Israel Souza[2]
Pretendemos analisar a atuação política da Igreja Católica no Acre. Para tanto, cremos ser preciso voltar aos dias de sua fundação, quando esta era ainda Prelazia do Alto Acre e Alto Purus. A tarefa que aqui nos propomos é extremamente importante para entender a história acreana, das primeiras décadas do século XX aos nossos dias, pois se trata de situar politicamente uma das mais influentes instituições locais.
Com esse intento, lançamos mão de uma diversa literatura, dialogando com autores que se postam no campo religioso e com outros que se postam no campo secular, materialistas e ateus até. Pesquisa de campo, entrevistas e matérias veiculadas na imprensa local também aqui servem de fonte.
O texto que segue aponta para três grandes períodos da atuação política da Igreja Católica. Correspondendo aos bispados de Dom Próspero G. Bernardi e Dom Júlio Mattioli[3], o primeiro período vai de 1920, ano de instalação da Prelazia do Alto Acre e Alto Purus[4], a 1962, ano da morte de Dom Júlio Mattioli e da nomeação de Dom Giocondo.
Grosso modo, a esse período corresponde uma postura mais conservadora por parte da Igreja. Há uma “proximidade amiga” entre ela e “os de cima”, conformando aquilo que chamamos de relação triangular (Igreja-Governo-classe dominante) de mútuo favorecimento. A perspectiva teológica que explica e legitima tal relação é chamada por Dom Joaquín de “teologia da conciliação”.
Compreendendo os bispados de Dom Giocondo M. Grotti e Dom Moacyr Grechi, o segundo período vai de 1963, quando Dom Giocondo assume efetivamente a liderança da Igreja, a 1998. Neste período vemos uma Igreja que, sob a inspiração do Concílio Vaticano II e da teologia da libertação, “opta preferencialmente pelos pobres” e, em razão disso, rompe com “os de cima” e chega até a combatê-los.
Essa atuação começa com o bispado de Dom Giocondo (1963-1971) e é solidificada com o de Dom Moacyr (1972-1998), quando, segundo a terminologia de Dom Joaquín, a “teologia da conciliação” é sucedida pela “teologia da separação”.
O terceiro período vai de 1999, ano da posse de Dom Joaquín Pertíñez, aos dias atuais, abrangendo, até agora, inteiramente o bispado deste. Aprofundando um declínio começado ainda no segundo momento do bispado de Dom Moacyr, período que vai do final dos anos de 1980 a 1998, este momento é marcado por uma volta ao conservadorismo clerical.
Nos dias que correm, a Igreja retoma a evangelização tradicional; evita tratar de modo consequente os problemas sociais, quando não os ignora completamente; por um lado, afasta-se “dos de baixo” e suas lutas e, por outro, se reaproxima “dos de cima”; mostra-se profundamente subserviente às autoridades governamentais, pondo-se, por isso, até em desacordo com as forças efetivamente populares.
Poucos setores da Igreja fogem a este perfil, como CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e CPT (Comissão Pastoral da Terra). Por manterem suas lutas em torno do problema das terras e territórios, denunciando que os problemas agrários não foram resolvidos no estado e que, em muitos aspectos, vêm até se agravando, estes incomodam “os de cima” e as autoridades estatais.
Em função disso, vivem numa condição de isolamento, dificuldades, perseguição e ameaças várias. Nem mesmo a Igreja os ajuda na medida do necessário, da pertinência e da justeza da causa por eles defendida.
Por isso, é lícito dizer que atualmente, com Dom Joaquín (mas não só em razão dele), a Igreja atua como se tivesse voltado ao período pré-conciliar, numa perspectiva espiritualista e clerical, conservadora, aliada “aos de cima”. É a isto que chamamos “involução política”.
Não cuide o leitor que os cortes temporais efetuados se devem unicamente aos bispados, como se dependessem unicamente das “virtudes” pessoais dos bispos. O que seria altamente cômodo, porém impreciso.
Certamente a atitude pessoal dos bispos conta, bem como seus carismas. Todavia, em momento oportuno, mostraremos que os cortes temporais se devem também à coincidência de fenômenos diversos, locais, nacionais e internacionais, internos e externos à Igreja.
No que segue, deter-nos-emos mais amplamente nos dois últimos períodos, os que mais diretamente influenciam nossos dias.
Breve esclarecimento teórico-metodológico
Aqui conjugamos Bourdieu e Gramsci. Do primeiro utilizamos a “teoria geral dos campos”, associando-a ao conceito de hegemonia do segundo. Com isso, cremos ter os instrumentos necessários para levar a cabo a reflexão que nos propomos, melhor compreendendo a atuação multiforme e variável da Igreja ao longo de quase um século.
Assim, procuramos também evitar duas perspectivas correntes, tão cômodas quanto equívocas. A primeira confunde capital (poder) econômico com os capitais (poderes) simbólico-ideológico e político estatal, submetendo completamente estes àquele.
Nesta perspectiva, própria de um materialismo economicista, a classe dominante, em razão de seu poder econômico, teria necessariamente também os poderes político estatal e simbólico-ideológico. A classe economicamente dominante então seria também, sempre e em todo lugar, a classe política e ideologicamente dominante.
A segunda até diferencia os referidos poderes, mas ao ponto de separá-los totalmente, atribuindo autonomia absoluta aos poderes político estatal e simbólico-ideológico ante o econômico.
Naquela, absoluto é o submetimento dos outros poderes/capitais ao poder/capital econômico. Nesta, absoluta é a autonomia dos outros poderes/capitais diante do poder/capital econômico.
Ao lançarmos mão dos conceitos de “capital político estatal”[5], “capital econômico” e “capital simbólico-ideológico”, componentes da teoria geral dos campos de Bourdieu, de modo nenhum temos a intenção de fragmentar a realidade social numa miríade de fragmentos, separados e independentes uns dos outros. Jamais esqueceríamos que, para Bourdieu (O poder simbólico), o “real é o relacional” e para Marx (Grundrisse), o “real é a unidade do diverso”.
Em verdade, há uma unidade entre os poderes econômico, político e simbólico-ideológico (neste último se encontra a religião, como subcampo)[6]. Em geral, no capitalismo, o poder/capital fundamental é o econômico. Entretanto, em que pese a sua proeminência perante os outros poderes, ele não se basta. É necessário o Estado (poder/capital político com sua estrutura jurídico-coercitiva) lhe dar sustentação (com a força da lei e a lei da força) e o poder/capital simbólico-ideológico a lhe garantir um mínimo de legitimidade que seja.
Dentre outras coisas, quer isto dizer que a unidade dos poderes/capitais não anula a diferença e arelativa autonomia que eles mantêm entre si. Desse modo, ainda que seja o mais fundamental no capitalismo, o poder econômico de que dispõe a classe dominante não se traduz, necessariamente, em todo tempo e lugar, em domínio sobre o poder político estatal e o poder ideológico.
Os poderes político estatal e simbólico-ideológico, juntamente com as instituições e organizações que os encarnam, não são monopólio da classe dominante, ainda que em geral estejam voltados para a manutenção de seus interesses. Vez por outra, isso pode criar um sem-número de embaraços à classe dominante.
Sob os bispados de Dom Próspero e Dom Júlio Mattioli (1920-1962): vigência da “teologia da conciliação”
Sob a condução de Dom Próspero, e quando a sede era ainda Sena Madureira, Klein (As contribuições da Igreja do Acre e Purus para a ética social) fala da solenidade de instalação da Prelazia do Alto Acre e Alto Purus, ocorrida em 1920. Nela se fizeram presentes “todas as autoridades civis e militares, os sacerdotes e o povo em geral” (PERTÍÑEZ, s/d: 103). Dizia Klein que
Após missa com homilia, benção e publicação das indulgências, houve o ato de obediência das autoridades (estatais), do clero e do povo em geral ao Bispo, finalizada com o beijo do anel episcopal (...). A novidade dos festejos foi a venda da foto do Bispo no valor de 200 cruzeiros, sendo um valor alto na época (MARTINELO apud KLEIN, 2007: 34).
Nesta pequena passagem, saltam aos olhos a proximidade entre a autoridade eclesial e as autoridades seculares, bem como o poder de influência da instituição religiosa entre os populares. A venda da foto do bispo por “alto valor”, algo meio curioso, mostra que ele era tido na conta de homem de grande valia social.
Tal pôde ser observado ainda quando da visita do Bispo Próspero a Rio Branco. Klein (2007: 35) faz notar que, no final de 1920, a visita “foi motivo de vários eventos sociais, missa solene, encontros com autoridades e visitas particulares em famílias”.
Em 1921, a posse de Epaminondas Jacome, primeiro governador territorial do Acre, foi celebrada com missa solene. Retribuindo as “gentilezas clericais”, ainda no mesmo ano, o governador e sua filha apadrinharam “o ritual de inclusão de São Felipe Benizi na Igreja de São Sebastião de Rio Branco”.
O governador foi ainda mais longe. Para homenagear o Bispo e reivindicando uma relação mais estreita entre Estado e Igreja, decretou que uma escola a ser construída em Xapuri seria chamada Escola Dom Próspero (PERTÍÑEZ, s/d: 145).
Outros governadores, por fé e/ou por força do mais frio cálculo político a respeito da importância da Igreja para a manutenção da ordem, cultivaram a amizade. Em 1929, Hugo Carneiro compareceu ao ato de lançamento da primeira pedra da Igreja Prelatística em Sena Madureira. Em 1944, morre Dom Próspero. E já em 1945 a Igreja realizava um Congresso Eucarístico em Rio Branco. Dom Júlio Mattioli convidou o governador e sua esposa para a organização do evento. Klein (2007: 51-52) ressalta que “participaram do evento autoridades de todos os setores do governo”.
Nomeado Administrador Apostólico da Igreja desde 1941, Dom Júlio Mattioli foi sagrado bispo em 1948. Sua sagração teve por
padrinho o governador do Território Federal do Acre, o Major Guiomard dos Santos, que patrocinou os objetos usados nos rituais de sagração, o banquete festivo e mandou construir a fonte luminosa da sagração em frente ao palácio Rio Branco (KLEIN, 2007: 54).
Nas eleições de 1954, era possível perceber que a boa relação entre a Igreja e o Major continuava e lhe era muito favorável. Ainda segundo Klein (2007: 58), aquelas eleições foram polarizadas por Oscar Passos (Partido Trabalhista Brasileiro - PTB) e Guiomard dos Santos (Partido Social Democrático - PSD). Sendo taxado de “apoiador do divórcio”, Oscar Passos não contou com a “simpatia dos padres”.
Em verdade, os anos de 1940 e 1950 “são marcados pelas disputas entre Guiomard dos Santos e Oscar Passos”, a quem Silva (Autoritarismo e personalismo no Poder Executivo Acreano, 1921-1964) chama de “coronéis da política acreana” (SILVA: 2012: 12; 20). A cúpula da Igreja apoiava o primeiro e a ele se aliou a fim de defender “Deus e a família” e combater o “comunismo”. O autor ressalta que, num panfleto de campanha de Guiomard dos Santos, lia-se que
“empunhando em uma mão a arma branca do voto e na outra a cruz de Cristo, haveremos de expurgar de uma vez por todas a horda vermelha”. Claramente se percebe aí a alusão a questões que eram combatidas tanto pelos militares quanto pela cúpula da Igreja Católica (...) (SILVA, 2012: 77).
Efetivamente, havia diferenças substanciais entre estas forças políticas de modo que, além do elemento ideológico-religioso-moral, a Igreja pudesse justificar sua opção em razão de ganhos sociais para a sociedade? Em absoluto. Ontem como hoje,
Governo e oposição (destaques do autor) eram termos sem grandes significados de conteúdos que indicassem e demarcassem campos claros de ação política ou consistência ideológica. O que importava antes de tudo era o “controle das agências governamentais para o exercício do clientelismo” (...). Sem dúvida nenhuma, o que havia era uma teia ampla de acomodações políticas e compromissos que eram essenciais existirem para conformar grupos e sujeitos hierárquicos e diferenciados, que não conseguiam subsistir fora desta ordem de coisas que era vista como “natural” e necessária (SILVA, 2012: 79-80).
Desse modo, pode-se dizer que a disputa entre forças políticas pelo controle do Estado não significava necessariamente uma disputa entre projetos societários opostos. A disputa era para ver quem ficava à frente do Estado e nele acomodaria os seus, mas não necessariamente em que direção a máquina estatal iria caminhar. Quanto a isso não havia disputa: independentemente de quem estivesse no governo, a classe dominante seria sua principal beneficiária.
Aos de baixo, portanto, pouco importava se a Igreja apoiava este ou aquele candidato. Uma atuação libertária por parte da Instituição só seria possível se questionasse o quadro político e a ordem econômico-social no sentido mais amplo, coisa que não estava entre seus planos naquele momento.
Relação triangular de mútuo favorecimento
Segundo Dom Joaquín (História da Diocese de Rio Branco (1878-2000)), “No objetivo de evangelizar o povo, a Igreja pensava necessário se unir ao governo, enquanto o governo não perdia a oportunidade para encontrar na Igreja uma maior cobertura diante do povo”. Além da Igreja e do governo, também a classe dominante tomava parte nesta “boa relação”:
A prelazia parecia assim bem convencida que para “dilatar o Reino de Jesus sobre a terra”, precisasse se aliar com a classe dirigente, ou através dela evangelizar o povo. Tornou-se praxe o missionário hospedar-se na casa do seringalista durante as desobrigas na floresta. (...) o inimigo a combater não era o sistema do barracão, que eles nem chagavam a questionar. O verdadeiro inimigo para eles era a ignorância religiosa (...) era a imoralidade familiar (...) era o protestantismo (...) era a maçonaria enquanto se manifestava com o seu liberalismo e anti-clericalismo (PERTÍÑEZ, s/d: 104).
A relação triangular Igreja-Governo-classe dominante assim desenhada era uma relação de mútuo favorecimento. Nela, a Igreja tinha muito interesse, porquanto, no domínio “dos de cima” sobre “os de baixo”, tinha ela “estratégica ponte” para chegar até estes, mantendo e/ou aumentando o número de seus fiéis e, portanto, seu “capital religioso”.
Eis uma das marcas mais notórias da “evangelização tradicional” que então vigorava: preocupação em manter ou aumentar o controle sobre o “mercado religioso” (fiéis) e uma orientação, mormente, espiritual.
Pela citação acima, vê-se que o “inimigo” (o problema) não era a opressão ou a exploração, e sim o que, de alguma forma, limitava a melhor aderência das consciências ao catolicismo, como o “imoralismo” e os concorrentes (protestantes e maçons). Se o governo e a classe dominante possibilitavam à Igreja combater - quiçá vencer - “seus inimigos”, não haveria problema nenhum em se associar a eles.
