segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Como a Grande Indústria Viciou o Brasil em Junk Food

À medida que o crescimento diminui nos países ricos, as empresas de alimentos ocidentais se expandem acintosamente nos países em
desenvolvimento, contribuindo para obesidade e problemas de saúde.

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By ANDREW JACOBS and MATT RICHTELSEPT. 16, 2017


FORTALEZA, Brasil — Gritos de crianças soavam na manhã quente e úmida, enquanto uma mulher empurrava um carrinho branco e reluzente pelas ruas esburacadas e repletas de lixo espalhado. Ela fazia entregas em algumas das casas mais pobres desta cidade litorânea, levando sobremesas lácteas, biscoitos e outros alimentos industrializados aos clientes situados em seu trajeto.

Celene da Silva, 29, é uma de milhares de revendedoras porta a porta da Nestlé que ajudam o maior conglomerado de alimentos industrializados do mundo a expandir seu alcance para 250 mil casas nos recantos mais longínquos do país.

Enquanto entregava várias embalagens da sobremesa láctea Chandelle, de Kit-Kats e do cereal infantil Mucilon, algo chamava a atenção sobre seus clientes: muitos estavam visivelmente acima do peso, incluindo as crianças pequenas.

Ela apontou para uma casa e sacudiu a cabeça ao lembrar o modo como o chefe da família, um homem com obesidade grave, morreu na semana anterior: “ele comeu um pedaço de bolo e morreu enquanto dormia”, recordou.

Da Silva, ela mesma com quase 100 quilos, descobriu recentemente que tem hipertensão, um problema que reconhece estar relacionado ao seu fraco por frango frito e pela Coca-Cola que toma em todas as refeições, incluindo o café da manhã.

O exército de vendas diretas da Nestlé faz parte de uma mudança mais ampla na estratégia das indústrias alimentícias, que inclui a entrega de junk food e bebidas açucaradas consumidas no Ocidente até os rincões mais isolados da América Latina, África e Ásia. Enquanto suas vendas caem nos países mais ricos, as multinacionais do gênero alimentício, como Nestlé, PepsiCo e General Mills, aumentam sua presença de forma acintosa nos países em desenvolvimento, comercializando seus produtos tão ostensivamente que chegam a transtornar os hábitos alimentares tradicionais do Brasil, Gana e Índia.

O New York Times analisou os registros de empresas, estudos epidemiológicos e relatórios governamentais, assim como realizou entrevistas com vários nutricionistas e especialistas em saúde do mundo todo que revelam uma mudança radical na maneira como os alimentos são produzidos, distribuídos e anunciados em grande parte do mundo. Isso, segundo especialistas em saúde pública, está contribuindo para uma nova epidemia de diabetes e problemas cardíacos; doenças crônicas associadas às elevadas taxas de obesidade de regiões que há apenas uma década lutavam para combater a fome e a desnutrição.

A nova realidade pode ser compreendida com um único e incontestável fato: no mundo todo, o número de obesos superou o de indivíduos com baixo peso. Simultaneamente, a disponibilidade crescente de alimentos altamente calóricos e pobres em nutrientes está gerando um novo tipo de desnutrição, caracterizada por um número cada vez maior de pessoas com sobrepeso que, ao mesmo tempo, tem uma nutrição precária.

“A história vigente é que este é o melhor dos mundos possíveis: alimentos baratos e amplamente disponíveis. Se você não analisa a questão a fundo, faz sentido”, afirmou Anthony Winson, que estuda política econômica de nutrição na Universidade de Guelph, em Ontário. Um olhar mais cuidadoso, entretanto, revela uma história muito diferente, conclui. “Para deixar claro: a forma como estamos nos alimentando está nos matando”.

Até mesmo alguns críticos dos alimentos processados reconhecem que há vários fatores relacionados ao aumento da obesidade, incluindo genética, urbanização, renda crescente e aumento do sedentarismo. Os executivos da Nestlé afirmam que seus produtos ajudaram a diminuir a fome e a fornecer nutrientes essenciais, e que a empresa diminuiu a quantidade de sal, gordura e açúcar de milhares de itens para torná-los mais saudáveis. Porém, Sean Westcott, chefe de pesquisa e desenvolvimento de alimentos da Nestlé, admitiu que a obesidade foi um efeito colateral inesperado surgido depois que alimentos processados de baixo custo se tornaram mais acessíveis.

