O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), uma vez mais, manifesta-se publicamente contra a pretensão do governo federal de criar uma estrutura paraestatal para executar as ações e serviços no âmbito da saúde indígena. O argumento usado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) nas reuniões dos conselhos distritais de saúde indígena (Condisi), sobre o novo modelo proposto pelo órgão para a Atenção à Saúde Indígena, e que se resume na criação do Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI), é de que não existem propostas alternativas, e que o Cimi está simplesmente fazendo a crítica pela crítica sem apresentar soluções. Esta afirmação demonstra um profundo desconhecimento e injustiça contra os povos indígenas, ignorando completamente suas lutas e o conteúdo político-transformador contido na formulação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), propostos pelas Conferências Nacionais de Saúde Indígena, desde o ano de 1986.No intuito de fazer justiça à histórica luta dos povos, apresentamos, em caráter propositivo, uma breve memória das conquistas e propostas do movimento indígena na área da saúde.
A construção do modelo de atenção à saúde indígena
A construção do modelo de atenção diferenciada à Saúde Indígena é uma das propostas mais inovadoras nas políticas públicas no país, e considerada por muitos o embrião para a reorientação da política indigenista com base em critérios geográficos e culturais adequados à realidade dos povos indígenas. Este direito vem sendo conquistado através de uma luta incessante protagonizada pelo movimento indígena, desde a aprovação da Lei Arouca que instituiu os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), em 1999, e da Política Nacional de Atenção a Saúde das Populações Indígenas (PNASPI), em 2002.
A criação da SESAI
A SESAI também é fruto da mobilização do movimento indígena, que ao longo dos anos foi construindo o entendimento de que seria necessária a criação de uma instância que gozasse de maior autonomia política e financeira para assumir a gestão da saúde indígena. Desde a sua criação em 2010, a SESAI teve seu orçamento incrementado significativamente, enquanto em proporção inversa se observava a piora acentuada dos indicadores de saúde e da qualidade da assistência em todos os Distritos Sanitários Indígenas do país. A atual gestão da SESAI poderia ter realizado o Concurso Público para provimento dos cargos da área administrativa dos distritos desde o primeiro ano de sua criação, conforme compromisso assumido com o movimento indígena. Preferiu, no entanto, manter o modelo da terceirização, possibilitando a continuidade dos escândalos de corrupção, como no caso do aluguel de veículos e aeronaves e na compra de medicamentos, devido às ingerências políticas e a relação promíscua com fornecedores dos serviços.
Para efetivar a autonomia administrativa e financeira dos DSEIs é preciso apenas dispor dos recursos humanos adequados e de uma gestão eficiente, o que garantirá realizar as licitações e os demais procedimentos administrativos necessários à correta e transparente utilização dos recursos públicos. A alegação da SESAI de que estes procedimentos inviabilizam a saúde indígena não tem nenhum fundamento, pois as licitações são utilizadas por todos os órgãos públicos do país, e existem mecanismos legais para garantir a excepcionalidade da saúde indígena. A verdade é que não existe vontade política de resolver o problema, pois boa parte dos cargos de chefia da SESAI em âmbito nacional e distrital são preenchidos a partir de critérios partidários e fisiológicos.
A defesa do concurso público específico e diferenciado
Após o concurso público destinado a preencher as vagas de servidores no Distrito Sanitário Yanomami, em 1996, realizado pela FUNASA de forma indiferenciada e sem respeito aos parâmetros culturais dos povos indígenas, o Núcleo Interinstitucional de Saúde Indígena de Roraima (NISI-RR) apresentou a proposta de realização de outro Concurso Público Específico e Diferenciado, com requisitos como regionalização, participação indígena e critérios de adequação cultural. Estas propostas foram aprovadas em diversas conferências e estão contempladas nos critérios propostos pelo Ministério Público Federal no Termo de Conciliação Judicial (TCJ) que procura resolver a precarização das formas de contratação dos recursos humanos adotadas hoje pela SESAI.
A necessidade da autonomia administrativa e financeira dos DSEIs
A autonomia administrativa e financeira dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) é um dos princípios fundamentais do modelo proposto nas conferências e na Política Nacional de Saúde Indígena, promovendo a execução de programas e ações adequados às realidades locais e regionais, adaptando as questões logísticas e administrativas às especificidades geográficas, epidemiológicas e culturais de cada distrito. A efetivação desta autonomia precisa ser construída em médio e longo prazo, inclusive com a mudança dos marcos legais que limitam o reconhecimento da especificidade cultural de cada povo. Este processo fica totalmente inviabilizado com a criação do INSI, de abrangência nacional.
A formação dos agentes indígenas de saúde
O Programa de Formação Profissional para Agentes Indígenas de Saúde implementado de 2000 a 2004 em todos os distritos do país foi construído de forma participativa, envolvendo lideranças indígenas e diferentes instituições, coordenado pela professora Ena Galvão, de reconhecida competência no Ministério da Saúde, com base na pedagogia construtivista e comunicação intercultural. Este programa foi concluído de forma pioneira pelo Distrito Sanitário Indígena do Leste de Roraima, depois de sete anos de cursos modulares realizados nas próprias comunidades com uma carga horária total de mais de 1.200 horas, tendo certificado um grupo de 374 alunos provenientes de todas as etnias e pólos-base do DSEI, em uma parceria que envolveu o Conselho Indígena de Roraima (CIR) e a Escola Técnica de Saúde do SUS (ETSUS).