Portanto, a manutenção daquela ordem consumia os esforços dos prevalecidos e os unificava numa aliança significativamente sólida. As autoridades governamentais colocavam à disposição da Igreja seu “capital político estatal”, seu prestígio e o que mais fosse possível através da máquina pública, como as parcerias para a Igreja levar adiante suas obras sociais. A classe dominante, na medida do que não lhe configurasse prejuízo, oferecia a ela seu “capital econômico” e tudo o que disso pudesse ser derivado.
A Igreja, por seu turno, colocava à disposição de ambos seu “capital religioso” (simbólico-ideológico), pondo-se ao lado deles com toda a autoridade de uma instituição que se considera - e é considerada por muitos - represente de Deus na terra, de modo que à relação triangular de mútuo favorecimento corresponde uma união de poderes/capitais: o político estatal, o econômico e o religioso (simbólico-ideológico).
Tal interpretação não seculariza em demasia as crenças, as coisas transcendentes, negando-lhes qualquer especificidade ou margem de liberdade ante as forças/fenômenos materiais/seculares? Em outras palavras: essa interpretação não seria fruto de um tosco materialismo? Não. Essa proximidade com “os de cima” é, hoje, amplamente reconhecida pela própria Igreja. Sobre ela é Dom Joaquín mesmo quem diz, com uma franqueza e uma capacidade de autocrítica dignas de nota:
A instituição como um todo mantinha relações de cooperação com o governo local e, de certo modo, era uma aliada da oligarquia dominante. Não há um só documento, desse período, que coloque em questão as estruturas injustas, como as relações de trabalho vigentes nos seringais (PERTÍÑEZ, s/d: 482).
Em suma, a Igreja “como um todo” era aliada do governo e da classe dominante. E não apenas abençoava a ordem ou permanecia indiferente à opressão e à exploração que a sustentavam. A Igreja colaborava ativamente para a manutenção da ordem, dela também tirando proveito. Cada um com seu quinhão, os prevalecidos. Cada um com seu grilhão, os oprimidos.
Durante bom tempo, a classe dominante acreana teve a seu favor os três poderes/capitais (econômico, político estatal e ideológico), que lhes sustentavam como uma espécie de tripé, onde a Igreja representava parte graúda do poder/capital simbólico-ideológico. Isso dava à classe dominante um amparo ideológico monumental.
A partir do bispado de Dom Giocondo, as coisas mudariam...
Sob o bispado de Dom Giocondo (1963-1971): ensaios de uma “teologia da separação”
Num esforço para colocar a Igreja local em consonância com as novas orientações advindas do Concílio Vaticano II, o novo bispo fará da “promoção humana” o principal eixo de seu pastoreio. A esse respeito, dizia que “Cristo Jesus, operando a Redenção, que é também uma reforma, focaliza este centro: a pessoa humana, tão rica em sua dignidade religiosa, moral, jurídica, política e econômica, numa palavra, em sua estrutura natural”. Em outra oportunidade, disse: “Quero agir até o fim, até a morte se for preciso, pelos homens, pois esta é a única maneira de confessar Aquele que não quis ser entres os homens, senão homem”.
Nesse quadro, a preocupação espiritual já não prescindia da preocupação social. A preocupação de convidar os homens para o banquete do pão eucarístico, na Igreja, não se descolava da preocupação de que estes mesmos homens tivessem, em suas próprias mesas, o pão cotidiano.
Nesse sentido, continuam as preocupações com as obras sociais. Em 1966, o governador Jorge Kalume entrega a direção do Leprosário Souza Araújo à Igreja e em 1968 é inaugurado o Hospital Santa Juliana, que Dom Giocondo frisava ser preferencialmente para os pobres. Todavia, os novos tempos impunham à Igreja assumir uma atitude menos caritativa e mais profética. Impunham que, sem descuidar das obras de assistência, agisse mais na causa que nos efeitos da miséria e da marginalização. Era preciso que, profeticamente, denunciasse as raízes estruturais da opressão e da exploração.
Com essa orientação, uma atuação mais nítida e ostensivamente política era inevitável. Nesse contexto, as novas orientações da Igreja a colocavam em rota de colisão com “os de cima”. A relação triangular (Igreja-Governo-classe dominante) de mútuo favorecimento, marcante na maior parte da história acreana, será profundamente abalada. E, como veremos, colocar-se resolutamente ao lado dos oprimidos custaria à Igreja ser tratada como “inimiga da ordem” e dos que nela prevalecem.
Em dada ocasião, ao fim de uma missa, Dom Giocondo insistia que era necessário “agir como fermento”, passar do “passivismo religioso” ao “ativismo cristão”. Isso ele ensinava e assumia para si mesmo. Segundo Costa Sobrinho (Capital e trabalho na Amazônia Ocidental: contribuição à história social e da luta sindical no Acre), em 1965, o bispo articulou a criação da “Associação Profissional dos Pedreiros e Auxiliar de Pedreiros, anos depois transformada em Sindicato dos Trabalhadores da Indústria da Construção Civil de Rio Branco” (COSTA SOBRINHO, 1992: 160). Ele mesmo redigiu o estatuto da Associação.
Nota-se, com isso, que a atuação do bispo longe estava de ser meramente caritativa. Com ele, a Igreja ensaiava os primeiros passos na direção de uma atuação direta, militante, de formação, que assume como sua a causa dos trabalhadores e oprimidos em geral, bem como os riscos que daí decorrem.
Aos sábados, fazendo de sua casa a casa do povo, local em que o povo poderia discutir seus problemas e apontar possíveis soluções, Dom Giocondo abria as portas de seu Palácio[7] para os encontros do Grupo de Elevação Social e Cultural do Acre (GESCA). Nesse recinto,
... se discutia música, poesia etc., e também lia-se a literatura política disponível. Após ciclos de palestras, que o grupo promoveu, começaram de modo sistemático as ameaças por telefone ao Bispo, alguns dos associados foram chamados ao DOPS, outros até dispensados do emprego (COSTA SOBRINHO, 1992: 160).
“Subversão sacerdotal”[8]
Além da opção de trabalhar com “os de baixo” e para “os de baixo” no sentido de sua emancipação, outros elementos contarão para abalar e redefinir a relação da Igreja com seus velhos aliados. Quanto a isso, ganhará relevo o tratamento que, sob o regime militar, as autoridades governamentais dispensarão a membros do clero, tratando-os por “subversivos”.
No ano de 1964, logo após o golpe militar[9], o Pe. Mário Assario escreveu cartazes em que se manifestava contra o governo e os colocou no palácio do governo. Por isso, o padre teve que viajar para a Itália, sem mais voltar para o Acre.
Pe. Júlio Vitte foi outro clérigo a ter problemas com o regime. Acusado de praticar atividades “nocivas à ordem política e social”, foi expulso do país em 1969. Na carta de expulsão, as autoridades alegavam que os “pronunciamentos” do sacerdote “estavam servindo à causa do comunismo internacional” e “estimulando a subversão nesta região”. Sua presença nesta zona fronteiriça contrariava os “interesses da segurança nacional”, alegaram por fim.
Em sua missa de despedida, o clérigo, fazendo juramento com as mãos sobre os Evangelhos, dizia:
eu, Pe. Júlio Vitte, sacerdote católico, nacionalidade francesa, juro que nunca servi à causa do comunismo internacional, nem estimulei à subversão em lugar algum, como pretendem as autoridades estatais do Acre. Juro que apenas pretendi e pretendo servir à Igreja Católica, transmitindo a luz libertadora, pacífica e fraterna de Jesus Cristo (...). Neste momento tão doloroso e tão amargo, a algumas horas de minha expulsão desta bendita e hospitaleira terra acreana, quero apenas fazer minhas as palavras que Jesus Cristo, caluniado, injuriado e insultado, dirigiu a seu Pai: “Pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem” (VITTE apud PERTÍÑEZ, s/d: 511-512).
No mesmo dia, os padres Servos de Maria da Prelazia Acre e Purus apresentaram uma carta em que prestavam solidariedade ao padre e protestavam contra a forma de agir das autoridades estatais:
Protestamos contra essa forma de proceder das autoridades desde que o Padre foi expulso sem fazer-lhe conhecer as razões de sua expulsão e sem dar-lhe a liberdade de defender-se. Esta é uma forma de agir de governos totalitários (...). As acusações de “subversivo” nos parecem infundadas, pois não é raro constatar que certos grupos - como afirmam os bispos da América Latina - “qualificam de ação subversiva qualquer tentativa de mudar um sistema social que favorece a permanência de seus privilégios”. É este o momento de reafirmar a necessidade de nosso empenho na luta em favor da massa desfavorecida e “às vezes tratada e explorada duramente” (Papa Paulo VI), pois “o cristão (...) que não luta pela justiça é um cristão medíocre, é uma deformação da imagem de Deus Criador, da bondade do Pai e da misericórdia do Senhor” (...).Desaprovamos a maneira arbitrária de proceder das autoridades que, ignorando acordos existentes entre autoridades governamentais e eclesiásticas, decretam a expulsão do referido Padre sem dar conhecimento à autoridade eclesiástica competente. (PERTÍÑEZ, s/d: 513-514) (negrito nosso).
Durante os dias em que se deram esses episódios, Dom Giocondo estava viajando. O bispo tomou parte na contenda através de duas cartas, datadas de 05/02/1969. Uma endereçada a Pe. Júlio e outra, ao governador do Estado na época, Jorge Kalume. Como na carta dos padres Servos de Maria acima citada, também nestas se misturam solidariedade ao padre expulso, críticas (abertas e ácidas) ao regime e reafirmação do compromisso com “os de baixo”.
As citações a seguir bem mostram quão profundamente abaladas então se encontravam as relações da Igreja com “os de cima”. A carta endereçada ao Pe. Júlio:
Tu partiste, mas sabes que 80% de analfabetos ficaram por lá te esperando! O teu sacrifício servirá - certamente - para chamar a atenção e abrir os olhos para os reais problemas de nossa terra e no dia em que puserem metade do zelo demonstrado ao guardar a segurança nacional na solução dos problemas sociais do nosso Acre, a coisa será bem outra (...). Aceita, Pe. Júlio, o teu sacrifício, e oferece-o ao povo que querias ajudar para que tenha mais verdade, mais saúde e mais pão em sua vida atribulada (GROTTI apud PERTÍÑEZ, s/d: 512).
Na carta endereçada a Jorge Kalume, o bispo dizia:
lamento profundamente que também seu governo, o qual nunca se cansou de se auto-definir “católico” e “respeitador”, tenha instaurado um regime onde, deixada de lado a justiça, se age contra os indivíduos por simples acusações que, por sua gravidade e pela pessoa visada, mereceriam sério e profundo exame (...). Por enquanto nada posso fazer uma vez que me faltam os elementos necessários a fim de formular um julgamento exato dos fatos, dos homens e das coisas, pois no momento, além do depoimento do caríssimo Pe. Júlio, disponho apenas do ofício acima citado que (...) reputo superficial, infundado, ridículo e desonroso para o Governo de V. E., e para qualquer um que assinasse; digno de sair não de uma Secretaria de Segurança, mas de Insegurança (GROTTI apud PERTÍÑEZ, s/d: 513).
Em 1971, um sacerdote foi proibido de lecionar em escola pública. A pressão não se fazia sentir apenas sobre o clero. Também os leigos estavam sujeitos a ela. Em 1969, foi presa uma participante do movimento juvenil. Isso significa que a “mensagem” que a Igreja levava era incômoda, perigosa para o sistema.
Viesse tal “mensagem” de uma instituição de peso pouco, as coisas passariam de modo relativamente tranquilo. “Aos de cima”, bastava ignorá-la. Tudo passaria como se ela não existisse. Vindo, porém, da Igreja Católica, com toda força que ela tinha, assustava. A lâmpada que ela acendeu em defesa da “promoção humana” iluminava e chamava a atenção de muitos.
Neste caso, não bastava ignorar. Era preciso combater, silenciar. Se o antigo método da troca de favores não cumpria esse papel, então era necessário recorrer à intimidação, à repressão desabrida.
Aplicava-se ao Acre aquilo que o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez (Teologia da libertação: perspectiva) havia observado a respeito da América Latina. Acostumados a se servirem da “Igreja para defenderem os próprios interesses e manter os privilégios”, os grupos dominantes, ao verem “as tendências ‘subversivas’ que penetram no seio da comunidade cristã”, passam a apelar “à função puramente religiosa e espiritual da Igreja” (GUTIÉRREZ, 2000: 118).
Cumpre dizer que o que incomodava “os de cima” não era a atuação política da Igreja. Atuação política ela sempre teve, desde seus primórdios. O que incomodava era a atuação política em favor “dos de baixo”, com “os de baixo”, e contra “os de cima”.
Naquela ocasião, como em todas as outras de idêntica paisagem, reivindicar “apoliticismo” por parte da Igreja era, na verdade, “subterfúgio para deixar as coisas como estavam” (GUTIÉRREZ, 2000: 236). É com razão que Michael Löwy (2000: 194) trata “apolítica” como “um termo que na verdade descreve uma posição que apoia o status quo”.
Em O movimento de Jesus: história social de uma revolução de valores, Gerd Theissen sustenta que, nas religiões, “deparamo-nos com visões estabilizantes e dinâmicas: ou o mundo está em ordem da forma como está, ou ele tem de mudar para se tornar assim como se deve ser” (THEISSEN, 2008: 357).
Levando as conclusões até o ponto em que o autor não ousa, é lícito dizer que ou as religiões são ordeiras (a favor da ordem e dos que nela prevalecem e contra os que nela são subjugados) ou desordeiras (contra a ordem e, ainda que inconscientemente, contra os que nela prevalecem e a favor dos subjugados).
O que Gerd Theissen fala das religiões em geral vale também para o cristianismo. No livro A guerra dos deuses: religião e política na América Latina, Michael Löwy sintetiza seu itinerário: primeiro, o cristianismo foi uma religião de escravos; depois, ideologia estatal do Império Romano; a seguir, religião feita sob medida para a hierarquia feudal e, finalmente, adaptada à sociedade burguesa/capitalista (LÖWY, 2000: 17).
Nenhuma reivindicação de “apoliticismo” (abstenção ou neutralidade política) é capaz de apagar o efetivo papel político que historicamente o cristianismo em geral e o catolicismo em particular cumpriram, contra ou a favor da ordem.
A falar a verdade, não tomar partido é impossível, posto que não tomar partido é já tomar partido. Acaso o ato de lavar as mãos livrou Pilatos da culpa de não ter salvado um inocente? Não teve ele que escolher entre César e o carpinteiro de Nazaré (Jo, 19: 12)? Não ficou ele do lado dos poderosos e assassinos de Jesus?