“Não sabíamos qual seria o impacto”, disse ele.

Parte do problema, acrescentou, é a tendência natural que as pessoas têm de comer demais quando podem comprar mais alimentos. A Nestlé, afirmou ele, se esforça para educar os consumidores quanto ao tamanho adequado das porções e para produzir e comercializar alimentos que equilibrem “prazer e nutrição”.

Hoje há mais de 700 milhões de pessoas obesas no mundo, sendo 108 milhões crianças, de acordo com uma pesquisa publicada recentemente no New England Journal of Medicine. A prevalência da obesidade dobrou em 73 países desde 1980, contribuindo para 4 milhões de mortes prematuras, segundo o estudo.

O aumento da obesidade no mundo

As taxas de obesidade nos Estados Unidos, no Pacífico Sul e no Golfo Pérsico estão entre as mais altas do mundo – mais de um a cada quatro americanos está obeso. Mas a obesidade, definida como um índice de massa corpórea acima de 30, cresceu mais rapidamente nos últimos 30 anos nos países da América Latina, África e Ásia.

O problema se refere tanto à economia quanto à nutrição. À medida que as multinacionais avançam nos países em desenvolvimento, elas alteram a agricultura local, estimulando agricultores a trocar as culturas de subsistência por commodities mais rentáveis, como cana-de-açúcar, milho e soja: a base de muitos produtos alimentícios industrializados.

É um ecossistema econômico que atrai lojas familiares, grandes varejistas, fabricantes e distribuidores de alimentos e pequenos vendedores como da Silva.

Em lugares tão distantes como a China, África do Sul e Colômbia, o crescente poder das grandes empresas de alimentos também se traduz em influência política, o que impede que autoridades em saúde pública consigam taxar refrigerantes ou criar leis destinadas a restringir os impactos dos alimentos processados na saúde.

Para um número crescente de nutricionistas, a epidemia da obesidade está intrinsecamente ligada às vendas de alimentos industrializados, que cresceram 25% no mundo todo de 2011 a 2016, em comparação com 10% nos Estados Unidos, de acordo com a Euromonitor, uma empresa de pesquisa de mercado. Uma mudança ainda mais drástica ocorreu em relação aos refrigerantes carbonatados: as vendas na América Latina dobraram desde 2000, ultrapassando o consumo na América do Norte em 2013, segundo a Organização Mundial da Saúde.

A mesma tendência se reflete no mercado de fast food, que obteve um crescimento mundial de 30% no mundo de 2011 a 2016, comparado com 21% nos Estados Unidos, de acordo com a Euromonitor. A Domino’s Pizza, por exemplo, abriu, em 2016, 1.216 lojas – uma “a cada sete horas”, segundo seu relatório anual – todas, com exceção de 171, fora dos Estados Unidos.

“Em uma época em que o crescimento ocorre de forma mais moderada nas economias estabelecidas, acredito que a postura mais enérgica no mercado emergente irá prevalecer”, afirmou recentemente o diretor-executivo da Nestlé a investidores. Os mercados em desenvolvimento hoje são responsáveis por 42% das vendas da empresa.

Para algumas empresas do ramo, isso significa mirar especificamente no público jovem, como Ahmet Bozer, presidente da Coca-Cola, descreveu a investidores em 2014. “Metade da população mundial não tomou uma Coca nos últimos 30 dias”, disse. “Há 600 milhões de adolescentes que não tomaram uma Coca na última semana. Então temos uma enorme oportunidade”.

Aqueles que defendem a indústria afirmam que os alimentos processados são essenciais para alimentar um mundo cada vez maior e mais urbanizado de pessoas, muitas delas com renda crescente e que demandam praticidade.

