quarta-feira, 18 de maio de 2022

10 anos do REDD+ no Acre e seus impactos sobre as mulheres indígenas e extrativistas Entrevista com Letícia Yawanawá e Dercy Teles

Dercy Teles. Foto Rosa Luxemburgo

Leticia Yawanawa


O programa REDD+ no estado do Acre na Amazônia brasileira tem sido usado como modelo para o mundo durante muitos anos por promotores do REDD+ como WWF e Banco Mundial. Mas em todas as avaliações feitas deste programa, pouco se fala sobre impactos que a economia verde tem causado na vida das mulheres em comunidades que dependem das florestas. 

Nesta entrevista, conversamos sobre o assunto com duas das lideranças mais importantes do Acre e do Brasil na luta pela terra: a camponesa, professora e militante Dercy Teles de Carvalho e a indígena Letícia Yawanawá.

Dercy é extrativista, e foi apresentada no artigo anterior deste dossiê. Letícia - na língua materna chamada de Atai Yawanawá - atua no movimento indígena desde 1996. Atualmente, é conselheira da Organização das Mulheres Indígenas do Acre, Sul da Amazônia e Noroeste de Rondônia (SITOAKOR), entidade a qual ela já coordenou, por dois mandatos. Letícia também faz parte do Conselho Nacional das Mulheres Indígenas (CONAMI). 

Minha opinião: A revista GOLPE VERDE: Falsas soluções para  o Desastre Climático, trás, na fala de duas grande mulheres, uma leitura sobre o cenário atual e aponta luzes para um futuro possível se houver articulação para enfrentar o assédio de bancos, governos, empresas e ONGs. Falas mansas, porém, firmes a denunciarem verdadeiramente o GOLPE VERDE em curso pelos proponentes dos programas e projetos do tipo REDD +. Aproveitem essa oportunidade e tenham uma boa leitura.


DOSSIÊ: Sempre foi dito que o REDD+ é programa no qual os indígenas seriam uma das prioridades. Como você avalia estes 10 anos do REDD+ no Acre para os povos indígenas? 
 
Letícia: Faço uma avaliação muito negativa. Eu fiquei quase seis anos como conselheira do SISA. Quando a coordenadora do REM/SISA chegava das COPs, dizia que muitos indígenas seriam beneficiados. Daí eu começava a observar quais são os benefícios que os Povos Indígenas tinham. O que me lembro - quando era coordenadora da SITOAKORE e andava muito nas terras indígenas na época - é que não vi nenhuma comunidade que tem um benefício desse programa REDD+. Além disso, a gente ainda tem terra para ser demarcada aqui e que nunca foi apoiado. É ainda uma luta, a demarcação das terras. 

 Agora, o que eu via na cidade, no governo, é que eles tinham uns setores bonitos, bem equipados, com muitos técnicos vindos de outros lugares, que ganham do SISA. Mas eu não vi um índio trabalhando lá dentro, nem mulheres, nem homens. Porque não dá para dizer que os índios não têm capacidade, tem várias indígenas parentes formadas também que poderiam estar trabalhando, mas a gente via – vê, até hoje - só os técnicos. 

Como conselheira do SISA no passado, eu falei que os recursos que vinham para os povos indígenas teriam que ser um recurso que tivessem um resultado, que ficasse na aldeia, para o bem da comunidade. Entrar no escritório do SISA era muito bonito, mas nós sequer tínhamos uma estrutura de referência para os indígenas, nem para mulheres, nem para homens. Eu falava, e muitas vezes as pessoas me olhavam dizendo: “ela só vem para criticar”. Há outras parentes que vinham para uma reunião do SISA, que ganhavam diária e que não podiam falar nada, não... 

Eu nunca fui bem vista pelo governo. Eles foram obrigados a chamar a gente porque nós somos uma organização de mulheres toda legalizada, que é o que eles pedem. Então não tinha como não nos convidar, porque também éramos uma organização de representatividade de três estados - do Acre inteiro, do Sul da Amazônia que é a Boca do Acre, e do Noroeste de Rondônia. Enquanto o SISA se apresentava dizendo que estava trabalhando com 20, 30 associações, eu digo: mentira! Porque a maioria não existe mais. Hoje você vê outras associações e ONGs que tomavam conta destes recursos - a própria Comissão Pró Indio, a Associação do Movimento de Agentes Agroflorestais Indígenas do Acre... 