Mudança na ordem simbólica
Em verdade, a Igreja é sempre “santa e amiga”. Entretanto, tudo depende de que lado da trincheira da luta de classes ela se coloca.
Diferentemente do período imediatamente anterior, em que nenhum documento “colocava em questão as estruturas injustas”, agora, sob o bispado de Dom Giocondo, o sistema é denunciado de modo aberto, como aberto é declarado o compromisso com os que por ele são subjugados.
Só restava pagar o preço pela ousadia. Para usar uma linguagem bíblica, era preciso tomar sua cruz e seguir com coragem “o filho do carpinteiro” (Mt, 13: 55). Pois aquele que não tomar sua cruz e o seguir, dele não é digno (Mt, 10: 38). Ou poderia alguém achar que a Igreja está acima de seu fundador, aquele que “foi provado em tudo como nós, com exceção do pecado” (Hb, 4: 15)? É provável que não. Afinal, Jesus mesmo disse que “o discípulo não está acima do mestre, nem o servo acima do seu senhor” (Mt 10, 24).
Por aqueles anos, os meios de comunicação não tinham a força que hoje têm. Os poucos movimentos sociais e sindicais existentes eram demasiado frágeis. Neste cenário, desponta por seu relevo a Igreja Católica, que figurava, em razão disso, como uma das principais instituições responsáveis pela manutenção da “ordem simbólica”[10], algo de fundamental importância para a manutenção da ordem mais estritamente econômico-política.
Para tal manutenção ela contribuía ao postar-se ao lado dos prevalecidos. Por isso, até ali, Deus fora apresentado pela Instituição como tutor da ordem.
Mas as coisas haviam mudado. A Igreja passara para o lado “dos de baixo”, levando consigo toda sua força ideológica. Como vimos, o poder “dos de cima” se assentava no tripé “poder/capital econômico”, “poder/capital político estatal” e “poder/capital simbólico-ideológico (do qual a Igreja compunha parte considerável). Sem este último, as coisas não seriam as mesmas.
Como Gramsci ensinou em sua obra, não basta “aos de cima” o simples dominar pela força. É preciso liderar, convencer, “ganhar” pelas ideias, pelos valores, pela cultura. Numa palavra, é preciso que os dominantes façam com que os dominados, de alguma forma, olhem o poder que sobre eles pesa como algo natural e/ou legítimo. É preciso que a ele se submetam, encantadamente ou resignadamente. Isto se consegue através do poder ideológico cuja função é, para utilizar uma expressão de Weber, “domesticar os dominados”.
Apresentando um Deus que não compactua com uma ordem injusta e que “opta preferencialmente pelos de baixo”, a Igreja modifica a ordem simbólica, tirando “aos de cima” importante amparo ideológico de seu domínio, descobrindo-os amplamente nesta frente. As implicações político-ideológicas desse fato são extraordinárias. Ainda mais se reforçadas, como de fato foram, pela atuação militante com que a Igreja se colocou ao lado dos oprimidos, ouvindo-os, falando-os, mobilizando-os, articulando-os.
Em termos gramscianos, pode-se dizer que isso minava o poder de direção “dos de cima”. Ainda mantinham fortemente o poder econômico e o controle sobre o Estado. Mas o poder simbólico-ideológico, representado pela Igreja, se lhes fugia entre os dedos e logo se levantaria de modo corajoso e inteligente contra eles.
A Igreja continuava mater (mãe) et magistra (educadora). Agora, contudo, assumia também a função de “intelectual orgânico” da classe subalterna. A fé servia já não para anestesiar e domesticar, mas para mobilizar o ânimo dos oprimidos.
Um legado para os anos vindouros
Os anos que então se avizinhavam apenas radicalizariam a situação. Como lembra Silva (Tempos de violência, espaços de resistência), em 1969 chega ao Acre a primeira comitiva dos “paulistas”, assim conhecidos por virem em geral do Oeste Paulista. Visavam adquirir terras e, com isso, especular no mercado fundiário local e nacional (SILVA, 2006: 153-154).
Por força da falência da empresa extrativista e do suposto “perigo comunista”, as políticas nacionais dos militares eram voltadas para garantir a segurança na região amazônica através de sua ocupação, dando ênfase à expansão da agropecuária. A permanência na terra - e mesmo a vida - das populações locais que viviam basicamente do extrativismo estava fortemente ameaçada.
Para os que vinham de fora, contando com o poder econômico e os favores do Estado, os que aqui estavam eram um problema a ser resolvido, fosse do jeito que fosse. Não tinham direito de existir. Os conflitos agrários não se fariam esperar.
Pressentindo isso, pouco antes de morrer, Dom Giocondo manifestou preocupação. Em 1971, escrevia ao
advogado Océlio Medeiros, pedindo que viesse ao Acre advogar sobre questão de terra, envolvendo posseiros (...) e o fazendeiro José Tavares do Couto, que havia adquirido a terra e movia ação de expulsão contra os ocupantes da terra (COSTA SOBRINHO, 1992: 161).
Ainda naquele ano, o bispo toma uma decisão de fundamental importância para a organização da resistência “dos de baixo” ante a violência “dos de cima”. Ele convoca a Primeira Assembleia Geral de todos os Agentes Pastorais da Prelazia. Propunha-se, dessa forma, uma ação pastoral conjunta. A Igreja procurava caminhar unida, e isso seria de extrema importância para a tarefa que ela iria assumir no que toca aos pequeninos.
De acordo com Dom Joaquín, este foi o ponto de partida de sua renovação conciliar[11]. Dentre outras coisas, daí surgiram a ação pastoral de conjunto, novo modelo de evangelização, formação espiritual e cultural dos agentes de pastoral, inserção dos leigos nos trabalhos pastorais, criação de Comunidades Eclesiais de Base, valorização dos meios de comunicação, autêntica promoção humana etc. (PERTÍÑEZ, s/d: 484-485).
Apesar de tensa a relação da Igreja com as autoridades governamentais e a classe dominante, não houve ruptura entre elas. Donde utilizarmos a expressão “ensaios de uma teologia da separação”, para definir o posicionamento político da Igreja sob o bispado de Dom Giocondo. A ruptura e a adoção da “teologia da separação” apenas ocorrerão sob o bispado de Dom Moacyr, em virtude da radicalização dos conflitos sociais[12].
Neste momento conviria deitar mais algumas palavras sobre aquele contexto conflitivo, as motivações e a violência “dos de cima”, as razões e a resistência “dos de baixo”. Mas então enfadaríamos o leitor com repetições.
O cenário daqueles anos já foi amplamente descrito e analisado[13]. Por isso, neste momento, cuidaremos muito mais da atuação política da Igreja Católica.
Entendemos que esse é um diferencial do presente texto. Os trabalhos que, a partir de uma visão secular, abordam o referido tema tratam da atuação da Igreja de modo secundário. Por sua vez, os trabalhos que, a partir de uma visão religiosa, tratam do tema dispensam importância secundária àqueles conflitos e aos sujeitos neles envolvidos. O presente texto enfoca precisamente o entrelaçamento de uma e outra coisa.
Sob o bispado de Dom Moacyr (1972-1998): a vigência da “teologia da separação”
Vimos que, em 1971, Dom Giocondo manifesta preocupação com os conflitos agrários e convoca a Primeira Assembleia Geral de todos os Agentes Pastorais da Prelazia. Mas outros fatos importantes ocorrem nesse ano e merecem destaque. Entre eles, cabe destacar o fato de o BASA ter suspendido as linhas de crédito e financiamento dos seringalistas endividados, considerando-os incapazes de saldar suas dívidas com o banco oficial (COSTA SOBRINHO, 2011: 32). De igual modo, a indicação de Francisco Wanderley Dantas para governador pesará em desfavor da economia gumífera.
Dantas era entusiasta da política desenvolvimentista dos militares e nada adepto do extrativismo. Usou os mais diversos meios a fim de atrair o empresariado forâneo para o estado: “Venha para o Acre, investir no Acre e exportar pelo Pacífico”, dizia uma de suas propagandas. Em outras, o estado era tratado como “nova Canaã, Nordeste sem seca, Sul sem geada”. Também levantou enormes dificuldades para que o INCRA (órgão federal responsável pela política de terras) viesse a se instalar como devido no estado, pretendendo, com isso, que os de fora se apropriassem mais livremente das terras daqui. Era o Estado decididamente ao lado dos de cima.
Do outro lado, entre 1971 e 1972, as mudanças ocorridas na Igreja ajudaram na organização da resistência. Para Silva (2006: 155), Dom Moacyr “consuma na Igreja Católica uma ação pastoral libertadora”, aprofundando aquilo que havia sido iniciado sob o bispado de Dom Giocondo. Ainda segundo Silva, a Igreja foi a “primeira Instituição a se posicionar a favor dos seringueiros”, perante os conflitos que explodiram por estas paragens com a chegada dos “paulistas”. Era a Igreja decididamente ao lado dos de baixo.
Avançando na busca da autonomia eclesial e na defesa dos pobres
Já no ano de sua posse (1972), o novo bispo mostra preocupação com a relação que a Igreja mantinha com o Estado/governo e a classe dominante. Isso implicava reconsiderar a importância das obras sociais na atuação da Igreja, mas também na sociedade. Dirá ele:
Não deverá a Igreja acreana desfazer-se de seus colégios e demais obras assistencialistas? Se a ausência de convênios ou formas diversas de pressão impedem uma obra de realizar sua finalidade em favor da coletividade e vier a se tornar um verdadeiro contra-testemunho para a pobreza, terá ela ainda motivos para existir? O mesmo Senhor que suscitou no passado estas obras através do suor e do amor dos obreiros de sua messe não está nos querendo mostrar que hoje a Igreja acreana não precisa mais de tais obras? No momento em que nossos bispos da Amazônia, reunidos na cidade de Santarém, chegaram a definir como metas prioritárias de nossa ação a formação de agentes missionários e a criação de Comunidades de Base, não estarão nos mostrando os novos caminhos do futuro? (MOACYR apud PERTÍÑEZ, s/d: 536).
Como Dom Giocondo antes dele, Dom Moacyr abria sua casa ao povo. Seu “Palácio era como se fosse um refúgio, e nos anos dos governos militares esses refúgios eram tão raros”. Ali era como um “espaço catalisador”, onde se “discutia grande parte dos problemas sociais de Rio Branco e do Acre, dentre eles a repressão militar” (KLEIN, 2009: 179).
Para ele, a Igreja deveria assumir função profética, denunciar as injustiças, viver a fé fora de suas paredes, no meio dos pobres e em favor dos pobres. Não por acaso, a Instituição assumiu como lema “A Igreja deve encarnar-se na realidade do povo, como Cristo mesmo encarnou-se na realidade de seu povo”.
A radicalidade desta concepção era tal, que orientava todo o planejamento da Igreja, como no biênio 1979-1980: “A escolha dos pobres atravessa como uma linha vermelha todo nosso Plano Pastoral. E isso é certo e bom. Não há como arredar o pé dessa decisão. Ela é a resposta viva de nossa Igreja ao apelo de Deus escrito nos sinais dos tempos” (MOACYR, citado em PERTÍÑEZ, s/d: 559).
A Prelazia do Acre e Purus procurava encarnar os ensinamentos de João XXIII e se tornar uma “Igreja dos pobres”. A história daqueles dias mostra uma Igreja que verbaliza sua opção pelos pobres e, ao mesmo tempo, no conjunto de suas pastorais e no seu planejamento pastoral, assume de modo consequente o que diz, faz uma opção e assume seus riscos.
Costa Sobrinho (1992: 161) lembra que Pe. Paulino Baldassari havia construído várias escolas nos seringais para os filhos dos trabalhadores. Em algumas de suas visitas a estes seringais, o padre notou que muitas escolas estavam fechadas, por falta de alunos. Depois soube que a ausência dos alunos se devia ao fato de seus pais seringueiros terem sido expulsos de suas colocações.
O Pe. comunicou o fato a Dom Moacyr. Em face do comunicado, o bispo manifestou seu “firme propósito de orientar os trabalhadores quanto aos seus direitos para que esses não fossem enganados pelos novos patrões” e pediu ao “padre que não assumisse posição isolada, pois não teria o efeito desejado” (COSTA SOBRINHO: 1992: 161).
As coisas não andavam bem. Em 1973, 600 famílias, da região de Xapuri e Brasileia, foram expulsas do Brasil para a Bolívia. Diante do fato, o Conselho Pastoral promove uma atividade manifestando solidariedade para com elas (KLEIN, 2007: 73). Por força de coisas como essas, assumindo a causa dos oprimidos, a Igreja abraçou o desafio de esclarecê-los a respeito de seus direitos e de como agir diante da ameaça de expulsão.
Nesse intuito, foi formulado o “Catecismo da Terra”, documento que tratava da questão fundiária na perspectiva dos direitos “dos de baixo”. Interessa destacar que “catecismo” é em geral um texto ou documento em que a Igreja expõe, oficialmente, seus ensinamentos e dogmas. O Catecismo da Terra, porém, tratava de uma questão eminentemente secular e política, a questão fundiária, questão delicada e candente naqueles dias - e também hoje.
Há explícita aí uma das principais marcas da nova evangelização: fé e política andam juntas. Evangelizar é também libertar ou ajudar no processo de libertação. As coisas do alto e as coisas da terra se con-fundem.
Costa Sobrinho (1992: 163) não hesita em afirmar que o “documento significou um punhado de areia nos olhos dos ‘paulistas’” que, agora, eram contestados “por uma instituição de verdade e prestígio no meio dos humildes”. A “profunda desconfiança nas autoridades estaduais estava explícita no documento”, pois “orientava os trabalhadores a procurar instituições federais”.
Com aquele documento, “a Igreja já demonstrava oficialmente a preocupação com a questão agrária regional e que sua ação junto às populações camponesas e indígenas estaria na raiz da resistência e das lutas sociais” (SILVA, 2006: 155).
O passar do tempo apenas vai estreitando a relação da Igreja com os oprimidos. Em 1974, na cidade de Xapuri, é realizado o “I Encontro do Vicariato do Acre”. Neste evento, a Instituição denuncia a violência contra os trabalhadores, reafirma seu compromisso com suas causas e convoca “todos os agentes pastorais (!) para dar enfrentamento às graves ocorrências” (COSTA SOBRINHO, 1992: 164).
Ainda no evento, é formulado o primeiro documento de caráter mais notoriamente político: o “Catecismo da Ação Política do Cristão”, voltado para discutir, sobretudo, as questões sociais/agrárias (SILVA, 2006: 156).
Na custa lembrar que aquelas eram condições difíceis. Sob o regime militar, a repressão campeava. Os partidos de esquerda estavam na clandestinidade e seus simpatizantes eram perseguidos, torturados e até mortos. Os meios de comunicação estavam cerceados ou “rendidos” ao governo.
