunta importante, porque temos que, a partir dela, definir o que estamos chamando de “desenvolvimento” econômico e para quem será este desenvolvimento. Os modelos que até aqui foram apresentados, todos, rigorosamente todos, se dirigiram (e ainda o são) para o desenvolvimento dos grandes conglomerados econômicos e países ligados a estes conglomerados. Assim, todos os projetos foram incompatíveis com a defesa das comunidades e do ambiente. Na cabeça dos que apregoam o “desenvolvimento” vêm uma série de cifrões. Também os seus olhos nada enxergam que não cifrões. Associam desenvolvimento ao consumo, padrão de consumo e poder de acumulação. Ou seja, uma comunidade ou um povo tem seu desenvolvimento medido a partir de sua capacidade de consumir e gerar lixo industrial.
O equilíbrio só será possível se nos libertarmos deste conceito de desenvolvimento e entendermos que o verdadeiro desenvolvimento está no uso sadio do que a natureza nos oferece em primeiro lugar para “vivermos bem” e não simplesmente explorar até a exaustão para satisfazer padrões de consumo. É muito mais desenvolvida uma comunidade onde todos trabalham na geração de vidas, de suas próprias vidas e de outros, onde a natureza é, antes de tudo, uma mãe que ama seus filhos, mas espera que em tempos de velhice estes filhos a amparem. Nossa Amazônia é esta mãe e neste momento se encontra enferma e bastante debilitada. Temos que cessar imediatamente as atividades que a explorem ainda mais e são o motivo de sua enfermidade. Temos que retirar daqui toda exploração madeireira, petroleira, minerações diversas. Por fim, temos que “expulsar” daqui os projetos de morte, ainda que disfarçados de sustentáveis, como os ligados a chamada economia verde, que não são outra coisa que “esverdear” as cinzas da destruição.
E sobre a financeirização da natureza que se contrapõe ao bem viver?
Quando as caravelas europeias aqui chegaram para invadir os territórios e expropriá-los, roubando-lhes o que fosse possível, chamaram a isto “descoberta” e tinham por finalidade comercializar as riquezas não exploradas pelos ignorantes que aqui viviam e, em contrapartida, trazer a civilização. Ou seja, civilizar era colocar no mercado. Por isso, este processo também era chamado de mercantilização. Civilização era o mesmo que mercantilização. Aí está a raiz da financeirização da natureza, bem como de todos os demais projetos de morte que se seguiram. Como eu já o disse, são projetos que enxergam cifrões e não vidas.
As caravelas e suas formas de “civilizar” foram se aperfeiçoando ao longo dos tempos e hoje nos são apresentadas no formato de economia verde ou eco-negócio. Simplesmente a “esverdeação” do velho mercado explorador das riquezas e das pessoas. Vejam a que ponto chegaram: exploração do ar! Sim, isso mesmo. Os mercados de carbono, assentados em projetos do tipo PSA (Pagamento por Serviços Ambientais), notadamente os de REDD+, não tem outra finalidade que não a exploração da capacidade de absorção da poluição gerada pelos gazes nocivos e da geração, portanto, de oxigênio e retenção do CO2. Este processo baseia-se na geração de créditos que funcionam como uma autorização para continuar a poluir em outra parte do planeta. Estes créditos gerados são negociados em bolsas e, quanto maior for a ameaça ao meio ambiente, tanto mais valiosos serão estes créditos.
Assim, os detentores desses créditos lucram, no mínimo, duas vezes. Uma vez porque seguem emitindo gazes nocivos e até aumentando a emissão; e outra vez porque, com o aumento da emissão e da poluição, os créditos adquiridos têm seu valor majorado gerando uma expectativa de lucro futuro. A este processo mais arranjado, sofisticado é que chamo de financeirização. A diferença que saliento é que, neste caso da financeirização, a natureza passa a ter perspectiva meramente financeira, sem os chamados investimentos. Ou seja, o mercado não faz nenhum investimento para adquirir o lucro. O mercado de carbono se porta como mercado de rezes que compra uma fazenda com as porteiras fechadas. Compra tudo que há ali, incluindo o direito à vida e o futuro das pessoas.
Nessas condições, é impossível falarmos em bem viver. Mercado e vida são figuras incompatíveis. Logo, a financeirização é exatamente o oposto ao bem viver.
* Que outros casos (tipos) de violação de direitos acontecem mais frequentemente na Amazônia?
Os projetos de ação direta, ligados às indústrias extrativas, como a petroleira e as de mineração, causam violações mais imediatas e visíveis porque atuam diretamente sobre as pessoas, seja na exploração da mão de obra, seja nos danos à saúde, por exemplo. Estes tipos de violações são mais frequentes porque estas indústrias não tem a sofisticação das ligadas ao comércio verde. Elas se portam como coronéis e para tanto possuem seus jagunços que são os políticos locais e os poderes do Estado como um todo. Os políticos locais e o Estado, se contentam com uma pequena parte do lucro e, em troca, aceitam penalizar à exaustão o ambiente e, claro, as pessoas que ali vivem.
Neste tipo de ambiente, ocorre todo tipo de violação e as denúncias quase sempre não surtem efeitos porque os poderes do Estado estão intimamente ligados às empresas e a serviço delas. Assim, a própria ação dos poderes do Estado, como o judiciário, atua sob constantes violações de direitos humanos. Neste ponto, reside a dificuldade em relação aos mecanismos de punição, se tornando a própria estrutura uma forma de violação dos direitos.
Violências e explorações, por exemplo, das crianças e adolescentes na Amazônia, contam quase sempre com a proteção de uma rede que envolve políticos locais, policiais, advogados e até setores do judiciário, além de pseudo-religiosos das mais diversas denominações. Dizer que a Amazônia é uma terra sem lei não corresponde à verdade. A Amazônia é uma terra cujas leis não protegem os amazônidas e são utilizadas para justificar o roubo, o saque a espoliação, a violação de direitos e finalmente, o assassínio.
*Nayá Fernandes é jornalista, formada em filosofia e teologia e pós-graduada em jornalismo literário. Desenvolveu projetos no Vale do Jequitinhonha (MG) e na Amazônia.
Colaboração da articulista Amyra El Khalili, in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 26/04/2017

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