“Não vamos acabar com todas as fábricas e voltar a cultivar apenas grãos. Isso não faz sentido. Não vai dar certo”, disse Mike Gibney, professor emérito de alimentação e saúde na University College Dublin e consultor da Nestlé. “Se eu pedisse para 100 famílias brasileiras que parem de consumir alimentos processados, teria que me perguntar: o que elas comerão? Quem as alimentará? Quanto isso vai custar?”

Atualmente, há mais adultos obesos do que adultos abaixo do peso em todo o mundo. As vendas de alimentos ultraprocessados ​​mais do que duplicaram na última década - chegando inclusive em países em desenvolvimento. Aqui está o que implica esta transição para alimentos ultraprocessados no Brasil.

De muitas formas, o Brasil é um microcosmo de como rendimentos crescentes e políticas governamentais fizeram com que a população vivesse mais tempo e com mais qualidade e também serviram para erradicar amplamente a fome. Mas, agora o Brasil enfrenta um novo e difícil desafio de nutrição: na última década, a taxa de obesidade do país quase dobrou para 20%, e a parcela de pessoas com sobrepeso praticamente triplicou, indo para 58%. A cada ano, 300 mil pessoas são diagnosticadas com diabetes tipo II, uma doença relacionada à obesidade.

Também chama a atenção, no Brasil, a habilidade política da indústria. Em 2010, uma coalizão de empresas de alimentos e bebidas brasileiras destruiu uma série de medidas que buscavam limitar anúncios de junk food destinados a crianças. A última ameaça veio do presidente Michel Temer, um político de centro favorável ao setor empresarial cujos aliados conservadores do Congresso estão procurando impedir essa série de regulações e leis cuja intenção é estimular uma alimentação mais saudável.

“O que temos é uma guerra entre dois regimes alimentares, uma dieta tradicional com alimentos de verdade, produzidos por agricultores locais, e os produtores de alimentos ultraprocessados, feitos para serem consumidos em excesso e que, em alguns casos, viciam”, explicou Carlos A. Monteiro, professor de nutrição e saúde pública na Universidade de São Paulo.

“É uma guerra”, afirmou, “mas um dos regimes alimentares tem um poder desproporcionalmente maior ao do outro”.

Entrega de porta em porta

Da Silva chega aos consumidores das favelas de Fortaleza, muitos dos quais não têm acesso imediato a supermercados. Ela defende o produto que vende, exaltando as informações nutricionais dos rótulos que se vangloriam de acrescentar vitaminas e minerais aos produtos.

“Todo mundo aqui sabe que os produtos da Nestlé são bons”, assegurou ao apontar para latas de Mucilon, um mingau para bebês cujo rótulo diz: “contém cálcio e niacina”, e também para as de Nescau 2.0, um achocolatado em pó altamente açucarado.

Ela tornou-se vendedora da Nestlé dois anos atrás, quando sua família de cinco pessoas lutava para sobreviver. Embora o marido ainda esteja desempregado, a situação está melhorando. Com os cerca de 570 reais por mês que ganha com a venda dos produtos Nestlé, conseguiu comprar uma geladeira nova, uma televisão e um fogão a gás para a casa de três quartos da família, que fica à beira de um manguezal fétido.

O programa de venda porta a porta da empresa faz jus a um conceito articulado pela Nestlé em seu relatório anual de acionistas em 1976 que mencionava que “a integração com o país anfitrião é um objetivo básico da nossa empresa”. Iniciado há uma década no Brasil, atende 700 mil “consumidores de baixa renda mensalmente”, de acordo com o site da Nestlé. Apesar da crise econômica incessante no país, o programa vem crescendo 10% por ano, segundo Felipe Barbosa, supervisor da empresa.

Ele afirmou que a queda na renda dos brasileiros pobres e trabalhadores na verdade beneficiou as vendas diretas. Isso porque, ao contrário da maioria da venda de alimentos por varejo, a Nestlé oferece aos clientes um prazo de um mês para o pagamento das contas. O fato de as revendedoras – o programa emprega apenas mulheres – saberem quando seus clientes recebem o Bolsa Família, um subsídio para famílias de baixa renda, também ajuda nas vendas.

“A essência do nosso programa é alcançar os pobres”, revelou Barbosa. “O que faz ele dar certo é a ligação pessoal entre a revendedora e o cliente”.