Costa Sobrinho (Comunicação alternativa e movimentos sociais na Amazônia Ocidental) argumenta que os “movimentos de resistência dos posseiros, índios e seringueiros não contavam com a simpatia dos meios de comunicação”. Para o autor,
Os meios de comunicação locais, até o ano de 1976, pouca atenção deram ao problema, evitando divulgar os conflitos, a ação de pistoleiros e jagunços contra seringueiros, as denúncias da existência de escravidão nas fazendas; e quando noticiavam acabavam distorcendo os fatos. Instalou-se uma verdadeira conspiração do silêncio, mais pela colaboração servil do que pela censura ou repressão (COSTA SOBRINHO, 2011: 17).
Em condições assim, dificilmente outra instituição faria o trabalho que a Igreja fez, com a força e êxito que fez. Para isso, ela teve que lançar mão de sua legitimidade ante os humildes, de sua linguagem acessível aos “pequeninos”, bem como de suas estruturas, presentes tanto na cidade como nos campos e florestas.
O conjunto de tudo isso mostra uma Igreja marcando posição, denunciando a violência e as injustiças dos de cima, apoiando os de baixo. Tudo isso mostra uma Igreja se esforçando para colocar à disposição dos oprimidos seu capital/poder simbólico-ideológico. Trata-se de algo importante, pois, como diria Gramsci (2007: 53), “as crenças populares têm a validade das forças materiais”.
Contudo, faltava algo para uma organização mais efetiva. Para isso, concorre o apoio à formação e ao fortalecimento do sindicalismo que a Instituição proporcionou através do CIMI e da CPT.
O sindicalismo
O ano de 1975 traria inovações importantes para as lutas de resistência. Foi quando, em meio ao acirramento dos conflitos e sob intensa repressão estatal, “surgiram os primeiros sindicatos de trabalhadores rurais (Sena Madureira, Brasileia, Xapuri etc.). Isto marcaria a institucionalização da luta dos camponeses da floresta” (SILVA, 2011: 129). A resistência deixaria de ser individual e esporádica e passaria a ser coletiva, institucional e orgânica.
A Igreja deu contribuição importante para isso. Por um lado, através das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base). Estas, pela via de uma evangelização a partir da realidade, ajudaram a criar um ambiente favorável para a organização dos trabalhadores.
Naquele ano, a delegacia da CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura) veio instalar-se no estado. Atuando “sob as bases produzidas pela pastoral católica através das CEBs”, a CONTAG daria “o respaldo jurídico a todo processo de organização camponesa e ajudaria (na) divulgação dos direitos (dos) seringueiros”. Assim, “sob o poder da fé católica, diante da situação suscitada, assentam as bases para o surgimento de uma prática de resistência” (SILVA, 2001: 159; 128).
De outra banda, a contribuição da Instituição Católica para o sindicalismo se evidencia no fato de que “os primeiros sindicatos se organizaram nos municípios onde os párocos e outros agentes pastorais haviam assumido de imediato a defesa do trabalhador, e gozavam de larga influência e prestígio pela sua ação pastoral” (COSTA SOBRINHO, 1992: 166).
Ajudar na criação dos sindicatos dos trabalhadores rurais era imprescindível. Todavia, era preciso zelar pelos sindicatos criados, assegurar que eles não fossem silenciados pela repressão ou cooptados pelos de cima. O tema da liberdade e da autonomia sindical era, portanto, central.
Quanto a este ponto, a organização da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no estado robusteceria as lutas de resistência. A Comissão foi organizada ainda em 1975 e teve como primeiro presidente de sua história ninguém menos que o próprio Dom Moacyr.
Paula (Movimento sindical e luta pela terra: do romantismo da voz ao pragmatismo do silêncio) ressalta que “Sob contexto de amplo domínio religioso do catolicismo, o apoio da Prelazia do Acre e Purus via Comissão Pastoral da Terra (CPT) (...) foi fundamental nesse processo de organização, particularmente no que tange à defesa intransigente da liberdade e autonomia sindical” (PAULA, 2006: 111). A ideia de autonomia sindical, prossegue o autor,
“plantada” sob contexto de expropriação violenta dos segmentos sociais subalternos no campo, concorre efetivamente para conferir um caráter singular à luta de resistência pela terra, protagonizada pelo MSTR no Acre: a combinação de mobilizações coletivas com atuação institucional, orientada para o cumprimento do Estatuto da terra (PAULA, 2006: 111).
A intransigente defesa da liberdade sindical não deixou de gerar certa divergência com a CONTAG, que durante anos foi importante aliada. No início dos anos de 1980,
Enquanto um grupo majoritário de dirigentes sindicais liderados pelo delegado da CONTAG, João Maia, opta por privilegiar a atuação institucional valendo-se dos espaços abertos no governo estadual, a direção do STR de Xapuri e CPT decidem manter-se numa posição de independência, a fim de preservar a autonomia sindical (PAULA, 2006: 116-117).
A divergência tinha sua razão de ser. Era séria. Na avaliação de Chico Mendes, os termos de negociação usados pela CONTAG acabavam por “legitimar a usurpação das terras ao reconhecer os latifundiários como proprietários” (PAULA, 2006: 117). Por outro lado, a opção de privilegiar a “atuação na esfera institucional” feita por João Maia denotava uma crença um tanto ingênua e perigosa no governo[14].
Tratava-se já de um ensaio mais tarde levado a cabo por parte significativa do movimento sindical e social no Acre e mesmo no Brasil sob os governos petistas. Tratava-se, para usar as palavras de Paula, de abdicar da tentativa de mudar a sociedade de “baixo para cima” em favor de uma estratégia de mudança social (quando isso ainda permanecia no horizonte dos objetivos) de “cima para baixo”. É quando os partidos passam a ser encarados como os instrumentos de luta por excelência e as disputas eleitorais vão, paulatinamente, substituindo as ações de base.
As implicações de tal escolha foram (e estão sendo, pois dizem respeito a um processo ainda em curso e cujo desfecho é difícil sinalizar) catastróficas para a luta dos de baixo.
Intensificação dos conflitos e ruptura com o governo e com a classe dominante
Pela clareza e firmeza de suas posições, Dom Moacyr foi considerado “subversivo”. Sua atuação incomodava e ameaça o domínio dos de cima. Em revide, os representantes do sistema procuraram afetar a Igreja de diversas formas. Klein (2007: 71) comenta que chegaram a “negar o visto no passaporte dos padres estrangeiros que pretendiam trabalhar na Prelazia”. Os sacerdotes continuavam a ser encarados como “subversivos” e perigosos à ordem social.
As coisas foram piorando. Em 1976, o governador Geraldo Mesquita mandou suspender o contrato da Radio Difusora Acreana com a Prelazia, impedindo assim que o programa “Somos Todos Irmãos” fosse ao ar (COSTA SOBRINHO: 2011: 59). Esse programa era de fundamental importância para que a Igreja fizesse chegar, diretamente, sua mensagem de crítica, fé e esperança às mais diversas latitudes do estado, abarcando grande número de seus membros.
Naquele mesmo ano, Doroti Mueller e Pe. Alberto Urban (agentes do CIMI) foram hostilizados em Feijó. Eles subiam o rio Envira. Foram fazer levantamentos sobre a existência de indígenas na região. Então, alguém noticiou na rádio que “dois estranhos estão subindo o rio Envira para contactar os caboclos; quem souber de seu paradeiro, favor trazê-los amarrados para Feijó” (SILVA, 2000: 158-159).
O CIMI é uma espécie de pastoral indígena da Igreja Católica. E fora criado para apoiar e assessorar os povos originários em suas mais diversas lutas. Agora, a Igreja atuava tanto com os trabalhadores rurais (via CPT) quanto com os povos originários (via CIMI). A organização dos de baixo aumentava e se fortalecia. Isso significava mais resistência aos de cima, mais embaraços para eles.
Taxada de subversiva, a Igreja passou a ser vigiada, espionada. Numa Assembleia conjunta de CIMI e CPT, ocorrida em 1976, agentes a serviço do regime chegaram a usar um microfone, colocado furtivamente no local do encontro, a fim de saber o que a Igreja planejava. Com este episódio, abriam-se os precedentes que levariam à ruptura entre Igreja e Estado. A “teologia da conciliação” cederia espaço à “teologia da separação”.
Em razão disso, a Igreja, sob a liderança de Dom Moacyr, redige o documento intitulado “Comunicação às autoridades”:
No final do primeiro dia de trabalho desta assembleia, depois de várias visitas de pessoas estranhas, que se apresentavam com credenciais falsas, pudemos confirmar uma ação de investigação com relação aos debates realizados, chegando ao ponto de instalarem microfones para a gravação na sala de reuniões, do que temos provas em nossas mãos. (...) Cabe-nos apenas deixar claro que tal atitude e procedimento atestam que estamos num estado de controle em que a liberdade não passa de uma palavra sem conteúdo. Finalmente, ao fazer esta declaração às autoridades e à opinião pública, queremos afirmar que este fato vem confirmar a nossa apreensão de que grupos e organismos de repressão estejam apoiando e acobertando a ação de empresários inescrupulosos que promovem um capitalismo selvagem, sem controle, o que os torna corresponsáveis de genocídio lento dos povos indígenas, que vem acontecendo no Acre, Rondônia e Sul do Amazonas, dizimados cultural e fisicamente (grifos nossos).
E já em 1977 a Igreja declarava que não mais participaria “das comemorações que se costumava fazer no dia 31 de março e nem em outras datas cívicas rodeadas de política que defendem o atual sistema”, evitando também “todo e qualquer compromisso com o atual sistema e qualquer forma de instrumentalização da Igreja ou de pessoas para fins políticos”.
Em junho de 1979, 30 famílias, do Km 38 da Estrada de Boca do Acre, são expulsas. A Igreja promove uma celebração em apoio e solidariedade aos expulsos. Durante a celebração, alguns dos que foram expulsos fazem uso da palavra e expõem à assembleia seus sofrimentos e lutas. Em razão disso, a missa foi classificada como uma “missa comunista” (PERTÍÑEZ, s/d: 594).
Notemos a diferença. Antes a prelazia estava convencida de que, para “dilatar o Reino de Jesus sobre a terra”, precisava se aliar com a classe dominante e, através dela, evangelizar o povo. Isto implicava relações de cooperação com o governo e a oligarquia locais, legitimação de uma ordem opressora e exploradora em que a Igreja também levava seu quinhão.
No início dos anos de 1980, um trabalhador descreve o que era a Igreja de décadas passadas. Chamamos a atenção para a proximidade de sua descrição com a de Dom Joaquín citada páginas acima:
Os padres rezando a missa em latim que ninguém entendia nada (...). Se os padres iam a uma desobriga dentro do seringal, os padres iam para a casa do patrão. O seringalista era quem convidava os seringueiros, pra comparecerem em sua casa, quando o padre passava. Os padres não falavam em posse da terra. Só elogiavam os patrões[15].
Agora, a coisa era bem outra. A evangelização da Igreja se fazia contrariamente aos interesses dos de cima cujo domínio é considerado impeditivo para a dilatação do “Reino de Jesus sobre a terra”. Manter-se como aliada desses sujeitos significava para a Igreja abdicar da “evangelização libertadora” e do “apelo de Deus”.
O que Dom Moacyr disse de si vale também para o conjunto da Igreja daqueles dias. Em meu íntimo, dizia, “teria gostado da neutralidade que, naquele tempo, não só me parecia possível mas até, dada minha missão de pastor, necessária”. Contudo, continua, “fatos bem concretos levaram-me a tomar uma posição; ou assumia a causa dos pobres ou negava minha missão e mesmo minha própria fé”.
Foi grande avanço a Igreja abandonar o latim, e assumir nas celebrações a língua falada pelo povo deu a ela mais capilaridade e poder de convencimento. Outro avanço foi postular que a preocupação espiritual não se dissocia da social, bem como ter “optado preferencialmente pelos pobres” e assumido uma “evangelização libertadora”.
O compromisso com a libertação era tão consequente que a Igreja abrira espaço na mais importante de suas celebrações, a missa, para que os oprimidos expusessem seus sofrimentos e lutas. No Catecismo da Terra, a Igreja ligava fé e política. Na missa, unia coisas do alto e coisas da terra, ritos sacros e denúncias das angústias cotidianas, as esperanças na vida futura e a luta da vida presente. Foi o conjunto disso e de outras coisas que fez com que a Igreja e o clero fossem tidos como “subversivos”, “comunistas”.
Apesar de discordes num sem-número de questões, Bourdieu (2007: 32) advoga que Marx e Weber estão de acordo “que a religião cumpre uma função de conservação da ordem social contribuindo, nos termos de sua própria linguagem, para a ‘legitimação’ do poder dos dominantes e para a ‘domesticação dos dominados’”.
Entretanto, mesclando teologia da libertação e instrumentos críticos de análise social (tomados de empréstimos ao marxismo), a Prelazia do Acre e Purus, a exemplo do que vinha ocorrendo com a Igreja Católica em toda a América Latina (com variações nacionais e subnacionais, certamente), se transformou em lâmpada que “iluminou”, em fermento que alimentou e deu corpo, robustez à massa dos oprimidos. Aqui, o poder não era sacralizado, e sim desnudado e confrontado. Os dominados eram encorajados a sacudir o jugo.
No Acre, era séria a ameaça ao domínio dos prevalecidos que, àquela altura, queriam dar mais ferocidade à sua ofensiva. O que fica evidente no início da década de 80. Paula ((Des)Envolvimento insustentável na Amazônia Ocidental: dos missionários do progresso aos mercadores da natureza) destaca que o seringalista Guilherme Lopes disse na Rádio 6 de Agosto de Xapuri que
a solução para os conflitos de terras no Acre era matar os presidentes dos sindicatos, os padres e os delegados sindicais (...). A Federação da Agricultura, num documento “confidencial” de 11 de abril de 1980 (...), exige providências urgentes: “é necessário, melhor diria, urgente que o governo federal, estadual e as entidades representativas ofereçam uma reação à altura, à poderosa frente subversiva queIgreja Católica (Prelazia do Acre e Purus) e a Contag, conseguiram montar no Acre” (PAULA, 2005: 204) (grifos nossos).
A ameaça era para valer. Em julho daquele mesmo ano, era assassinado Wilson Pinheiro, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasileia. Seu velório se deu em uma das sedes da Igreja Católica, que ficou lotada. Na ocasião, foi lido um trecho do Evangelho de Lucas (11, 47-51) que fala dos profetas mortos.
Após o padre, outros falaram, como o presidente da CONTAG e representantes do sindicato de Xapuri. Também foi lida uma mensagem de apoio aos trabalhadores rurais, assinada pelo bispo Dom Moacyr e pela CPT.
