Faltando um ano para ser concluída a elaboração do acordo global sobre clima, cujo prazo é dezembro de 2015, a Conferência das Partes (COP) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática (CQNUMC), de Lima, é um momento chave de negociações. O acordo em discussão criará um regime internacional sobre o clima, determinando obrigações para os países-membro (as Partes) da CQNUMC, e entrará em vigor em janeiro de 2020. Neste debate alguns setores são priorizados, entre eles, o tema das florestas ou a redução do desmatamento e degradação florestal, considerado um “setor” onde as emissões de gás carbônico (CO2), que contribuem para a mudança do clima, podem ser reduzidas de forma mais rápida, mais barata e com benefícios para todos os envolvidos.
Isso significa, na prática, decisões sobre o mecanismo de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação (Redd), mais especificamente sobre o seu financiamento, o papel dos mercados e se haverá compensação por Redd. Fortalecer os mecanismos de Redd já é praticamente consenso, mas os países precisam decidir se os créditos gerados pela redução do desmatamento e da degradação serão financiados pelo mercado de carbono ou por outros instrumentos de mercado, e se o investimento de um país em tal iniciativa significará que o mesmo possa usá-lo para diminuir/compensar suas obrigações de redução de emissões.
Pelos mecanismos de compensação e pelo mercado de carbono, um país ou estado não precisaria efetivamente diminuir suas emissões, mas poderia “comprar” essa redução (pelo menos no papel), neste caso por não-desmatamento, de outro país, ou seja, comprar o direito de poluir. Para quem não acompanha os pontos e vírgulas das negociações, isso tudo pode parecer complexo e, às vezes, quase abstrato, mas como não existem florestas sem gente e essas gentes não vivem sem as florestas, esta é uma questão que afetará, e já afeta, a vida das populações tradicionais e indígenas.
Neste debate, vale tomar como emblema o caso brasileiro do Acre, que é considerado referência nas negociações sobre clima. Atualmente, a chamada economia verde no estado é vista nos meios oficiais como uma experiência que harmoniza crescimento econômico e conservação ambiental, e é onde existe o programa jurisdicional de Redd considerado o mais avançado do mundo. O Sistema de Incentivos aos Serviços Ambientais (Sisa), lei estadual acreana aprovada em 2010, é definido como “um conjunto de princípios, diretrizes, instituições e instrumentos capazes de proporcionar uma adequada estrutura para o desenvolvimento de um inovador setor econômico do Século XXI: a valorização econômica da preservação do meio ambiente por meio do incentivo a serviços ecossistêmicos”. Os “serviços e produtos ecossistêmicos” citados são: o sequestro, a conservação, manutenção e o aumento de estoque e a diminuição do fluxo do carbono; a conservação da beleza cênica natural; a conservação da sociobiodiversidade; a conservação das águas e dos serviços hídricos; a regulação do clima; a valorização cultural e do conhecimento tradicional ecossistêmico; e a conservação e o melhoramento do solo. Nesse sentido, estão sendo desenvolvidos cinco programas relacionados: Carbono Florestal (ISA Carbono); Sociobiodiversidade; Recursos Hídricos; Regulação do Clima; e Valorização Cultural e Tradicional. O Programa ISA Carbono foi o primeiro a ser desenhado e implementado e busca alcançar a meta voluntária do governo do Acre de redução de emissões por desmatamento e degradação florestal[1].
Para avançar com o Sisa, o governo do Acre já recebeu financiamento do Fundo Amazônia, gerido pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), do banco alemão de desenvolvimento KfW, da, também alemã, agência de cooperação internacional GIZ, da organização conservacionista WWF-Brasil e da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, em sua sigla em inglês). Para o futuro, o governo do Acre pretende garantir recursos do mercado de carbono e de outros serviços ambientais, voluntários e oficiais.
Ainda nesse terreno, em novembro de 2010, os governos do Acre, da Califórnia (Estados Unidos) e de Chiapas (México) assinaram um memorando de entendimento para discutir as bases de um acordo de comércio de créditos oriundos de Redd. Porém, as organizações da sociedade civil dos Estados Unidos lutam contra modificações no marco jurídico da Califórnia que permitam a lógica do mercado de carbono e da compensação[2]. Para o estado do Acre, serão estratégicas as definições da CQNUMC sobre a oficialização da relação entre Redd e mercado.