De todos os aspectos da atenção à saúde dos povos indígenas, sem dúvida o mais importante é a Medicina Tradicional Indígena, usada há milênios pelos povos indígenas através de seus pajés, xamãs, curadores e parteiras tradicionais, assim como no conhecimento disseminado em todas as comunidades sobre o uso das plantas medicinais, regimes alimentares e rituais de cura. Este trabalho pode ser significativamente potencializado através da formação e integração da medicina tradicional com os profissionais de saúde indígenas, através de uma política de formação e regularização profissional a ser implementada nos níveis básico, técnico e superior, como prevê a Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena, mas que até hoje tem sido totalmente negligenciado pela SESAI.
O sistemático boicote à consolidação do subsistema
Desde o início da implantação do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SASI-SUS), houve forte resistência por parte dos grupos políticos que tradicionalmente controlam os órgãos públicos, alegando que seria impossível aprovar uma legislação diferenciada em relação aos povos indígenas, por representar uma proporção ínfima da população e sem expressão político-partidária. Esta é a mesma alegação utilizada hoje pelos tecnocratas da SESAI ao argumentar pela inviabilidade de um Concurso Público Específico e Diferenciado para os recursos humanos da Saúde Indígena no país, a partir de bases legais a serem estabelecidas com a participação do Ministério Público Federal e do Congresso Nacional.
O artifício usado pela atual coordenação da SESAI para esconder a sua incapacidade na gestão da saúde indígena é propor uma alternativa que desconsidera todo o acúmulo construído ao longo das últimas décadas pelo movimento indígena, apresentando a privatização do subsistema como solução mágica para todos os problemas vividos pelas comunidades. Para isto, procura difundir entre os conselheiros e lideranças indígenas a idéia de que não existem alternativas possíveis, e de que a autonomia administrativa e financeira dos distritos, a contratação de profissionais indígenas por meio de Processo Seletivo Diferenciado, e o provimento de profissionais para os distritos através de um Concurso Público Específico e Diferenciado são inviáveis, o que já foi desmentido pelo Ministério Público Federal.
A 6ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF) reconheceu em documento recente que a proposta de criação do INSI e a forma como a SESAI tentou impor a sua aprovação junto aos povos indígenas, fere os princípios constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS) e o direito à consulta prévia, livre e informada assegurado pela Convenção 169 da OIT. Anteriormente, muitas organizações indígenas do país já haviam se manifestado de forma contundente contra esta proposta, como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME) e Articulação dos Povos Indígenas do Sul (ARPINSUL), entre outras.
O Cimi alerta para a discrepância que o INSI provocará na política de saúde pública do país, gestada e executada a partir de regras constitucionais e da lei 8080/1990, que consolidaram o Sistema Único de Saúde (SUS). Também o Subsistema de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, quando criado pela Lei Arouca, foi vinculado ao SUS, devendo a política de saúde indígena ser também gestada e executada pela União e não por organizações ou empresas privadas.
No entender do Cimi, o governo federal pretende implantar dentro da atual legislação uma anomalia jurídica para com ela eximir-se de responsabilidades quanto à política de saúde para os povos indígenas, transferindo-a para setores e empresários da saúde como se ela fosse uma espécie de negócio. Além disso, causa preocupação os aspectos orçamentários embutidos nas mudanças pretendidas no âmbito desta política de saúde. Observa-se que os recursos financeiros têm sido ampliados de modo significativo para a saúde indígena nos últimos anos, passando de aproximadamente 350 milhões para mais de 1 bilhão de reais, e com o modelo proposto serão gestados e administrados por empresas que não estarão submetidas aos mecanismos dos órgãos de fiscalização e do controle social, ficando inclusive o Ministério Público Federal desprovido de competência para atuar com a temática da atenção à saúde indígena caso o INSI seja criado.
Nesse contexto, o Cimi manifesta sua estranheza em relação aos ataques que vem sofrendo por parte de alguns integrantes do Fórum de Presidentes dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (FPCondisi) - leia aqui. Em nenhum momento a entidade fez qualquer referência à atuação deste fórum, por outro lado, todas as críticas do Cimi direcionadas ao governo federal, de modo particular à SESAI, estão sendo tomadas pelo FPCondisi como se fossem suas e, ao respondê-las, tem assumido a defesa incondicional da SESAI, do governo e da proposta de criação do INSI.
Mais estranho ainda é o fato dos referidos ataques serem extensivos a organizações indígenas, legítimas representantes do movimento indígena brasileiro, como se pode constatar em nota publicada no dia 12 de setembro. Tem-se a impressão que o FPCondisi está exercendo uma espécie de “controle social invertido”, ao invés de controlar as ações do governo, está tentando impedir as organizações indígenas e as entidades indigenistas de exercerem seu papel de informar os povos indígenas sobre os assuntos de seus interesses e externarem suas posições críticas frente às iniciativas governamentais.
Por fim, o Cimi reitera seu posicionamento em defesa de um modelo de atenção à saúde indígena que respeite as propostas historicamente construídas pelo movimento indígena, propostas estas que são totalmente inconciliáveis com a realidade de terceirização hoje existente, feitas por intermédio de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Osip) e Organizações Sociais (OS), frutos da política implantada pelo governo FHC e continuada pelos governos do presidente Lula e da presidente Dilma. Da mesma forma, são também inconciliáveis com a perspectiva privatista representada na proposta de criação do INSI, pelas razões acima expostas.
Conselho Indigenista Missionário – Cimi
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