Dias depois, foi realizado um Ato Público na cidade de Brasileia. O Vigário da paróquia manifestou seu repúdio pelo “gesto fratricida” e, em seguida, leu “o ato de repúdio do crime e de apoio ao povo do campo, que a CPT do Acre tinha preparado” (PERTÍÑEZ, s/d: 666).
Sentindo a gravidade da situação, a Igreja toma uma decisão criativa e corajosa. Num “gesto profético”, fecha os locais de cultos no domingo e suspende a celebração eucarística. Num olhar retrospectivo, é possível perceber o prestígio de que gozava a Igreja à época e como usava ela tal prestígio em favor dos oprimidos, sem receio de confrontar os dominantes.
Embora longa a citação, vale deixá-la aqui, posto mostrar com muita clareza o ato e suas repercussões:
No domingo 9 de agosto de 1987 foi realizado o dia de luto, oração e jejum na frente das igrejas, que permanecem fechadas ao culto durante todo o dia: o Bispo, padres e numerosos fiéis, como gesto grave e inusitado, sinal de uma situação social gravíssima, fruto do pecado de todos. Repercutia também na imprensa e nos meios de comunicação nacionais e mundiais. Jornais e rádios de numerosos estados brasileiros veicularam a notícia, como algo de novo. Também meios de comunicação de âmbito mundial, como a BBC de Londres, a Voz da América de Washington, aqui perfeitamente ouvidas, noticiaram o acontecimento. A Estação Rádio do Vaticano também noticiou o acontecimento. Só não teve repercussão entre os políticos e governantes de nosso Estado, que ficaram calados e não manifestaram nenhuma reação. No domingo seguinte, dia 16, foi a celebração da vida, com uma grande manifestação em praça pública, na frente do Palácio do Governo. Cerca de 4 mil pessoas, prevalentemente de Comunidades participaram com cartazes, faixas, dizeres, exigindo das autoridades atitudes mais claras contra toda forma de violência, inclusive a violência policial, como acontecera semanas atrás, quando durante uma manifestação popular contra o aumento da passagem de ônibus, houve violenta repressão popular de soldados da PM, com muita pancadaria e feridos, coisa nunca acontecida antes na cidade[16]. Ponto focal da manifestação foi a palavra de Dom Moacyr, que foi muito aplaudido (PARTÍÑEZ, s/d.: 599).
Em que pese a esses esforços, a violência continuou. Em 1988, foi assassinado Ivair Higino, liderança sindical de Xapuri e monitor das Comunidades Eclesiais de Base. Seu corpo foi velado no salão paroquial.
Como é sabido, também naquele ano, dia 22 de dezembro, fora morto Chico Mendes. A exemplo do que ocorrera a Higino, também o corpo de Chico Mendes foi velado no salão paroquial da Igreja Católica. Dom Moacyr, que recebera uma ameaça de morte um dia depois do assassinato de Chico, rezou uma missa de corpo presente. Em seguida, os presentes no velório saíram em procissão até o cemitério.
Também nos anos de 1980, João Eduardo foi assassinado. Morreu em 1981, por querer ver a terra repartida de modo igualitário nos espaços urbanos. Ele era monitor das Comunidades Eclesiais de Base.
Do que foi dito acima, importa frisar que a década de 1980 foi explosiva. A violência vicejou. Importa também destacar a presença da Igreja nesses difíceis momentos, dando apoio àqueles por quem ela optou. Daí o velório e o sepultamento desses mártires, parte significativa deles formada nos quadros da própria Igreja, não serem atos “meramente culturais” ou “puramente religiosos”. Sem dúvida que eram isso. Mas eram também atos políticos, em que, juntos, os de baixo partilhavam as angústias e somavam as forças, denunciavam a violência e a injustiça dos de cima.
Conflitos territoriais urbanos e as CEBs
Os conflitos territoriais daqueles anos não se restringiram aos campos e florestas. Posto que houvesse forte resistência pela permanência na terra, muitos foram expulsos de suas localidades. Estes vieram para a área urbana, formar as periferias da capital acreana.
Também aqui a Igreja cumpriu papel importante na mobilização e organização dos oprimidos, destacando-se as CEBs e seus monitores.
Em 1975, no bairro Triângulo Novo, que à época não passava de um matagal, houve um despejo com destruição de 60 barracos prontos e 4 em construção. Klein (A conquista de Rio Branco: movimentos comunitários e direitos humanos na capital acreana de 1970 a 2000), lembra que Zé Português, um dos donos da terra, procurou uma das lideranças dos ocupantes e disse:
Quem é você? (...) Dizem que você é monitor da Igreja? A pois olhe, padre e monitor pra mim vai ser tratado é no pau, viu (...). Eu não quero vocês aqui dentro, é pra saírem. Aqui as terras são minhas, eu comprei, tenho documentos e não quero ninguém aqui dentro (KLEIN, 2009: 60-61).
A citação acima mostra o quanto a Igreja era considerada subversiva. De fato, a Prelazia do Acre e Purus ajudou os ocupantes desde o início da luta. Dom Moacyr enviou alguns padres para o local,
para ajudarem a comunidade na formação de monitores de grupos de evangelização e a Iolanda e o Arquilau, do Centro de defesa de Direitos Humanos, para acompanharem o caso e ajudar na organização de grupos e da comissão de moradores. Com dificuldade de comunicação, pois não havia uma sede para reuniões, foi sendo construído um pequeno centro comunitário, onde as lideranças e os monitores da Igreja faziam reuniões semanais sobre a ocupação para discutir os problemas do bairro e pensar soluções para eles (KLEIN, 2009: 61).
Diante do conflito, um deputado estadual dizia ter a saída. Não sem uma porção de ironia, perguntava: como o bispo Dom Moacyr era amigo dos invasores, por que ele não os levava para as terras do Hospital Santa Juliana, que pertenciam à Igreja? Assim o caso estaria resolvido e ficava a situação entre amigos, deixando os legítimos donos da terra em paz (KLEIN, 2009: 75-76).
Outro episódio em que aparece a atuação da Igreja nos conflitos urbanos é na formação do Bairro João Eduardo. Os dois líderes mais destacados da ocupação eram João Eduardo e Granjeiro. Ambos eram monitores da Igreja. Granjeiro fala assim da importância da formação que teve na Igreja:
Em não tenho uma capacidade teórica ganha nos bancos da escola (...). Eu não conhecia politicamente nada, aí logo o que eu fiz foi ingressar nas comunidades de base né. Através do Matias a gente conheceu o Dom Moacyr e logo em seguida a gente formou um grupo de evangelização. A importância das Comunidades Eclesiais de Base para mim é que a gente discutia os problemas da comunidade, reunia os vizinhos, companheiros e irmãos, no grupo de evangelização, tendo como centro a palavra de Deus. Então isso fortalecia a gente espiritualmente e ajudava na organização da comunidade (KLEIN, 2009: 89).
O Matias de que Granjeiro fala era outra liderança da Igreja. Ele foi o responsável por chamar João Eduardo e Granjeiro para a Instituição. Sobre a importância de sua atuação nos quadros da Instituição, Matias diz: “A evolução do meu pensamento que eu tenho hoje, eu agradeço a Deus. A evolução do meu pensamento que eu tenho até hoje eu agradeço muito ao Evangelho, à leitura do Evangelho, para enfrentar esta luta” (KLEIN, 2009: 91).
Vê-se que a fé e a reflexão sobre a palavra de Deus não são coisas secundárias nas reuniões. Estas não eram reuniões puramente políticas. Mas nem por isso se descartavam as questões sociais. Em verdade, as questões sociais eram pensadas à luz dos ensinamentos bíblicos. Tal mostra que as CEBs eram, a um só tempo, escolas de fé e de luta política.
Os conflitos territoriais urbanos irrompem até os anos de 1990. Aqui relatamos dois episódios que mostram, além da atuação da Igreja Católica, a singular e salutar relação entre fé e política.
13 de junho de 1991. Sabendo que a polícia deve entrar no Belo Jardim para destruir casas, os posseiros se mobilizaram. O Pe. Roberto vai com eles como gesto de solidariedade. A polícia chega (...). O capataz do senhor Betão que quer expulsar os posseiros (...) explica que todo mundo deve sair por Deus. O pessoal não fará nada. A polícia se retira (...). Antes de voltar para a cidade, à tardizinha, todo mundo escuta o juízo final e reza o Pai Nosso. Não haverá nenhum problema para sair da área.
8 de abril de 1992. No Bairro da Boa União, pertencente à Paróquia Cristo Libertador, a medida de despejo das famílias foi tomada. A polícia feminina e masculina (100 pessoas) estava presente. Vários padres foram até lá a fim de se solidarizar com o povo e com o Pe. Manoel, vigário. Durante todo o dia, o povo e a polícia ficaram frente a frente, porém sem violência, sem provocações. O povo cantava e rezava. O Bispo veio. No fim da tarde, a polícia se retirou.
Início da involução
Como vimos, ao longo de toda a década de 1970 a Igreja vai amadurecendo suas visão e atuação políticas. Sentindo aproximar-se a abertura política, a Instituição decide aprofundar a reflexão de caráter político partidário, a fim de preparar seus membros para as disputas eleitorais.
Foi assim que, em 1979, foi promovido o curso de Fé e Política. Na ocasião foram formulados alguns “mandamentos” que passaram a fazer parte do Plano Pastoral. Entre outras coisas, os “mandamentos” afirmavam: a participação partidária é livre, boa e necessária para o cristão; partidos, políticos, medidas de governo e conjunturas devem ser analisados criticamente; a comunidade deve optar por partido de base popular que combata a ditadura, busque a mudança social e a independência econômica do Brasil, que tenha orientação socialista; as lideranças devem se engajar num partido popular, sem abandonar suas bases.
Diante de tal quadro, a Frente Popular do Acre aparecia como a opção ideal e, dentro dela, o PT. Muitas lideranças das CEBs passam então a se empenhar muito fortemente para criar e fortalecer o referido partido. Numa entrevista extraída de Fernandes, Paula destaca o entrelaçamento entre Igreja, movimento sindical e partido:
Nesse tempo as mesmas pessoas faziam, praticamente, três movimentos políticos distintos: o político/religioso dentro do grupo de evangelização; o político partidário, que era a discussão petista; e o político sindical, que era a atividade do sindicalismo naquele momento ali (FERNANDRES apud PAULA, 2005: 238-9).
O PT, então, se apresenta como o Virgílio que, a exemplo do que fizera o autor de Eneida em A Divina Comédia a Dante, conduziria a sociedade acreana do Inferno ao Paraíso. No tocante a isso, é cristalino o discurso de Raimundo Soares de Araújo, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Tarauacá, proferido no dia 12 de março de 1980 (dia do lançamento do PT no Acre). Dizia ele:
É por isso que nós vamos fundar nosso partido, para que nós possamos botar nossos elementos lá em cima também. (...) É preciso então lutar com a força da união para que nós possamos também mandar em alguma coisa, possamos também dirigir nosso país. Acredito que, como o sindicato rural tem sido dirigido pelos trabalhadores rurais pegado nas matas, eu acredito que um dia também ele possa enfrentar essa luta do partido e ser um vereador, um deputado, um prefeito (...) (FERNANDES FILHO, 1998: 26).
Essa aliança da Igreja e do sindicalismo rural com o PT representava uma forma de os trabalhadores rurais fazerem contraponto às forças políticas hegemônicas da época. Como bem apontara Fernandes Filho (1998: 25-26), para o MSTR, que participou em peso do lançamento do PT no Acre, era chegada uma nova fase de luta, “e essa nova fase era sem dúvida apoiar a fundação do Partido dos Trabalhadores”.
Nos anos de 1970, o MSTR encampara uma intensa luta pela posse da terra. Nos anos de 1980, através de uma proposta regionalizada de reforma agrária, ele formula o que viria a ser a Reserva Extrativista (RESEX), que representa uma tentativa de superar os limites impostos pelo Estado para resolução dos conflitos fundiários no estado (PAULA, 2005: 316). Até então, o sindicalismo rural havia se pautado de acordo com suas agendas e prioridades. O vínculo genético com o PT, porém, traria redirecionamento a essa prática (SOUZA: 2005).
E já nos anos de 1990, “o sindicalismo agia de acordo com a prioridade nº. 1 do PT no Acre: eleger o governador do Estado em 1998”[17]. O resultado disso foi “uma inversão no direcionamento do MSTR e de outros movimentos sociais (e da Igreja Católica, acrescentamos), que até então tentavam democratizar a sociedade regional ‘de baixo para cima’” (PAULA, 2005: 312), através das ações de base. A partir daí, o que importa mesmo é “comandar” o Estado e realizar as mudanças “de cima para baixo”. “A rigor”, continua o autor, “essa estratégia resultou num tipo de transformismo de maior alcance na história recente do Acre”.
Com efeito, a abertura política favorecia a opção e a atuação partidárias. Afinal, na democracia representativa, o partido figura, em geral, como o instrumento de luta por excelência, sobrepondo-se no mais das vezes a movimentos sociais e sindicatos. Grosso modo, é o que mostra a atuação da socialdemocracia europeia e a atual conjuntura política latino-americana, com sua força, limites e contradições.
Essa “tirania dos partidos” ou “partidocracia” e a distância que em geral eles mantêm em relação às massas e seus anseios são a razão de movimentos recentes como Occupy Wall Street nos EUA, os Indignados na Espanha e o levante popular no Brasil (que tomou as ruas no mês de junho de 2013) manifestarem verdadeira descrença nos partidos políticos, com um apartidarismo que, muitas vezes, desemboca sem dificuldades no antipartidarismo.
Outros fatores também contribuíram para a aproximação da Igreja com o PT. A relação orgânica entre ambos é um deles. Muitas lideranças das CEBs eram também lideranças do partido. Além disso, no final dos anos de 1980, as CEBs entram em crise.
A própria Diocese reconhece que elas “envelheceram”, que eram “inadequadas às novas condições eclesiais e sociais”. Já não serviam à luta como um dia serviram. A Instituição Católica entendia que era necessário encontrar outros instrumentos de luta mais adequados às novas conjunturas:
O ano de 1988 inicia-se apresentando um quadro pouco animador em relação à realidade eclesial e à realidade social.
“Torna-se sempre mais evidente a crise das CEBs não apenas em nossa Diocese, quanto em toda igreja brasileira. As CEBs parecem não conseguirem (sic) encontrar-se no Evangelho e na vida: a tendência é voltar-se para dentro, mais para o espiritual e menos para ser fermento de transformação”.
(...)
Os meios anteriores já não eram tão válidos e precisava-se de renovação para responder a esses novos apelos: “Quanto à nossa igreja local, à nossa Diocese, a caminhada continua, mas se tem a impressão de um certo desânimo, rotina, envelhecimento das CEBs. Perdemos espaços nos movimentos populares para lideranças partidárias (...)” (PERTÍÑEZ, s/d: 644-645).