Além de ser necessário realizar uma análise mais aprofundada em termos dos efeitos e impactos do Sisa sobre as demais políticas de Estado e sobre a própria sociedade como um todo, falta, avaliam inclusive alguns dos seus apoiadores, um debate mais amplo e qualificado. O governo estadual afirma que a consulta e participação para a elaboração e implementação do Sisa foram, e continuam sendo, amplas, mas algumas organizações locais, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), argumentam que as mesmas não contemplam a diversidade de perspectivas e pensamentos críticos no estado.
Outras preocupações estão relacionadas à incidência da lei sobre os territórios federais, como as terras indígenas, as reservas e as florestas públicas, podendo haver sobreposição de poderes, o que colocaria em xeque a constitucionalidade da mesma; ao receio de que o Sisa elimine a cultura extrativista, caso as comunidades sejam proibidas de realizar atividades tradicionais de subsistência, como a extração de látex das seringueiras e as queimadas para roçados; e à privatização do meio ambiente, definido como bem de uso do povo (público) pelo art. 225 da Constituição Federal, quando instala-se a compra e venda dos chamados serviços ambientais.
“Querem a gente acuado”
Enquanto o Sisa é institucionalizado, projetos privados de Redd já começam a gerar conflitos nos territórios, como o projeto Purus e os projetos Russas e Valparaíso, todos em vias de registro no Sisa. No caso do Purus, localizado no interior do município de Manoel Urbano, as preocupações estão relacionadas à falta de entendimento sobre o projeto por parte da comunidade; à divisão da comunidade e ao acirramento de conflitos; à impossibilidade de realizar uma série de atividades importantes para a subsistência, sob pena de criminalização; ao fato de que o incremento na renda será mínimo, se efetivamente ocorrer, para quem participa voluntariamente do projeto; e à constatação de que as ações sociais propostas são, na verdade, de responsabilidade do Estado e direitos constitucionais da população, que não podem estar associados e muito menos condicionados à execução do projeto. Receosa com as perdas e insegura quanto às oportunidades e melhorias prometidas pelos proponentes, a comunidade tenta agora sair do projeto e garantir a regularização da terra. Como expressou um seringueiro impactado pelo projeto “Eles querem que nós fique aqui dentro, acuados, num canto, sem poder fazer nada pra, daqui uns dias, a gente não ter nenhum roçado para plantar nossa roça”.
No caso dos projetos Russas e Valparaíso, localizados no município de Cruzeiro do Sul, os comunitários estão preocupados com a falta de informação sobre o significado do projeto; as restrições sobre o uso da terra e da floresta; o futuro; as promessas de regularização fundiária em troca da aprovação do projeto; a ameaça de expulsão, no caso do não acordo; a individualização do processo de regularização (mediante contratos individuais de titulação da terra); e a falta de apropriação da comunidade em relação aos termos dos contratos com proprietários de terras e empresas estrangeiras.
Segundo informações do governo do estado, esses projetos não serão registrados no Sisa enquanto o proprietário (e não o próprio Estado) não regularizar a situação. Entretanto, os projetos continuam em andamento. No caso do Purus, por exemplo, em junho de 2013, a Federação Internacional de Futebol (Fifa) declarou seu apoio ao Projeto Purus, como instrumento para “neutralizar” a emissão de carbono durante a Copa do Mundo. De acordo com a Fifa, os projetos (Purus e mais dois) “passaram por um rigoroso processo de licitação e cumprem os padrões definidos pela International Carbon Reduction and Offsetting Alliance (Icroa), tendo sido realizada a seleção final por um painel independente de ONGs ambientais” (FIFA, 2014).
Do ponto de vista socioambiental é preciso considerar, de antemão, as enormes contradições existentes entre a destruição ambiental/desigualdade social e as soluções de mercado, tendo em vista que a degradação ambiental e os problemas sociais dela decorrentes estão vinculados à própria lógica mercantil de acumulação, em detrimento da preservação do meio ambiente e da garantia dos direitos dos povos. Nessa lógica de “economia verde”, a natureza é percebida como um estoque de carbono e de outros “serviços” e os sujeitos de direitos são reduzidos a fornecedores ou compradores de serviço.