DOSSIÊ: O programa REDD+ provocou uma mudança na organização dos povos, criando mais associações para que o governo pudesse distribuir recursos. Você já disse que não viu mudanças, que o dinheiro do REDD tampouco ajudou a demarcação das terras indígenas. Como tudo isso afetou as mulheres indígenas nas comunidades? 

Letícia: Como coordenadora da organização de mulheres, eu disse que nós, mulheres indígenas, não somos abelha, não, nem formiga, para viver de cheiro. Nós vivemos de ação concreta, por mais que seja pouco. Teve uma reunião onde estavam vários países num hotel aqui muito luxuoso. Estavam autoridades de vários países. Mas não me convidaram porque eles não queriam que eu aparecesse para falar a verdade. 

Mas eu cheguei nessa reunião. Esperei todo mundo falar. Tinha muitas pessoas olhando para mim com muita preocupação, porque sabiam que eu ia falar! Aí eu pedi a palavra, porque eu era conselheira titular do REM/SISA. Estávamos quatro mulheres, eu disse: “olha mulheres, eu vou falar. Eu não costumo mentir, não costumo falar coisas que não é certo”. Falaram de vários orçamentos, de milhões e milhões. Aí eu falei: “aonde estão os milhões? Nós, mulheres, aonde estamos incluídas nestes milhões?” Todo mundo olhou assustado. Eu disse: “onde é que nós estamos? Nós estamos esquecidos no meio da floresta com este programa do REM, que é o mesmo programa do REDD”. A moça que é da Alemanha, Christina, ela me ouviu, ela disse: dona Letícia, eu preciso falar com você. Esperei e, quando ela saiu, ela já nem ligou mais. Ela já nem mais olhou para mim. Aí escrevi a carta para sair do conselho. 

Nós mulheres não fomos incluídas. Se tiver, é o pessoal da CPI, se tiver é a nossa parente Francisca Arara, ela é representante do governo, mas não das mulheres indígenas das aldeias. Porque uma associação indígena que tem uma mulher eleita pela aldeia, é uma outra coisa, que fique claro isso. Não estou esculhambando, estou falando a verdade. As mulheres não têm participação. Se tiver mulher que vai para outro país, são aquelas representantes do governo, é outra coisa. Mas as mulheres indígenas do Acre não têm participação. 

DOSSIÊ: E como o REDD tem afetado as mulheres extrativistas dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes ao longo destes 10 anos, período no qual foram implementados vários projetos do REDD+ para beneficiar as famílias e as mulheres? ‘Bolsa verde’, o projeto de ´floresta plantada´, o manejo florestal do corte seletivo de madeira... 

Dercy: Em 2010, quando o governo do Acre assumiu a política do REDD+, decretou o ‘fogo zero’ e veio com a ‘bolsa verde’. Era um pago trimestral em compensação pelo fato que o povo não podia mais abrir uma roça na floresta, o que é um prejuízo cultural irrecuperável, porque as mulheres, tanto as indígenas como as mulheres das populações tradicionais extrativistas, sempre foram quem trabalhavam na roça. Com essa proibição a partir de 2010, deixaram de produzir. E a comida é uma das coisas fundamentais na vida, sem comida ninguém consegue viver e ser feliz. As mulheres plantavam legumes e vendiam. Hoje as pessoas dependem de comprar comida, arroz polido que vem de outro estado, do Mato Grosso... A ‘bolsa verde’ é uma esmola, não sei se já aumentou o valor, mas era 100 reais [menos de 20 dólares] por mês. E neste momento, o ICMBio (5) está distribuindo sacolões de produtos industrializados dentro da Reserva. Então, é uma coisa que afeta a vida das mulheres profundamente porque ela também deixa de passar para os filhos essa cultura, de se produzir aquilo que consome, sem agrotóxicos, de qualidade, na própria comunidade. 

Em relação ao projeto de ‘floresta plantada’, também chamado de ‘sistema agroflorestal’, conversei com uma mulher que fez parte deste programa, e ela reclamou muito. Primeiro em relação ao volume de trabalho que é acrescentado na vida da família. Segundo, porque enquanto recebiam as mudas preparadas para plantar, não tinham nenhum apoio para realizar o trabalho, como uma roçadeira e combustível, isso para manter o sistema agroflorestal de acordo como eles queriam. E a família era cobrada pelo presidente da associação que estava à frente deste projeto, e visitava periodicamente para verificar se a manutenção estava dentro dos padrões do projeto. Ela disse que a vida dela se transformou num inferno. 