A Nestlé procura, cada vez mais, descrever-se como líder em seu compromisso com a sociedade e a saúde. Duas décadas atrás, designou-se como uma “empresa de saúde e bem-estar em nutrição”.

Ao longo dos anos, afirma, a empresa reformulou aproximadamente 9 mil produtos com o intuito de reduzir o sal, o açúcar e a gordura, e distribuiu bilhões de porções fortificadas com vitaminas e minerais. A Nestlé destaca a segurança alimentar e a redução do desperdício de alimentos e trabalha com cerca de 400 mil agricultores no mundo todo para promover a agricultura sustentável.

Em uma entrevista no novo e amplo campus de 50 milhões de dólares na periferia de Cleveland, Ohio, o chefe de pesquisa e desenvolvimento de alimentos, Westcott, disse que o programa de vendas porta a porta reflete outro slogan da empresa: a “criação de valores compartilhados”.

“Criamos valor compartilhado ao gerar microempresários: pessoas que conseguem montar seu próprio negócio”, afirmou. Uma empresa como a Nestlé pode impulsionar o bem-estar de comunidades inteiras “ao enviar de fato mensagens positivas sobre nutrição”, concluiu.

O catálogo de alimentos da Nestlé é vasto e diferente do de outras empresas que produzem produtos para refeições rápidas e fazem pouco esforço para se concentrar em ofertas saudáveis. A lista inclui o Nesfit, um cereal integral; iogurtes com baixo teor de gordura, como o Molico, que contém uma quantidade relativamente pequena de açúcar (6 gramas); e uma variedade de cereais para crianças que devem ser servidos com leite ou água e são fortificados com vitaminas, ferro e probióticos.

Apesar dos 800 produtos que a Nestlé afirma estarem disponíveis por meio de suas revendedoras, da Silva diz que seus clientes estão mais interessados em cerca de duas dúzias deles, praticamente todos açucarados, como Kit-Kats, o iogurte grego de frutas vermelhas cujo pote de 100 gramas contém 17 gramas de açúcar; e o Chandelle Paçoca, uma sobremesa láctea aromatizada com amendoim cuja embalagem do mesmo tamanho contém 20 gramas de açúcar; apenas 5 gramas a menos do limite recomendado pela Organização Mundial da Saúde.

Até pouco tempo atrás, a Nestlé patrocinava uma barcaça que entregava dezenas de milhares de embalagens de leite em pó, iogurte, sobremesas lácteas de chocolate, biscoitos e balas a comunidades isoladas da bacia Amazônica. Desde que o barco interrompeu suas atividades em julho, donos de barcos privados assumiram a demanda.

“Por um lado, a Nestlé é líder mundial em água e fórmulas para lactentes e em vários produtos lácteos”, ressaltou Barry Popkin, professor de nutrição da Universidade da Carolina do Norte. “Por outro lado, eles estão indo para os rincões do Brasil vender balas”.

Dr. Popkin acha que a venda porta a porta é emblemática de uma nova era insidiosa em que as empresas não deixam de atender nenhuma casa, em uma tentativa de crescer e se tornarem essenciais para as comunidades do mundo em desenvolvimento. “Eles não estão deixando nenhum canto do país de lado”, concluiu.

Defensores da saúde pública já haviam criticado a empresa antes. Nos anos 1970, a Nestlé foi alvo de um boicote nos Estados Unidos por causa da comercialização intensa de fórmulas para lactentes nos países em desenvolvimento, consideradas por nutricionistas prejudiciais à amamentação saudável. Em 1978, o presidente da Nestlé Brasil, Oswaldo Ballarin, foi chamado para depor em audiências do senado americano que tratavam da questão das fórmulas para lactentes e foram amplamente divulgadas. Ballarin declarou que as críticas eram obra da Igreja que visava “destruir o sistema de livre iniciativa”.

Nas ruas de Fortaleza, onde a Nestlé é admirada por sua origem suíça e considerada uma empresa de alta qualidade, quase nunca se ouve algo negativo sobre ela.