Por isso, quase paradoxalmente, o PT se alimentou tanto da força quanto da fraqueza das CEBs. Num momento primeiro, quando aproveitou as sólidas bases da Igreja para sua implantação e crescimento. Num momento segundo, quando estas bases já não eram tão vigorosas por força da crise que sobre elas se abateu, ele se apropriou de seu legado, manuseando-o sem mais peias eclesiais, de acordo com os mais estritos objetivos partidários. Assim, quando as CEBs recuavam em sua atuação social, estes espaços foram sendo ocupados pelo PT, considerado o instrumento mais adequado à luta daqueles anos.
A ofensiva do Vaticano contra a teologia da libertação, contra seus militantes e formuladores, também pesou no sentido de enfraquecer e reorientar a atuação da Igreja local. Essa ofensiva começou com João Paulo II e continuou com Bento XVI. Para efeito de intimidação, a autoridade vaticana levou Leonardo Boff e Gustavo Gutiérrez, dois dos principais formuladores da teologia da libertação, a sentarem na mesma cadeira em que sentou Galileu nos antigos tempos da Inquisição. Boff (2005: 18) sublinha que, até 2005, cerca de 140 teólogos de várias partes do mundo, da Europa, dos EUA, da Ásia e do Brasil, foram vítimas da Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Inquisição ou ex-Santo Ofício).
Por outro lado, o Vaticano passou a substituir bispos progressistas por bispos conservadores, a fim de barrar ou enfraquecer as lutas por libertação nas mais diversas localidades. Em nosso ver, a transferência de Dom Moacyr para Rondônia foi forçada pelas ameaças de morte que aqui ele sofria. Mas não deixa de se vincular a essa estratégia da autoridade central da Igreja Católica.
Para uma leitura crítica do processo e da disputa entre Vaticano e teólogos da libertação, ver o clássico de Boff: Igreja: carisma e poder. Para uma leitura conservadora, a favor do Vaticano, ver o livro organizado por Felipe Aquino: Teologia da libertação.
Para nós, de tudo o que aí se discute, fica claro que a autoridade vaticanista, subvertendo formulações do Concílio Vaticano II, procura, por um lado, externamente, defender o monopólio da salvação - ou, pelo menos, privilégios quanto a isso - diante das outras denominações cristãs. Por outro lado, internamente, procura assegurar a inviolabilidade e a inquestionabilidade da hierarquia clerical em geral e da autoridade papal em particular; e, ainda, afirmar a autoridade suprema do magistério no ensinamento da “doutrina correta”. A teologia da libertação criava embaraços para uma e outras coisas.
O conjunto de tudo isso faz da atuação política da Igreja Católica sob o bispado de Dom Moacyr algo singular. Num primeiro momento, ao aprofundar formulações feitas ainda no tempo de Dom Giocondo e criar outras, o bispado de Dom Moacyr representa o cume da atuação política libertária da Instituição[18]. Num segundo momento, em razão de sua relação orgânica com o PT, da opção partidária em favor da FPA encabeçada por aquele partido, da crise das CEBs e da ofensiva do Vaticano contra a teologia da libertação, este bispado representa o início da involução política da Igreja.
Assim como o bispado de Dom Moacyr tem dois momentos (o cume da atuação libertária da Igreja, aprofundando o que já fora começado por Dom Giocondo, e o início da involução política), também a involução política tem dois momentos.
O primeiro momento dessa involução começa no final dos anos de 1980, e o que fora discutido no parágrafo imediatamente anterior é o que o caracteriza. O segundo momento tem lugar no final dos anos de 1990. A coincidência de dois eventos marca esse novo tempo: 1) a troca de bispos. Sai Dom Moacyr, assume Dom Joaquín, o que ocorre entre 1998 e 1999. 2) A eleição de Jorge Viana a governador do estado em 1998.
A partir desse momento, institucionalmente, a Igreja recua paulatinamente em sua luta política libertária e se posta de modo subserviente aos governos da FPA, permitindo-se instrumentalizar por essa força política.
Por isso, dizemos que a involução política da Igreja começa sob o bispado de Dom Moacyr e se aprofunda sob o bispado de Dom Joaquín. Neste momento segundo, o capital religioso (simbólico-ideológico) da Igreja, que anos antes havia sido negado “aos de cima” e posto a serviço “dos de baixo”, volta novamente às mãos das oligarquias locais e serve-lhes de legitimação de seu domínio, bem como serve para “domesticar” o espírito dos oprimidos.
As bases que a Igreja ajudara a construir e fortalecer seriam postas a serviço da FPA-PT, que tinha à sua testa dois sujeitos oriundos das antigas oligarquias: os irmãos Jorge Viana e Tião Viana.
O bispado de Dom Joaquín Pertíñez (de 1999 a 2013): maturidade ou involução política?
Em 1998, Dom Moacyr foi nomeado Arcebispo de Porto Velho, Rondônia. Em 1999, Frei Joaquín é sagrado bispo por suas mãos. Assim que foi nomeado, o atual bispo escreve uma carta ao povo da Diocese de Rio Branco. Ali são deitadas palavras que dão a entender que seu pastoreio seria continuidade do de Dom Moacyr: “Desde já, eu sou mais um que caminha convosco, ao seu lado, fazendo Igreja, nessa caminhada de fé, junto aos mais pobres, necessitados e sofridos, rumo a uma sociedade mais cristã, justa, solidária e fraterna”.
Em suas palavras, as primeiras como Bispo da Diocese de Rio Branco, a linha de continuidade é verbalizada com mais clareza:
É nesta linha de continuidade, de serviço à Igreja de Cristo, presente aqui, nesta terra de mártires, onde tantos derramaram já seu sangue, na luta por um mundo mais justo e fraterno, e onde o Evangelho sempre foi proclamado com coragem, é aqui que eu quero viver minha missão (...), tendo sempre como prioridade os mais necessitados e carentes de nossa sociedade (...) eu gostaria que os problemas do povo fossem sempre os problemas da Igreja; que os gritos dos inocentes e massacrados clamando justiça, que se levantam constantemente no meio do povo, não fossem mais calados com a morte nem com a violência; (...) que a natureza fosse sempre respeitada; que a terra fosse de todos e para todos, onde os filhos de Deus pudessem viver como irmãos; que os direitos humanos fossem respeitados (...) (PERTÍÑEZ, s/d: 818) (grifos nossos).
A ideia de continuidade é destaca também por Klein. Para ele, o bispado de Dom Joaquín tem a “missão de continuar na direção da Igreja que até então se caracterizava como ‘terra de missão’” (KLEIN, 2007: 84). Mais adiante, o mesmo autor sublinha que a atual fase da Igreja “se caracteriza na ênfase da missão evangelizadora de sinal de esperança do reino de Deus, vivenciando o serviço, o diálogo, o anúncio e o testemunho na sociedade” (KLEIN, 2007: 87).
Interessa observar que, embora fale de continuidade, Klein põe ênfase na “missão evangelizadora”, algo característico da evangelização pré-Concílio Vaticano II. Isso, porém, não o impede de afirmar que no presente a Igreja assume sua maturidade. O que o faz mais espiritualista e conservador que o atual bispo, posto que este, pelo menos nos discursos, trata da continuidade no tocante à questão social.
Por isso, mesmo em termos da evangelização praticada, é possível afirmar que a Igreja local segue uma linha de involução. Numa palavra: é uma Igreja pré-conciliar. O bispado de Dom Joaquín é sim continuidade do de Dom Moacyr. Mas não de seu momento libertário, e sim de seu momento de involução.
Depois dessas observações de caráter mais interno à Igreja e de definição do corte temporal, cumpre tratar de sua relação com as forças hoje dominantes no estado. Somos conscientes de que, neste ponto, precisaríamos detalhar melhor os processos e estruturas de opressão e exploração, de conflitos. Todavia, assim, haveríamos de nos perder em repetições, já que isso foi feito na Parte II deste livro.
Desse modo, apenas no que for estritamente indispensável para a compreensão desta discussão que ora traçamos, fazemos referência àquelas estruturas e processos, abordando outros episódios ainda não tratados alhures. Em razão disso, recomendamos ler este texto juntamente com os outros que compõem este livro.
A relação da Igreja com os dominantes é hoje tão forte que chega a impregnar a leitura do passado e a obnubilar a leitura do presente. Sem nenhum acento crítico, é assim que Dom Joaquín e Pe. Mássimo comentam certa eleição: “A campanha eleitoral no Acre se polarizou novamente entre dois candidatos a governador: Edmundo Pinto, que representava as classes conservadoras e Jorge Viana, da Frente Popular. A Igreja, sem apoiar abertamente nenhum candidato, manifestava sua simpatia para o candidato a favor do povo” (PERTÍÑEZ, s/d: 641).
A leitura desta passagem dá a entender que, com a eleição de Jorge Viana, haveria uma reorientação da política de Estado. Nesta perspectiva, o povo e não mais as oligarquias seria o alvo das políticas.
Contudo, como bem mostrara Paula (2012), o que temos com a eleição do candidato da Frente Popular é: 1) uma re-articulação do bloco de poder estadual sob a direção de frações das velhas e novas oligarquias: “novas caras” ajudam a conduzir o mesmo “velho projeto”; 2) a assimilação subordinada dos movimentos sociais a esse bloco de poder através do que Antônio Gramsci denominou “transformismo”: os movimentos sociais e as forças populares tomam parte na condução do Estado, mas de forma subordinada; 3) e adesão subordinada à matriz neoliberal e aos agentes nacionais e internacionais que a fomentam na forma de financiamentos e investimentos: o grosso das políticas estatais é decidido de “fora para dentro” e, com isso, vai-se minando a soberania local[19].
O atrelamento da Igreja ao governo da FPA pode ser constatado nas páginas do livro de Dom Joaquín e Pe. Mássimo, voltado para contar a história da Diocese de Rio Branco. Aí encontramos entrevistas com membros do PT: Jorge Viana, Raimundo Angelim, Marcos Afonso etc. Do nada, estas figuras surgem naquelas páginas. Além de demonstrar a relação da Igreja com o partido, isso serve para dar visibilidade a seus membros. Ou seja: ao mesmo tempo em que o livro é história, é uma história que serve de propaganda para as atuais forças dominantes no estado.
Vale salientar que uma das características positivas da obra acima citada é ser capaz de manifestar crítica em relação a outros períodos e a outras forças políticas. Mas, à medida que se aproxima do presente, a crítica cede espaço para a apologia do atual governo.
Silêncio diante da repressão
O caráter “popular” desse governo ficou restrito à formalidade, ao discurso. Efetivamente, trata-se de um governo repressivo, despótico, cerceador. Ao desconhecer isso, a Igreja mostra que ignorou seu próprio “mandamento político”, segundo o qual “partidos, políticos, medidas de governo e conjunturas devem ser analisados criticamente”.
Em razão das manifestações que tomaram conta de várias capitais brasileiras (junho de 2013), Jorge Viana foi à tribuna do Senado e dali falou, altissonante: “Nossa população não pode ser tratada como bandida”. Para ele, as manifestações dos jovens são legítimas e não podiam ser reprimidas pela polícia.
Contudo, quem não lembra do 7 de setembro de 2005 em que, sob seu governo, a polícia reprimiu e prendeu vários manifestantes? Onde estava ele quando seu irmão deu ordens para que o COE jogasse bombas de efeito moral nos manifestantes do Bairro 6 de Agosto e atirasse balas de borracha neles?
Nesta ocasião última, não eram apenas os jovens que se manifestavam, mas famílias inteiras: crianças, menores, idosos etc. Dezenas de pessoas foram feridas. O senador, que em Brasília encena o papel de paladino da liberdade, não pronunciou nenhuma palavra crítica sobre o acontecido. Muito ao contrário, tentou desqualificar ambas as manifestações e tentou creditar esta última à oposição.
Coisas como essas deixam claro que a democracia que Jorge Viana defende para o Brasil não é a mesma que ele quer para o Acre. Aqui, ele prefere fazer valer a lei do porrete, desrespeitando manifestações das ruas e das urnas, como o comprova o caso do referendo em que a população decidiu pela volta da hora do Acre como era. Em Brasília, ele, Aníbal Diniz (PT) e Sibá Machado (PT) se desdobram, fazendo de tudo para sepultar o resultado do pleito que lhes foi desfavorável.
Sobre essas coisas, a Igreja guarda o mais absoluto silêncio, quebrando-o apenas quando as atribui a manobras da oposição.
Tratando das críticas que vêm de dentro
Ainda que aberrantes os episódios de repressão à manifestação popular narrados acima, a Igreja não fez nenhum pronunciamento. Agiu como se nada tivesse acontecido. Pior que isso: mesmo a crítica que surge do seio da Instituição, a cúpula diocesana procura abafar. É o que mostra um fato ocorrido na IX Assembleia Diocesana, em agosto de 2008.
Naquela assembleia, era forte e contundente a reclamação dos moradores das florestas e do campo em relação ao manejo. Pe. Paulino Baldassari, com sua autoridade e conhecimento, endossava a reclamação. Por força das reclamações, Dom Joaquín propôs a elaboração de um manifesto que desse visibilidade aos problemas ali externados e servisse para que a Igreja demonstrasse sua posição crítica em relação ao assunto.
Um esboço do manifesto foi feito e lido ainda durante a assembleia, a fim de colher sugestões de acréscimos, supressões ou alterações. O texto é o que segue na íntegra. Nós o chamamos “manifesto da assembleia diocesana”.
MANIFESTO EM FAVOR DA AMAZÔNIA E SEUS HABITANTES - VERSÃO ORIGINAL, APROVADA EM ASSEMBLEIA
A Diocese de Rio Branco-AC, reunida em assembleia nos dias 01, 02 e 03/08/2008, vem a público manifestar sua profunda preocupação com o modelo de desenvolvimento em curso no estado do Acre.Assentando na promessa de trazer crescimento econômico, com respeito às populações locais e ao meio ambiente, sua implementação não só não tem concretizado suas promessas como tem resultado em algo bastante diferente.
São de inestimável valor alguns avanços: fortalecimento de instituições estatais, revitalização de prédios públicos, modernização de infraestruturas, construção de espaços de cultura e lazer etc. Mas, por outro lado, é possível constatar em diversas localidades do Estado:
1. Aumento de áreas desmatadas, prejudicando seres humanos, fauna e flora;
2. Piora nas condições de vida de populações locais. Por conta do “manejo”, que privilegia os grandes proprietários e madeireiros e pune os pequenos, muitos destes têm sido impedidos de plantar roçado e submetidos a multas impagáveis;
3. A maior parte de nossas riquezas está sendo enviada para fora de nosso estado, e até para fora de nossos país e continente.