Outro problema era que as mudas só eram oferecidas fora da época chuvosa, porque tinha que ter sido nessa época para as plantas se afirmar na época seca. Por isso, a maioria das plantas não se sustentaram, porque as pessoas não tinham condições de irrigar. Concluindo: só deu certo para cinco pessoas, e essas cinco pessoas todas estavam ligadas ao governo. Ou seja, elas não botavam a mão na massa. Elas pagavam alguém para fazer o trabalho. Por isso deu certo para elas. 

Sobre o ‘manejo florestal’, isso na verdade não teve nada de sustentabilidade, pelo contrário, abriu precedentes para que as próprias comunidades destruíssem a floresta. Porque, nestes 20 anos que governou o Acre com este discurso do desenvolvimento sustentável, o governo não implementou nenhuma política que garantisse a sustentabilidade das famílias. O manejo não deixou recursos que mudasse a vida das famílias, pelo contrário, empobreceu-as. E criou um precedente para as famílias continuarem vendendo madeira, independentemente de ter empresa fazendo manejo ou não, elas estão vendendo para os grandes criadores de gado cercar seus pastos. E a gente sabe que isso vai causar só o empobrecimento da população, especialmente as mulheres, que vão terminar nas periferias das cidades, passando necessidades, vendo as filhas que ainda têm se prostituírem, entrarem nas facções do tráfico. 

Isso é um dado muito complicado, porque a gente sabe que, antes, as mulheres conseguiam criar os filhos dentro de um padrão cultural de respeito e de responsabilidade. Hoje a gente vê as meninas de 14, 15 anos, com criança no braço... Há casos de abuso sexual de menores e tem famílias destruídas. Mas fica no anonimato, fica invisível, e fica por isso mesmo. Então a entrada desses agentes externos levou a uma descaracterização profunda do modo de vida, e só deixaram ruína. Nada positivo. 

Tem uma série de outros elementos que contribuíram para uma espécie de naturalização daquilo que está ocorrendo. Por exemplo, o celular mais moderno está dentro da Reserva, nos mais distintos recantos. A televisão também. São elementos que dispersam, impedem as pessoas de refletirem. Outro elemento que também contribui significativamente, são as igrejas evangélicas. Contribuíram com este processo de dispersão das pessoas em relação à realidade e ao futuro. 

Dossiê: Uma das propostas do programa REDD+ é transformar as mulheres indígenas em microempreendedoras, criar mercados até no exterior para os artesanatos. O que você acha destas iniciativas? 

Leticia: Eu andei em várias terras indígenas. Vi que 90% dos artesãos são as mulheres indígenas, que fazem seu artesanato e suas pinturas, para uso e para comercialização. Criam uma auto-sustentabilidade dentro da aldeia. Tem muitas mulheres, viúvas ou, às vezes, deixadas pelo marido, que estão ali, com seus filhos. Essa mulher, ela se ajuda com seus filhos, faz seu artesanato, é com essas mulheres que a gente tinha compromisso de fazer, de ter um espaço para nós receber os artesanatos das mulheres, vender e devolver o dinheiro para as mulheres. Isso foi que nos falamos para eles, era o desejo das mulheres, mas isso não aconteceu. 

O artesanato sempre foi para nosso uso e ele tem um valor simbólico, e não se faz um artesanato de qualquer jeito. Você está transformando aquela miçanga num desenho que tem um significado para relembrar nossas pinturas quando ainda não tínhamos contato. E sempre quando a gente vende o artesanato, a gente faz uma cerimônia. Aquela pessoa que leva é abençoada. Tem um anel preto que os Apurinã fazem, né? Eles fazem um ritual quando a mulher está com cólica, coisa de mulher mesmo, coloca isso aí para ela não ter tanta cólica. Então todo o artesanato para nós tem um significado, um valor cultural e espiritual. 

Dossiê: O REDD+ afirma que é um mecanismo para reduzir o desmatamento, mas depois de 10 anos de REDD no Acre, o desmatamento está aumentando, ainda mais com Bolsonaro no poder. Como isso tem afetado reservas extrativistas e terras indígenas? Quais os desafios para as mulheres lidarem com isso? 