A casa de Joana D’arc de Vasconcellos, 53, também vendedora, está repleta de animais de pelúcia da marca e decorada com certificados que recebeu em aulas de nutrição patrocinadas pela Nestlé. Em sua sala de estar, os porta-retratos com as fotos dos filhos com 2 anos, cada um diante de uma pilha de latas de fórmulas para lactentes vazias, ocupam posição de destaque. À medida que o filho e a filha cresciam, ela substituiu os produtos por outros da marca feitos para crianças, como Nido Kinder, um leite em pó para crianças pequenas; Chocapic, um cereal com sabor de chocolate; e o achocolatado em pó Nescau.

“Quando meu filho era bebê, ele não gostava de comer até que eu comecei a lhe oferecer produtos da Nestlé”, contou com orgulho.

De Vasconcellos tem diabetes e hipertensão. A filha de 17 anos, que pesa mais de 113 quilos, tem hipertensão e síndrome do ovário policístico, uma disfunção hormonal altamente relacionada à obesidade. Muitos de seus parentes sofrem de uma ou mais doenças associadas à má alimentação: a mãe e duas irmãs têm diabetes e hipertensão e o marido, hipertensão. O pai morreu três anos atrás depois de perder o pé devido à gangrena, uma complicação do diabetes.

“Toda vez que vou ao posto de saúde, meus exames de diabetes estão lá em cima”, contou. “Seria muito difícil você encontrar aqui uma família que não tenha diabetes”.

De Vasconcellos tentou anteriormente vender Tupperware e produtos Avon porta a porta, mas muitos clientes não pagavam. Seis anos atrás, depois de uma amiga lhe contar sobre o programa de vendas diretas da Nestlé, Vasconcellos se agarrou à oportunidade.

“As pessoas têm que comer”, explicou.

Interferência da indústria

Em maio de 2000, Denise Coitinho, à época diretora de nutrição do Ministério da Saúde, estava em uma festa de Dia das Mães na escola dos filhos quando seu celular tocou. Era o chefe de relações governamentais da Nestlé. “Ele estava muito chateado”, lembrou.

A fonte de preocupação da Nestlé era uma nova política adotada pelo Brasil e que pressionava a Organização Mundial da Saúde. Se fosse seguida pela OMS, a organização recomendaria que crianças de todo o mundo fossem amamentadas por seis meses, em vez da recomendação anterior de quatro a seis meses, explicou.

“Dois meses podem não parecer tanto, mas significam muita receita. Representam muita venda”, esclarece Coitinho, que deixou o cargo em 2004 e agora trabalha como consultora de nutrição independente para, entre outros, as Nações Unidas. No fim, as empresas que produzem alimentos para lactentes conseguiram barrar a politica por um ano, revelou Coitinho; a Nestlé afirmou, em resposta ao relato de Coitinho, que “acredita que o leite materno seja a nutrição ideal para bebês” e que apoia e promove as orientações da Organização Mundial da Saúde.

É difícil superestimar o poder econômico e o acesso político dos conglomerados de alimentos e bebidas, responsáveis por 10% da produção econômica do país e por empregar 1,6 milhão de pessoas.

Em 2014, as empresas alimentícias doaram quase 500 milhões de reais a membros do Congresso Nacional, um aumento de três vezes em relação a 2010, de acordo com a Transparência Brasil. Um estudo lançado no ano passado pela organização revelou que mais da metade dos atuais legisladores federais do país foi eleita com doações da indústria de alimentos antes de o Supremo Tribunal Federal proibir contribuições de empresas em 2015.

O maior doador para candidatos do Congresso foi a gigante produtora de carnes JBS, que doou quase 350 milhões de reais a candidatos. Em 2014, a Coca-Cola deu mais de 20 milhões de reais em contribuições de campanha, e o McDonald’s, cerca de 1.7 milhão de reais.

Portanto, estava armado o palco para uma batalha política descomunal quando, em 2006, o governo buscou promulgar regulações de amplo alcance para a indústria alimentícia, visando reduzir a obesidade e outras doenças. As medidas, que surgiram a partir das políticas para amamentação anteriores, incluíam alertas de publicidade para advertir os consumidores acerca dos altos níveis de açúcar, sal e gorduras saturadas, assim como restrições na comercialização para tornar menos tentadores alimentos altamente processados e bebidas açucaradas, em especial aqueles destinados a crianças.