4. Intensificação e implementação de atividades econômicas que, sabidamente, levam à concentração de terra e renda, como a pecuária e a monocultura da cana-de-açúcar.
Continuadora da missão de Jesus Cristo, levar “vida e vida em abundância” (Jo 10,10), a Igreja sabe o quanto é importante e necessário o desenvolvimento. Mas que este seja verdadeiramente democrático, includente; que distribua renda e terra; respeite o meio ambiente, e não apenas privatize as florestas e realize o desmatamento. Que esteja voltado para as necessidades de nosso estado e da maior parte de sua população, e não voltado para fora e, assim, reproduza e aprofunde sob outras formas a dolorosa experiência da exploração de nossa borracha.
Sabendo de nossas riquezas e dos variados interesses que elas suscitam, reafirmamos nosso compromisso com a defesa da vida, que, neste chão, não pode prescindir também da defesa das florestas. Por isso, enfatizamos a necessidade de se rever o quanto antes o “manejo sustentável”, que até agora tem se mostrado insustentável na prática, tanto no aspecto social como no ambiental.
Queremos desenvolvimento, sim. Mas, como Igreja, povo do Deus da Vida e corresponsáveis pela criação, entendemos que a Amazônia e seus habitantes não podem ser submetidos à lógica do lucro a qualquer custo. Primeiro e acima de tudo, a VIDA!
Diocese de Rio Branco
XI Assembleia Diocesana de Pastoral
Agosto/2008
O manifesto acima deveria ter sido divulgado logo ao término da Assembleia. Ao estranhar a demora, entramos em contato com os dirigentes da Diocese. Eles deram algumas desculpas e disseram que logo “sairia”, sem dizer clara e convincentemente os motivos da demora.
Mais de uma semana depois, foi divulgado um manifesto. Entretanto, não era aquele que havia sido aprovado em assembleia. O texto em questão é o que segue, na íntegra, para que o leitor possa comparar um e outro. Nós o chamamos “manifesto da cúpula diocesana”.
MANIFESTO EM FAVOR DA FLORESTA E SEUS HABITANTES - VERSÃO DIVULGADA PELA DIOCESE, MAS SEM O AVAL DA ASSEMBLEIA DIOCESANA
A Diocese de Rio Branco-AC, reunida em Assembleia nos dias 01, 02 e 03/08/2008, vem a público manifestar sua sincera preocupação com a política de exploração florestal no Estado do Acre. Temos tido avanços e também sérios problemas.
Consideramos que precisa ser ampliada e intensificada a discussão à legislação do manejo sustentável.
Continuadora da missão de Jesus Cristo, levar “vida e vida em abundância” (Jo 10, 10), a Igreja sabe o quanto é importante a necessidade de desenvolvimento, mas que este seja verdadeiramente democrático, includente: que distribua renda e terra; respeite o meio ambiente; não privatize as florestas e realize o desmatamento; e que esteja voltado para as necessidades de nosso Estado e da maior parte de sua população.
Sabendo de nossas riquezas e dos variados interesses que elas suscitam, reafirmamos nosso compromisso com a defesa da vida que, neste chão, não pode prescindir também da devida obediência ao ordenamento jurídico vigente e do correto caminho do desenvolvimento sustentável.
Por isso, enfatizamos a necessidade de se rever o quanto antes a aplicação da Lei de Concessão de Florestas Públicas, nº 11.284/06.
Reconhecemos o esforço que se faz, mas pedimos uma maior fiscalização na prática do manejo sustentável.
Queremos desenvolvimento, sim. Mas, como Igreja, povo do Deus da Vida e co-responsáveis pela criação, entendemos que a floresta e seus habitantes não podem ser submetidos à lógica do lucro a qualquer custo. Primeiro e acima de tudo, a VIDA!
Diocese de Rio Branco
XI Assembleia Diocesana de Pastoral
Agosto/2008
Externando “profunda preocupação”, o primeiro manifesto faz uma crítica contundente ao modelo de “desenvolvimento sustentável” implantado no Acre pelo governo da FPA, denunciando seu caráter colonial e afirmando que “sua implementação não só não tem concretizado suas promessas como tem resultado em algo bastante diferente”. Também condena o manejo e destaca o aumento do desmatamento e seus efeitos danosos, o favorecimento às madeireiras, a punição infligida aos pequenos.
O segundo manifesto, por sua vez, é “leve”. Fala apenas de “sincera preocupação”. Sugere que se siga o “correto caminho do desenvolvimento sustentável” e pede “mais fiscalização na prática do manejo sustentável”. Isto significa que o manifesto segundo (o da cúpula diocesana) faz uma legitimação daquilo que o manifesto primeiro (o popular) denunciava, condenava. Também quanto a isso é possível falar de uma involução, de uma volta ao tempo em que os documentos da Igreja não “colocam em questão as estruturas injustas”, apontando no máximo uma espécie de “desvio”.
Isso mostra que a cúpula diocesana procura abafar e/ou adoçar a crítica que surge do seio da própria Igreja. O episódio deixa claro como agem os membros da cúpula que apoiam o governo, desvelando certa distância entre a “igreja povo” (a base popular, os fiéis) e a “igreja instituição” (a cúpula, a hierarquia).
Episódios como esse mostram que a Igreja é una, mas não é homogênea. Como organização social que é, ela guarda em si sujeitos com visões, interesses e poderes diversos e até antagônicos. Mesmo na época em que assumia abertamente os interesses dos de baixo, havia em seu seio aqueles que pressionavam noutra direção. Dentre outras coisas, as entrevistas de Chico Mendes e Osmarino Amâncio contidas no livro Trajetória da luta camponesa na Amazônia-acreana tratam disso.
Pe. Mássimo e outros governistas estavam na assembleia quando foi lido o manifesto popular. Mas não disseram palavra. Preferiram tratar tudo entre si, nos bastidores, sem a intromissão do populacho. E assim, a Igreja, que anos antes ia ao encontro dos oprimidos, que abria seus espaços e celebrações para que eles falassem de suas dores e lutas, agora sufoca seus clamores, a fim de não manchar a imagem do governo que (sua cúpula) defende. Sua preocupação maior é o governo, e não o povo oprimido e explorado. Os problemas do povo não são os problemas da Igreja, como Dom Joaquín disse que queria que fosse.
Trata-se, hoje, de uma Instituição que faz ouvidos moucos aos clamores do povo, mesmo aos clamores que surgem de seu próprio seio. Quando não é possível ignorar tais clamores, ela se põe a adoçá-los, descaracterizá-los.
Silêncio diante da censura
O tratamento que o governo dispensa à imprensa é outra coisa que muito ilumina o clima político que se vive no Acre. Vivemos ainda num estado em que “a liberdade não passa de uma palavra sem conteúdo”, como disse, anos atrás, Dom Moacyr naquela carta em que a Igreja rompia com as autoridades estatais.
Sobre isso, é esclarecedora uma carta que o jornalista Silvio Martinello dirigiu a Jorge Viana. Isso foi em 2001, antes de eles se tornarem bons amigos. A carta é autoexplicativa. Por isso, prescindimos de comentários, restando-nos apenas dizer que também sobre isso a Igreja mantém silêncio.
Em meus 25 anos de jornalismo no Acre, nunca tivemos um governo tão contencioso, tão difícil, tão repressor e policialesco quanto o seu.
No começo, pensava-se que era excesso de zelo seu e de seus assessores em construir e preservar uma boa imagem de governo. Redações de jornais, estúdios de televisão eram, diariamente e várias vezes por dia, visitados pelos seus assessores, para saber o que iria ser publicado no dia seguinte ou iria para o ar. Houve um tempo em que seu assessor de comunicação chegou a pedir uma cópia da primeira página dos jornais, antes de ir às bancas.
Com o passar do tempo, porém, donos dos veículos de comunicação, seus editores e jornalistas se deram conta que não era exatamente excesso de zelo. Era uma tentativa clara de controlar, de pautar, de editar e de impor uma verdadeira censura prévia aos veículos.
Atualmente, os órgãos de imprensa que não têm independência financeira e sobrevivem às (sic) expensas de um contrato de publicidade, vivem um verdadeiro clima de terror. Seus donos são ameaçados de retaliações, até de prisão (...). Seus editores e repórteres trabalham com medo (...).
Através de um levantamento que A GAZETA começou a fazer nas últimas semanas, está-se chegando à triste conclusão que nunca um governo abriu tantos processos contra veículos de comunicação e jornalistas quanto o seu. Já chegaram a quase duas centenas.
Somente entre 2012 e meados de 2013, pelos menos, 7 jornalistas tiveram problemas com seus chefes ou foram demitidos das empresas em que trabalhavam. O motivo: fizeram matérias que não agradaram o governo. O sindicato da categoria não se manifestou sobre o caso, pois parte significativa de seus dirigentes trabalha para o governo. Nos dias que correm, o blogueiro Altino Machado é perseguido, difamado e sofre ameaças várias por sua atuação independente em relação ao governo.
Também sobre isso a Igreja guarda silêncio. Nos difíceis anos da ditadura militar, a Instituição denunciava a subserviência da imprensa ao governo e à classe dominante. Por isso, ela criou seu próprio jornal, o Nós Irmãos, e ajudou na criação e na manutenção do Varadouro. Através desses instrumentos, ela denunciava as injustiças e fazia frente aos dominantes.
Agora, porém, age como se nada de errado estivesse acontecendo, como se tudo estivesse na mais perfeita paz e a liberdade vigorasse, plena.
Contudo, a Igreja não erra apenas por omissão. Entre seus membros, há aqueles que o fazem ativamente.
Uma Igreja-instrumento a serviço do governo
Ao lançarmos um olhar sobre alguns projetos e questões específicas, poderemos apreender de modo mais preciso o atrelamento subserviente da cúpula da Igreja ao governo local. Trataremos disso tomando em conta o Programa Cidade do Povo e a Operação G-7[20].
Cidade do Povo é um programa feito, maiormente, com recursos do governo federal. Através dele seriam construídas mais de 10.000 casas. Quando de seu lançamento, Tião Viana convidou alguns sacerdotes (católicos e evangélicos) para darem a bênção.
Entres estes, estava Pe. Mássimo, reitor da Diocese de Rio Branco e, portanto, autorizado porta-voz da Instituição. Em verdade, o clérigo é atualmente a principal figura pública da Igreja. Dom Joaquín prefere o anonimato que, não raro, traduz sua omissão como pastor maior da Diocese.
Num gesto que bem mostra a que ponto chegou a instrumentalização da Igreja pelo atual governo, o sacerdote católico abençoou o programa e pediu que “Deus afastasse toda negatividade”. De um modo implícito e simplista, o pedido fazia referência às críticas e denúncias que o referido programa sofreu desde o início de sua divulgação. O Instituto de Meio Ambiente do Acre (IMAC) e o Ministério Público Estadual (MPE) já haviam se posicionado contrariamente ao programa do jeito que ele fora desenhado inicialmente.
Dentre outras coisas, argumentavam sobre os impactos ambientalmente danosos da obra. Sobremodo, alertavam para o fato de o projeto atingir o Aquífero Rio Branco. Segundo estudos, este aquífero, sozinho, pode abastecer cerca 1 milhão de pessoas. Nesses tempos em que o Rio Acre, ano após ano, passa por secas cada vez mais graves, proteger este patrimônio não é coisa de pouca monta. Trata-se, em última instância, de sobrevivência. Estaria aí também uma maneira de livrar a população de pagar os preços exorbitantes que, em tempo de seca do rio, os carros-pipa cobram pela água.
Segunda matéria intitulada Estado é acusado de falsificar documentos de licença ambiental para instalação do projeto Cidade do Povo, o MPE denunciou que, na formulação da licença ambiental prévia, houve um “simulacro de EIA/RIMA”, forjado com o intuito de cumprir, apenas aparentemente, as “exigências legais”.
Segundo as investigações do referido órgão, o governo enviou o pedido de licença para a construção da Cidade do Povo em 11/06/2012. Todavia, neste mesmo dia, era publicado no Diário Oficial que o pedido havia sido feito em 08/06/2012, isto é, três dias antes do que realmente ocorreu. Isto é tipificado como “falsidade ideológica”.
Ainda de acordo com o MPE, o pedido de licença não teve parecer do diretor do IMAC, como deveria. Simplesmente, uma funcionária deferiu e autorizou, ela mesma, a licença. Além disso, fraudulentamente, a licença foi expedida em 22 de junho de 2012 e, coisa incrível, publicada no Diário Oficial de 25 de junho de 2012, antes mesmo de o diretor do IMAC recebê-la, o que só ocorreu em 26 daquele mesmo mês.
Sem demora e com o ressentimento de sempre, o governo reagiu. Abriu representação no Conselho Nacional do Ministério Público contra os promotores Meri Cristina Amaral, Alessandra Marques, Gláucio Oshiro e Rita de Cássia Nogueira, que investigam o projeto da Cidade do Povo (Governo contra MP).
Do que foi dito acima, sublinhemos: 1) a preocupação com a questão ambiental serve ao governo apenas como peça discursiva e propagandística; 2) para levar a cabo seus projetos, o governo parece que não hesita em lançar mão de certo “jeitinho” e 3) não hesita também em perseguir e constranger aqueles que, no mais estrito cumprimento de suas funções, criam embaraços a ele.
Outras coisas mais mostram que, apenas no simplismo de Pe. Mássimo, poderíamos tratar as críticas e denúncias referentes à Cidade do Povo como “negatividades”. Através de interceptações telefônicas autorizadas pela justiça, a Operação G-7 mostrou que empreiteiros pretendiam lucrar de 600.000 mil a 700.000 mil a mais no projeto, diminuindo meio metro quadrado das casas a serem construídas (Empresas envolvidas na Operação G7 da PF lucrariam com a diminuição de meio metro quadrado nas casas da Cidade do Povo).
Como sabemos, a Operação G-7 prendeu empreiteiros envolvidos neste e em outros “esquemas”. Sem nenhum pudor, o governador Tião Viana saiu em defesa deles. Disse em evento promovido pelas forças governistas que conhecia as pessoas presas na referida Operação, que eram “inocentes” e “presos políticos”.
É imperativo lembrar que alguns dos empreiteiros defendidos por Tião Viana já haviam sido denunciados por ele e seu irmão, em 1985. Naquela ocasião, os irmãos denunciavam que, sem licitação, foi contratada a obra de reforma do Hospital de Base e do Pronto Socorro de Rio Branco e, nela, as empreiteiras envolvidas lucrariam, ilicitamente, até 1 milhão (Sebastião e Jorge Viana denunciaram no passado, empreiteiros que defendem no presente).