Dercy: As mulheres das comunidades tradicionais faziam muitas atividades, inclusive o cipó. Estive recentemente num ramal e percebi que onde era só floresta e onde eu, no passado, quando era agente de saúde, andava a pé, a floresta desapareceu. Com isso, as mulheres foram prejudicadas, porque elas faziam coisas do cipó e ganhavam dinheiro. As vassouras, os paneiros para colher milho e juntar arroz na roça. As cestas para guardar roupas usadas, outras para juntar ovos de galinha, porque ficam bem ventilados e isso facilita a durabilidade. Hoje não dá mais fazer isso, não tem mais cipó porque tudo virou pasto. 

O desmatamento teve uma celeridade violenta nesse período do Bolsonaro no poder, de 2019, 2020, 2021, em função da desvalorização do extrativismo. Como o extrativismo não sustenta a demanda de consumo que foi colocado com a chegada dos ramais e a energia, as pessoas estão loteando as colocações, e na medida que elas loteiam cada um desmata um tanto de hectares, ou seja, vai se formando uma grande fazenda com muitos donos. Porque um vende 3 hectares, outro vende 5, outro vende 6. Hoje, você sai daqui de Xapuri e você adentra a reserva extrativista de um lado para outro pelo ramal, pela estrada. 

Sobre todo este processo que veio com o REDD+, minha perspectiva é que a gente consiga reverter esse quadro a partir de um processo educativo, trabalhado junto a essas comunidades, numa linguagem acessível que as pessoas possam compreender. Até porque as pessoas não tem como se contrapor porque os promotores do REDD+ usam uma linguagem que ninguém consegue compreender o que eles estão falando. E quando você não tem informação, você não tem argumento para se contrapor. 

Nós mulheres, a gente tem que fazer um investimento no campo político mesmo. De inserir as mulheres nesse debate para que elas compreendam esse processo, porque nós somos a maioria no Brasil. Então, a gente pode fazer a diferença, a partir do momento que a gente compreender tudo que está acontecendo, a gravidade deste processo, e se posicionar politicamente. 

Leticia: A gente vê isso com muita tristeza. Nossa Samaúma, segundo nossa história, nossa espiritualidade, é uma árvore muito grande no meio da floresta, por isso dizem que ela é uma mulher, ela é fruta, ela é sombra, ela é a maior de todas. Agora tá pior porque a gente vê madeiras e madeiras cortadas. Madeira que cresceu por 40 ou 50 anos, cortada em alguns minutos. É muito triste a gente ver isso. 

 A Samaúma, se ela fosse uma mulher que falasse, ela estava chorando. Ela grita quando seus filhos são levados embora. Com isso, vêm as secas, que afeta o povo das nossas terras porque nossas terras estão cercadas por pessoas que a gente nem conhece. Os animais acabam saindo daquele lugar desmatado, os igarapés – os riachos que desaguam num rio - secando, e no final os rios secando. Como mulher, indígena, a gente vê isso com muita tristeza. 

Mas nós vamos continuar na nossa terra, com dinheiro ou sem dinheiro. É nossa obrigação como indígena. Com apoio vai ser melhor. E que não venha orçamento só para beneficiar os escritórios do governo na cidade, e que tenha principalmente apoio para as mulheres, as mulheres precisam. 

 (1) Com populações extrativistas, queremos dizer populações cujo modo de vida se baseia na extração de produtos da floresta, ou de outro bioma, muitas vezes completado por uma agricultura de subsistência. Os seringueiros, população extrativista do estado do Acre, é um exemplo, vivendo da extração de látex das árvores seringueiras. 
(2) É chamado “REDD+ jurisdicional” quando a implementação não é apenas na terra atribuída a projetos específicos, mas em toda uma jurisdição, como um departamento, uma província, um estado ou um país. Leia mais : https://wrm.org.uy/pt/artigos-do-boletim-do-wrm/secao2/de-projetos-de-redd-para-redd-jurisdicional-mais-noticias-ruins-para-o-clima-e-as-comunidades/ 
(3)https://www.wwf.org.br/?33524/Acre--primeiro-estado-a-realizar-transaes-com-REDD 
(4) Denominação dada ao lugar de vida e trabalho dos seringueiros e sua família. Constituída geralmente pela casa de moradia e uma área destinada à pequena agricultura e criação de animais, circundada pelas estradas de seringa. O tamanho médio dessas colocações gira em torno de 300 ha. 
 (5) ICMBio: Instituto Chico Mendes de Biodiversidade, órgão federal governamental, responsável pela gestão das Reservas Extrativistas - RESEX

Nenhum comentário:

Postar um comentário