Tomando como exemplos os esforços bem-sucedidos do governo para reduzir a venda de tabaco, as novas regulações proibiram marcas como Pepsi e KFC de patrocinarem eventos esportivos e culturais.

“Achamos que o Brasil poderia ser um modelo para o resto do mundo, um país que coloca o bem-estar de seus cidadãos acima de tudo”, disse Dirceu Raposo de Mello, então diretor da Agência de Vigilância Sanitária, mais conhecida pela sigla Anvisa. “Infelizmente, a indústria alimentícia não pensava do mesmo modo”.

As indústrias de alimentos atuaram de forma mais discreta, formando a Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação, um grupo lobista cujo conselho de vice-presidentes incluía executivos da Nestlé, o gigante produtor de carnes americano Cargill e a Unilever, o conglomerado de alimentos europeu, dono de marcas como Hellmann’s, óleo Mazola e Ben & Jerry’s. A associação se recusou a comentar esta matéria.

Nos primeiros dias das audiências públicas, a indústria parecia estar disposta a negociar as regras, mas militantes de saúde afirmam que, por trás dos bastidores, os advogados e lobistas da indústria alimentícia conduziam silenciosamente uma campanha ampla para impedir o processo.

Acadêmicos financiados pela indústria começaram a aparecer na TV para acusar as normas de serem economicamente desastrosas. Outros especialistas escreveram artigos em jornais, sugerindo que o exercício físico e o controle mais rigoroso dos pais seriam mais eficazes que as regulações no combate à obesidade infantil.

O apelo mais eficiente da indústria, garantem os analistas, foi sua denúncia veemente das restrições de propaganda propostas como censura. A acusação teve uma repercussão especial devido às quase duas décadas de ditadura militar que terminaram em 1985.

Em uma reunião, um representante da indústria alimentícia acusou a Anvisa de tentar subverter a autoridade dos pais, afirmando que as mães tinham o direito de decidir o que dar de comer aos filhos, lembrou Vanessa Schotz, que advoga em defesa da nutrição. Em outra reunião, conta ela, um representante da indústria de brinquedos ficou de pé e criticou com veemência as regras de comercialização propostas, afirmando que elas privariam as crianças brasileiras dos brinquedos que às vezes vêm junto das refeições de fast food. “Ele disse que estávamos matando os sonhos das crianças, argumentando que elas valorizam mais os brinquedos do que os alimentos”, recordou Schotz. “Ficamos estupefatos”.

Repreendida pelas críticas da indústria, a Anvisa retirou, no final de 2010, a maioria das restrições propostas. Restou apenas uma única proposta para que os anúncios incluíssem um alerta sobre alimentos e bebidas que prejudicam a saúde.

Então vieram as ações judiciais.

Ao longo de vários meses, grupos díspares da indústria apresentaram 11 ações judiciais contra a Anvisa. Os requerentes incluíam a Associação Nacional das Indústrias de Biscoitos, o lobby dos produtores de milho e uma associação de empresas de chocolates, cacau e balas. Alguns dos processos alegavam que a regulação violava proteções constitucionais que garantiam a liberdade de expressão, enquanto outros afirmavam que não era competência da agência regular as indústrias de alimentos e a propaganda.

Embora aqueles que advogam em benefício da saúde afirmem que o litígio não foi totalmente inesperado, eles foram surpreendidos pela resposta do principal advogado do governo federal, o Advogado-Geral da União Luís Inácio Adams, nomeado pelo presidente da República. Pouco depois que as regras propostas foram oficialmente publicadas em junho de 2010, Adams uniu-se à indústria. Algumas semanas depois, um tribunal federal suspendeu as regulações citando a opinião escrita do advogado, que sugeria que a Anvisa não tinha a autoridade para regular as indústrias alimentícia e publicitária. Adams recusou-se a comentar esta matéria.

Raposo de Mello, ex-presidente da Anvisa, revelou que ficou atônito diante da mudança de orientação de Adams, dado o apoio de longa data do Advogado-Geral à Anvisa. Sete anos depois, com a maioria das 11 ações não solucionada, as regulações permanecem paradas.