Então, como assim, as pessoas presas na Operação G-7 são inocentes? O governador errou antes, por denunciar os empreiteiros, ou erra agora, por defendê-los? Por que Tião Viana sai em defesa destes, mesmo depois que as escutas telefônicas feitas pela PF comprovaram “acerto” para diminuir o tamanho das casas? Isso já não seria suficiente para colocá-los sob suspeitas e deixar o governador reticente quanto à idoneidade deles? Não seria tal atitude uma mostra de comprometimento também da autoridade governamental no esquema?
No intuito de orientar a opinião pública em seu favor, o governo promoveu um evento que ele disse ser “em favor da democracia e da justiça e contra o golpe”. Ao lado de pastores das igrejas Assembleia de Deus, Batista e Quadrangular, Pe. Mássimo lá esteve[21]. E ali declarou seu amor a Tião Viana. “Nós te amamos, Tião Viana”, disse ele publicamente ao governador, naquele mesmo evento em que Aníbal Diniz atacou, com termos indisfarçavelmente machistas, a honra das desembargadoras Maria Cezarinete Angelim e Denise Bonfim, dizendo-as “magoadas, mal resolvidas”. Dias antes, junto com espíritas e evangélicos, o sacerdote católico articulava um culto ecumênico na papudinha em intercessão aos presos na Operação da PF.
Nenhuma palavra de solidariedade à desembargadora Denise Bonfim que, em razão de sua atuação na Operação G-7, foi ameaçada de morte. De igual modo, o Pe. também não manifestou nenhuma solidariedade ao coordenador regional do CIMI (Lindomar Padilha) e à coordenadora da CPT (Darlene Braga). As sedes dessas organizações já foram invadidas várias vezes. Lindomar Padilha já foi ameaçado de morte inúmeras vezes.
Sobre isso, não se viu nenhuma atitude ou se ouviu uma palavra de Pe. Mássimo, em particular, e da cúpula diocesana, em geral. Quer isto dizer que a Instituição, através de seu porta-voz, manifesta solidariedade em relação a pessoas acusadas de sérios crimes, mas não em relação a seus membros que, arriscando a própria vida, continuam suas lutas em favor dos de baixo. Isso faz da Igreja Católica corresponsável de tudo quanto de mau o governo da FPA vem fazendo no estado.
Dom Joaquín parece não se incomodar com o fato de Pe. Mássimo macular dessa forma a autoridade moral da Igreja, que procure, em nome de Deus e da Instituição, justificar o injustificável. Neste sentido, o bispo erra política e moralmente por omissão, já que nada faz referente ao fato de o referido padre agir mais como um militante petista do que como sacerdote.
Vai longe o tempo em que a Igreja local, a partir da Pastoral de Conjunto, apoiava cada luta e cada lutador e lutadora. Hoje CIMI e CPT vivem isolados, desassistidos pela Diocese, praticamente abandonados. As razões disso são assaz notórias. É que essas organizações são as únicas da Igreja que continuam intransigentes na defesa dos oprimidos e, como suas lutas envolvem terras e territórios, questionam o âmago do modelo de “desenvolvimento sustentável” da FPA, que é a privatização das florestas, a exploração desregrada dos bens naturais e a espoliação das comunidades locais.
Discursivamente a teologia da libertação ainda serve à Igreja, inspira discursos e está presente nos documentos... como letra morta. E não vai para além disso. Efetivamente, a “teologia da conciliação” volta a reinar. As estruturas de injustiça já não são questionadas, e as questões sociais voltam a ser tratadas numa perspectiva meramente caritativa, pouco consequente.
Com efeito, a leitura política que orienta atuação da Instituição já não leva em consideração as classes e as causas sociais, mas tão-só as forças políticas partidárias. Ela apoia sempre a FPA e combate sempre a oposição. Todavia, como dissemos alhures, “oposição” e “situação” (FPA) não representam blocos monolíticos, contendo um todas as virtudes e o outro, todos os vícios. São, isto sim, “grupos políticos flexíveis”.
Dependendo dos acordos ou desacordos, os indivíduos transitam entre um e outro sem pudores, sem preocupações maiores com programas de governo ou ideologias. E a história já se encarregou de mostrar a todos os que têm um mínimo de capacidade de observação que nem a oposição nem a FPA de hoje são as mesmas de ontem.
Esse atrelamento subserviente da Igreja às forças governistas chega ao ponto de colocá-la em desacordo não apenas com a oposição, mas também com as forças realmente populares.
Fazendo eco às manifestações populares que tomaram o Brasil no mês de junho/2013, a população promoveu no Acre o “Dia do basta”. Nenhum representante oficial da Igreja compareceu à manifestação. A razão disso é simples. Mesmo não sendo organizada pela oposição, a manifestação popular questionava abertamente o atual governo e os recentes escândalos de corrupção em que ele se enredou.
É nisso e em tantas outras coisas[22] que aqui não pudemos tratar que assentamos a tese de que a Diocese de Rio Branco, que já foi uma referência para o Brasil em termos de luta em favor dos de baixo, vive hoje um momento de involução política. Ela é hoje uma Igreja pré-conciliar, mais governo que povo, aliada das oligarquias, e não dos pobres, mais solícita aos convites do Faraó do que aos clamores do povo que sofre.
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Sites e blogs visitados
Estado é acusado de falsificar documentos de licença ambiental para instalação do projeto Cidade do PovoDisponível emhttp://www.ac24horas.com/2013/06/07/exclusivo-estado-e-acusado-de-falsificar-documentos-de-licenca-ambiental-para-instalacao-do-projeto-cidade-do-povo/ Acesso em 7 de junho de 2013.
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Sebastião e Jorge Viana denunciaram no passado, empreiteiros que defendem no presente Disponível emhttp://www.tribunadojurua.com.br/politica/sebastiao-e-jorge-viana-denunciaram-no-passado-empreiteiros-que-defendem-no-presente/ Acesso em 17 de junho de 2013.
[1] Embora falemos - de um modo bastante geral e impreciso, reconhecemos - de Igreja Católica do Acre, tratamos mais precisamente da Diocese de Rio Branco, antes Prelazia do Alto Acre e Alto Purus.
[2] Cientista Social com habilitação em Ciência Política, mestre em Desenvolvimento Regional e membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental - NUPESDAO. E-mail: israelpolitica@gmail.com
[3] O primeiro foi sagrado bispo em 1920, e o segundo em 1948.
[4] A Prelazia foi “criada” em 1919, através da bula “Ecclesiae Universae Regimen”. Mas só foi “instalada” um ano depois, quando chega ao estado uma equipe capitaneada por um bispo, a fim de cuidar efetivamente dos serviços. Em 1986, a Prelazia é elevada à Diocese de Rio Branco.
[5] Bourdieu fala apenas de “capital político” e o trata como pertencente ao capital simbólico. Em razão disso é que acrescentamos ao “capital político” o “estatal”, especificando que se trata do controle sobre o Estado em sentido restrito.
[6] Não resta dúvida de que o poder econômico tem uma dimensão e uma força políticas, às vezes até maior que o próprio Estado, símbolo maior do poder político no Ocidente. Sobre isso, vale consultar o artigo de Boron: Os novos Leviatãs e a pólis democrática (no livro A coruja de Minerva: mercado contra democracia no capitalismo contemporâneo). Dentre outras coisas, o autor destaca o enorme poder de que dispõem algumas empresas (os novos leviatãs) transnacionais na contemporaneidade. Algumas destas empresas chegam a ter ganhos anuais que superam o PIB de certos países. Para entender a dimensão ideológica do poder econômico, ver o clássico de Marx e Engels: A ideologia alemã. Ver também as páginas de Contribuição à crítica da economia política, em que Marx trata do capitalismo como quase uma religião. Sobre o mesmo assunto, mas noutro prisma, vale consultar Sobre a questão judaica, onde Marx, ainda muito jovem e muito antes de Weber, trata da importância do judaísmo e do cristianismo para o capitalismo. Ainda sobre o poder econômico das ideias (valores, ética, religião), ver A ética protestante e espírito do capitalismo. Em perspectiva um tanto diversa da de Marx, nesta obra última Weber procura mostrar a importância da ética religiosa (protestante) para a implantação do capitalismo. De outra banda, importa reconhecer que o poder político estatal tem uma dimensão ideológica. Gramsci (Cadernos do cárcere: Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política) dizia que o Estado tem também um papel de educador das massas, isto é, uma função ideológica. E também dizia, inspirando-se em Maquiavel, que as ideias, a cultura, os saberes e os valores têm uma dimensão eminentemente política (GRAMSCI, 2007: 23-24). Por seu turno, inspirando-se em Weber e mostrando a dimensão ideológica do poder político estatal, Bourdieu (O poder simbólico) chamava o Estado de o “detentor do monopólio da violência simbólica legítima”. Por outro lado, mostrando a dimensão política do poder ideológico, dizia que “o capital político é uma forma de capital simbólico” (BOURDIEU, 2007: 146; 187).
[7] A casa em que o bispo reside é conhecida como Palácio do Bispo.
[8] Expressão extraída de Gustavo Gutiérrez (2000: 162) e mostra como os “poderosos” interpretam e tratam o envolvimento do clero com a causa dos “pequeninos”.
[9] É forçoso salientar que no livro de Dom Joaquín, em colaboração com Pe. Mássimo, de onde tiramos essa informação e de que nos valemos largamente ao longo deste artigo, encontramos a expressão “revolução dos militares”. Usar em seu lugar “golpe militar” é opção nossa, e isso fazemos por acharmos mais condizente com a “verdade efetiva das coisas”, como diria Maquiavel. Chamamos a atenção para destacar certo conservadorismo presente no livro. Esse conservadorismo vai aumentando conforme avança no tratamento dos anos mais recentes, exatamente os anos em que a Igreja se reaproxima das forças dominantes. Revolução dos militares é expressão usada pelos próprios militares e seus apoiadores (entre os quais, no início, estava a Igreja Católica), a fim de justificar o regime por eles implantado sob direta influência dos EUA. Não obstante, sublinhamos a riqueza histórica do referido livro.
[10] Pierre Bourdieu (A economia das trocas simbólicas) argumenta que “A igreja contribui para a manutenção da ordem política (...) pela consecução de sua função específica (...) de contribuir para a manutenção da ordem simbólica (...), pela imposição e inculcação dos esquemas de percepção, pensamento e ação objetivamente conferidos às estruturas políticas e, por esta razão, tendentes a conferir a tais estruturas a legitimação suprema que é a ‘naturalização’” (BOURDIEU, 2007: 70).
[11] Quanto a isto, discordamos da opinião do atual bispo. Como assinalamos, ao propor como marca de seu pastoreio a “promoção humana” em suas múltiplas dimensões e ao assumir, de modo significativamente prático, a causa dos oprimidos, Dom Giocondo já orientava a Igreja para uma reforma conciliar. Em nossa opinião, a Primeira Assembleia Geral de todos os Agentes Pastorais, convocada em 1971, representou um maior esforço para estruturalmente adequar a Igreja ao Concilio Vaticano II. Não representa, portanto, “um ponto de partida”, mas a consolidação de um trajeto e a abertura para outro. É a isto que chamamos de “um legado para os anos vindouros”. Para ser justo, é mister dizer que sob Dom Giocondo, nos idos anos de 1960 e início dos de 1970, a Igreja estava mais conforme o referido Concílio, do que sob Dom Joaquín nos dias de hoje. Oportunamente, mostraremos que a Diocese de Rio Branco, hoje, atua como uma Igreja pré-conciliar, efetuando com isso uma involução política.
[12] A falar a verdade, usamos o termo “teologia da conciliação” com certa cautela e nunca desprezamos a postura efetiva da Igreja perante as autoridades estatais e à classe dominante, que, num dado momento, era uma postura de “amizade” e subserviência ao mesmo tempo. De seu lado, o entendimento da “teologia da separação” deve seguir o mesmo critério. Desse modo, ressaltamos que, ainda que naqueles anos de “teologia da conciliação”, não tivesse ocorrido a ruptura formal da Igreja com as autoridades estatais e a classe dominante, a Instituição eclesial já as combatia abertamente.
[13] Quanto a isso, recomendamos as seguintes obras: Capital e trabalho na Amazônia Ocidental: contribuição à história social e da luta sindical no Acre, (Des)Envolvimento insustentável na Amazônia Ocidental: dos missionário do progresso aos mercadores da natureza, Trajetórias da luta camponesa na Amazônia-acreana e Resistência camponesa e desenvolvimento agrário: uma análise a partir da realidade amazônico-acreana. Também alguns textos presentes neste livro abordam, a seu modo e segundo seus objetivos, o tema. Ver a Parte II.
[14] O PMDB venceu as eleições estaduais em 1982, com o slogan “governo de participação popular”. O governo prometia atender demandas sociais (PAULA, 2006: 117). Isso foi o suficiente para convencer alguns (como João Maia) de seu caráter democrático-popular, participativo. Em verdade, a opção que o então delegado da CONTAG faz antecipa a opção desastrosa que o grosso do movimento sindical e social ligado aos de baixo faz no governo da FPA: abdica de sua autonomia em favor de um governo que, ainda que se diga democrático e participativo, não passa de elitista e despótico.
[15] A citação é do boletim Nós irmãos da Igreja, de 1981, e foi reproduzida por Costa Sobrinho (2001: 61), de onde a extraímos. Dentre outras coisas, isso mostra que a Igreja tinha plena consciência de seu passado e o enxergava com autocrítica.
[16] Esse episódio ficou popularmente conhecido como “Dia D”.
[17] O candidato à época era Jorge Viana, que ganhou aquelas eleições e foi reeleito em 2002.
[18] Isso não significa que não houvesse problemas. Chico Mendes e Osmarino Amâncio tiveram atritos com certos setores conservadores ou “moderados” da Igreja. Alguns padres chegaram mesmo a sabotar, por dentro, as ações da Instituição.
[19] Ver, na Parte II, Estado e Movimento Indígena na Amazônia Ocidental: do conflito à conciliação? Crônica de uma vitória às avessas, Conselhos no Acre: aparência democrática, Ambientalismo e geopolítica: da criação das RESEX aos corredores da espoliação e “Depois de mim, o dilúvio”: o “círculo vicioso da dívida” pública.
[20] Para mais sobre este assunto, ver na Parte II Operação G-7: uma leitura política.
[21] Esse e outros eventos informam a forte influência das forças políticas dominantes sobre amplas camadas do cristianismo no Acre (católicos, protestantes e evangélicos) que, em geral, vêm atuando de modo conservador e subserviente ao governo.
[22] Sobre isso, ressaltamos que seria muito profícuo analisar o papel do crescimento da Renovação Carismática Católica (RCC) e seu peso na reorientação da atuação política da Igreja. Por outro lado, reputamos também imprescindível considerar os projetos sociais que o governo mantém com a Diocese, bem como as reformas que ele financiou em várias paróquias e na Catedral.
Publicado originalmente no Blog Insurgente Coletivo
Publicado originalmente no Blog Insurgente Coletivo
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