Além disso, transfere-se a “culpa” da degradação ambiental para os sujeitos comunitários, cujas práticas são de baixo impacto ambiental. Ao impor, de forma simplista e descolada da realidade e das necessidades comunitárias, a ideia absoluta de “floresta em pé”, desvaloriza-se e coloca-se em risco os diferentes modos de ocupação e uso feitos pelas comunidades tradicionais e pelos povos indígenas. Ao optar por desenvolver políticas dessa natureza, o governo faz uma escolha direcionada e expõe a população aos riscos que advêm desta opção, num contexto de enormes desigualdades entre os sujeitos envolvidos: comunidades, por um lado, e fazendeiros e empresas, por outro.
Ao mesmo tempo, os principais agentes da degradação ambiental, como os fazendeiros e as empresas, recebem incentivos financeiros e compensação, como se estivessem prestando um serviço para a sociedade, que deve pagar pelo mesmo. Desse ponto de vista, os efeitos da economia verde expressam-se no processamento das injustiças e desigualdades históricas que, além de situar as comunidades em lugar desprivilegiado na relação, parte do pressuposto de sua culpabilização e legitima a penalização de sua existência.
De fato, no caso dos projetos de Redd no Acre, o processo ocorre em um contexto de muitas desigualdades, aprofundadas pela falta de informação e formação adequadas das comunidades sobre questões fundamentais que afetam as suas vidas. Isso favorece a atuação das empresas e a imposição dos projetos nas comunidades. Além disso, frente à insegurança da posse, as comunidades locais ficam fragilizadas e passíveis de serem coagidas a aceitar as propostas externas como redenção de suas necessidades em detrimento de sua autonomia.
A situação imposta a essas comunidades é o de duas perversas opções: 1 - perda da floresta e dos seus territórios e ausência de políticas públicas; 2 - projetos de Redd. A regularização territorial e as políticas de direitos aparecem como moeda de troca para as comunidades aceitarem os projetos. Por outro lado, a responsabilidade da regularização da situação de posseiros, direito da população e dever do Estado, é “transferida” para o “proprietário” da terra/do projeto, diretamente e em posição privilegiada, interessado na sua exploração mercadológica. Agravante dessa situação é a ausência de metodologias de trabalho que possibilitem uma apropriação qualificada por parte das comunidades da linguagem e das informações “técnicas” apresentadas pelos proponentes e executores dos projetos.
Consolidação das injustiças
Nessas ponderações, importa considerar que num contexto de desigualdades sociais e ambientais, que marcam não só o estado do Acre, mas o Brasil e outros países do Sul global, o caminho do mercado para enfrentar os fatores das mudanças climáticas mostra-se como uma solução problemática, uma vez que não enfrenta as injustiças e a degradação socioambientais, mas consolida-se por meio delas, ao passo em que pode comprometer direitos conquistados e agravar violações crônicas, como a concentração fundiária e a negação dos direitos políticos, culturais, econômicos e ambientais das populações.
Em seus territórios históricos, os povos da floresta não podem ser excluídos dos processos de decisão sobre seus próprios futuros ou serem considerados obstáculos ao desenvolvimento e progresso. No que se refere ao tema das mudanças climáticas e ao significado das florestas é absolutamente legítimo e necessário que às comunidades e aos povos que com elas convivem, seja garantido o direito de pensar, opinar e decidir. Entretanto, a compreensão plena das comunidades sobre a situação exige uma participação ativa na própria concepção da política, garantindo o direito de rejeitar processos que provoquem perdas, danos e aumento das vulnerabilidades. Também exige que o acesso às informações, aos recursos e às instituições nacionais e internacionais sejam garantidos mediante processos democráticos e não ocorram como fatores de favorecimentos, privilégios e reprodução de desigualdades.
Aos chefes de Estados da COP cabe desprenderem-se de uma lógica que situa as soluções dos problemas socioambientais e do clima sempre integradas ao atual sistema de produção e consumo hegemônico. Pois talvez seja necessário fazer justamente o contrário, ou seja, a sociedade ocidental se “abrir” para aprender com os povos e as populações tradicionais, especialmente sobre como viver de um modo mais respeitoso e harmônico com todas as formas de vida. No mais, a diversidade sociocultural e a garantia dos direitos dos povos é, de antemão, a melhor e mais sustentável forma de conter e enfrentar não só as mudanças climáticas, mas toda a crise civilizatória que coloca em risco a própria existência humana no planeta.
Cristiane Faustino e Fabrina Furtado foram, respectivamente, relatora e assessora da Relatoria de Direito Humano ao Meio Ambiente da Plataforma Dhesca Brasil, entre maio de 2012 e maio de 2014.
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