“A indústria”, falou de Mello, “deu a volta no sistema”.

Enquanto isso, as indústrias de alimentos e de bebidas tornaram-se mais agressivas em sua tentativa de neutralizar a Anvisa, considerada seu maior adversário.

Em 2010, em meio à batalha contra as regulações propostas pela agência, um grupo de 156 executivos de empresas levou suas queixas à campanha de Dilma Rousseff, que concorria à Presidência.

Marcello Fragano Baird, cientista politico de São Paulo que estudou o lobby da indústria de alimentos contra as regulações nutricionais, contou que Rousseff garantiu aos executivos que iria intervir na Anvisa. “Ela prometeu que ‘limparia a casa’ quando se elegesse”, assegurou ele, acrescentando que soube do encontro por meio de entrevistas com os participantes.

Rousseff venceu a eleição e, logo que tomou posse, substituiu Raposo de Mello por Jaime César de Moura Oliveira, um aliado politico de longa data e ex-advogado da subsidiária brasileira da Unilever.

O porta-voz de Rousseff não aceitou que ela concedesse uma entrevista a respeito.

Em 2012, a Anvisa abrigou uma exposição itinerante de combate à obesidade que ocupou outros edifícios públicos do país.

Intitulada “Emagrece, Brasil”, a exibição exaltava o exercício físico e a moderação como chaves para combater a obesidade, mas minimizava a evidência científica dominante sobre os riscos de consumir muito açúcar, refrigerantes e alimentos processados.

O patrocinador da exposição? A Coca-Cola.

Alimentos irresistíveis, crianças com sobrepeso

Mais de 1600 quilômetros ao sul de Fortaleza, em uma sala de aula pintada com cores vibrantes perto do centro de São Paulo, os efeitos da mudança nos hábitos alimentares são evidentes. A cada dia, mais de cem crianças enchem o local, onde cantam o alfabeto e cochilam em grupo.

Quando foi inaugurada, no começo da década de 1990, a organização não-governamental, tinha uma missão específica: acabar com a desnutrição de crianças de alguns dos bairros mais pobres da cidade.

Hoje, muitas das crianças que frequentam a ONG estão visivelmente rechonchudas e, segundo a equipe de nutricionistas, preocupantemente baixas para a idade, resultado de dietas ricas em sal, gordura e açúcar, porém carentes em alimentos necessários para um desenvolvimento saudável.

Os programas de assistência a crianças incluem crianças de 10 anos com pré-diabetes e níveis de gordura alarmantes no fígado, adolescentes hipertensos e crianças de 3 anos tão malnutridas que têm dificuldade para andar.

“Estão chegando bebês, algo que nunca vimos antes”, revela Giuliano Giovanetti, que faz a divulgação e a comunicação para o centro. “É uma crise para nossa sociedade porque estamos criando uma geração de crianças com comprometimento cognitivo que não atingirão todo seu potencial”.

Cerca de 9% das crianças brasileiras estavam obesas em 2015, um aumento de mais de 270% desde 1980, de acordo com um estudo recente do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde da Universidade de Washington. Isso coloca o país bem próximo dos Estados Unidos, onde 12,7% das crianças tinham obesidade em 2015.

Os números são ainda mais preocupantes nas comunidades atendidas pelo Centro de Recuperação e Educação Nutricional (CREN): em alguns bairros, 30% das crianças têm obesidade e outras 30% sofrem de desnutrição, segundo os dados da organização, que descobriu que 6% das crianças obesas também estão desnutridas.

As taxas crescentes de obesidade estão, em grande parte, associadas à melhora na economia, pois famílias com melhor padrão aquisitivo adotam os alimentos industrializados por sua comodidade, prestígio e sabor.

Pais ocupados, não para de oferecer aos filhos pequenos macarrão instantâneo e nuggets de frango congelados, refeições em geral acompanhadas de refrigerantes. Arroz, feijão, salada e carne grelhada – a base da dieta brasileira tradicional – estão sendo colocados de lado, segundo estudos.

O problema é agravado pela violência galopante nas ruas, que mantém as crianças presas em casa.

“É muito perigoso deixar meus filhos brincarem lá fora, então eles passam todo o tempo livre no sofá, jogando vídeo game e vendo TV”, disse Elaine Pereira dos Santos, 35, mãe de dois filhos de 9 e 4 anos, os dois com sobrepeso.

Isaac, de 9 anos, pesa 62,5 quilos e só consegue vestir roupas feitas para adolescentes. Dos Santos, que trabalha na farmácia de um hospital, encurta as calças para o menino.

Como muitas mães brasileiras, ela ficou contente quando o filho começou a ganhar peso quando pequeno, não muito tempo depois de ele ter provado a primeira batata frita do McDonald’s. “Sempre pensei que bebês deviam ser gordinhos”, explica. Ela satisfez com alegria os hábitos alimentares do filho, que incluíam idas frequentes a restaurantes de fast food e quase nenhuma fruta ou vegetal.


No entanto, quando o menino começou a ter dificuldades para correr e a reclamar de dor nos joelhos, dos Santos percebeu que havia algo errado. “A parte mais difícil é a gozação das outras crianças”, conta. “Quando vamos fazer compras, até os adultos apontam para ele e ficam encarando” ou lhe chamam de gordinho.

Na sala de aula em São Paulo, profissionais da saúde acompanham o desenvolvimento físico e cognitivo das crianças, enquanto nutricionistas ensinam os pais a preparar refeições de baixo custo que incluem arroz, feijão e salada. Para algumas crianças, a cozinha experimental do centro é seu primeiro contato com alimentos como repolhos, ameixas e mangas.

Um dos principais desafios é convencer os pais de que seus filhos estão doentes. “Diferentemente do câncer ou outras doenças, esse problema não é visível”, explica Juliana Dellare Calia, 42, nutricionista da organização.

Embora membros da equipe afirmem que o programa tenha feito avanços significativos ao mudar a maneira como as famílias se alimentam, muitas crianças, no entanto, enfrentarão uma batalha contra a obesidade pelo resto da vida. Isso porque pesquisas sugerem que a desnutrição na infância pode levar a alterações metabólicas permanentes que reprogramam o organismo de forma que ele passa a transformar o excesso de calorias em gordura corporal com mais facilidade.

“É a resposta do corpo ao que ele entende como fome”, explica Dellare Calia.

O dinheiro fala mais alto

Mesmo que os especialistas em nutrição lamentem a crescente crise de obesidade, bem como os riscos potenciais de longo prazo, um aspecto da revolução dos alimentos processados no Brasil é inegável: a expansão da indústria beneficia pessoas de vários níveis sociais. A Nestlé, que afirma empregar 21 mil pessoas no país, começou há dois anos um programa de estágio que ofereceu treinamento para 7 mil pessoas com menos de 30 anos.

Perto da base da cadeia alimentar encontra-se da Silva, a vendedora de Fortaleza, que se sente otimista quanto ao futuro, apesar de seus crescentes problemas de saúde. A vida tem sido uma luta desde que deixou a escola aos 14 anos, quando engravidou da primeira filha. Agora ela quer arrumar o dente cuja falta lhe estraga o sorriso hesitante e comprar uma casa mais apropriada, uma que não tenha goteiras quando chove forte.

Ela agradece à Nestlé.

“Pela primeira vez na vida, tenho esperança e me sinto independente”, diz.

Está ciente da relação entre a dieta e seus problemas de saúde persistentes, mas insiste em que os filhos estão bem nutridos, enquanto aponta para os produtos da Nestlé em sua sala de estar. Ser uma vendedora da Nestlé tem outra vantagem: os biscoitos, chocolates e sobremesas que muitas vezes sustentam sua família são comprados por atacado.

Com uma lista crescente de clientes, Da Silva concentra-se em outro objetivo que visa a aumentar ainda mais o negócio.

“Quero comprar uma geladeira maior”.

Paula Moura contribuiu com reportagem em Fortaleza e São Paulo, Brasil.

Encaminhado por Amyra El Khalili - Aliança RECOs

The New York Times

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