domingo, 19 de maio de 2019

Chico Mendes vive na luta anticapitalista e antifascista! (que é uma luta só)


Chico Mendes vive na luta anticapitalista e antifascista!  (que é uma luta só)[i]

Michael F. Schmidlehner[ii]

Acesse a revista Trinta anos pós assassinato de Chico Mendes e destruição oculta de florestas e vidas no Acre  Clicando aqui e confira este e outros artigos)

O que queremos realmente dizer, quando afirmamos que “Chico Mendes vive”? A frase expressa a ideia de que as pessoas que tiraram a vida dele não conseguiram destruir seus ideais, e que estes ideais continuam sendo defendidos hoje. Mas eis a pergunta: quais seriam estes ideais e quem poderia ser considerado defensor do legado de Chico Mendes? Um texto do jornal Empate de 2003 (cit,in MORAIS 2012, p.26), mostra o quanto esta questão é controversa e polemica:

Os princípios que projetaram as lutas dos trabalhadores rurais acreanos e lançaram seu representante maior no cenário internacional foram abandonados em troca de um enganoso projeto de ‘desenvolvimento estadual’ com ‘sustentabilidade’. Os inimigos de Chico Mendes o eliminaram fisicamente. Os que se diziam seus amigos e aliados que, hoje, vivem e acumulam cargos e benefícios à custa de sua memória, tratam de eliminar seus sonhos, seus projetos, sua herança, seus princípios de não mercantilizar a floresta.

Analisando a apropriação e ressignificação dos ‘sonhos e ideais’ de Chico Mendes pelo Governo da Frente Popular do Acre – FPA, Maria de Jesus Morais (2012) mostra como este governo criou um discurso da identidade acreana ao associar a luta dos seringueiros com seu modelo de “desenvolvimento sustentável”. Aspectos mais radicais ou polêmicos do pensamento de Chico Mendes foram sistematicamente omitidos nesta narrativa governamental. Criava-se assim uma espécie de “Chico Mendes light”, que servia perfeitamente como produto promocional para inserir as florestas do Acre no emergente mercado global das “soluções” ambientais e climáticas – manejo madeireiro “sustentável”, carbono florestal, serviços ambientais – e atrair financiamentos de bancos e agências de desenvolvimento internacionais.

Voltando à pergunta inicial, que queremos dizer com “Chico Mendes vive” devemos ter em mente duas coisas. Primeiro: ao proclamar que Chico Mendes vive, situamo-nos inevitavelmente na esfera da interpretação. O homem não está mais fisicamente aqui para nos contradizer ou dar razão. Ninguém pode ser único ou “legitimo” articulador de seu legado na atualidade. O grau de legitimidade da nossa interpretação vai depender de quanto ela é referenciada nas ações e palavras da pessoa histórica de Chico Mendes. Segundo: as ações e as palavras de Chico Mendes têm que ser interpretadas como sua reação – a aplicação de seus ideais – à uma determinada situação histórica e política. Em outro momento histórico estes mesmos ideais tinham e terão que se expressar de outra forma. Enquanto Chico Mendes estava vivo, sua luta era contra a espoliação da Amazônia pelos fazendeiros. Diante a mercantilização da floresta em seu nome, os ideais de Chico Mendes foram – em nossa interpretação – defendidos pelos dissidentes deste projeto (como por exemplo o autor do artigo do Jornal Empate citado acima). Em reação à nova conjuntura política do Brasil a partir de 2019, a luta em nome de Chico Mendes terá que se reformular novamente.
Entendemos que Chico Mendes tinha forte espirito comunitário e não queria ser “advogado” dos povos da floresta no sentido de falar por eles. O apelo dele hoje provavelmente seria para não nos fixarmos demais em sua pessoa ou idolatrá-lo. Honrar o legado de Chico Mendes significa também usar nossa própria capacidade crítica e criatividade para levar a luta adiante. Neste sentido propomos, para fins deste ensaio, a seguinte resposta: “Chico Mendes vive” quer dizer que a luta da qual ele se tornou símbolo se renova e aprofunda na medida em que a realidade sociopolítica a qual ela precisa reagir muda.

Legado anticapitalista

Para hoje fazer referência aos ideais de Chico Mendes é preciso resgatar aqueles aspectos do seu pensamento que foram omitidos ou suprimidos na versão oficial das últimas duas décadas. Neste contexto precisa ser lembrado Euclides Fernandes Távora que é a pessoa que provavelmente mais contribuiu com a formação do pensamento de Chico Mendes.  Euclides era um militante do Partido Comunista Brasileiro que havia se refugiado na floresta acreana. Elder Andrade de Paula e Silvio Simione da Silva (2012, p.105) resumem a importância de Euclides na vida de Chico Mendes assim:

Com as ferramentas ofertadas por Euclides Távora, Chico Mendes não só aprendeu a ler e escrever. Apreendeu, sobretudo, a paixão pelas ideias revolucionárias de seu “velho amigo e instrutor” (forma respeitosa com que se referia a Euclides) e ao seu modo, um método de análise da realidade que orientou sua trajetória política e o projetou para reescrever a História da luta de resistência de uma parcela dos segmentos sociais subalternos na Amazônia brasileira.


Os ideais comunistas de Chico Mendes e sua clara ideia de luta social estão evidentes em seus textos, por exemplo, quando ele escreve em sua Carta ao Jovem do Futuro sobre a revolução socialista mundial que “unificou todos os povos do planeta num só ideal e num só pensamento de unidade socialista”. Outro exemplo é a forma como ele se refere ao Banco Interamericano - BID, (banco este, inclusive que no Governo da FPA ia se tornar o primeiro grande financiador do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Estado do Acre - PDSA), usando estas palavras: “Com isso, a ONU e as entidades ambientalistas americanas nos convidaram para participar de uma reunião do BID em Miami, em março de 1987. Eu fui, sabendo que estava em terreno inimigo.” (CUT/CNS 1988). A luta pela humanidade da qual Chico Mendes fala não é ambientalista, mas antes de tudo anti-capitalista.

Dois discursos - um só sistema de espoliação

Em 28 de outubro 2018 um novo presidente foi eleito no Brasil. A mudança no cenário político brasileiro, que está em curso desde 2016, se insere naquilo que críticos chamam “surto fascista”, fenômeno com que atualmente se deparam diversos países, onde políticas de extrema direita ganham espaço com um discurso de perseguição de minorias. No Brasil, além desta perseguição, espera-se nos próximos anos uma acelerada destruição da Amazônia.
As novas tendências fascistas, antes de tudo, têm que ser entendidas como consequência de décadas de globalização neoliberal, que criou um clima de insegurança e precarização e uma profunda frustração diante as múltiplas crises que ela criou e para a quais ela não tem resposta credível. A atual viragem a direita que na superfície parece “dar um basta”, romper com o sistema anterior, de fato – e isso pretendemos mostrar neste texto – conserva em grande parte existentes estruturas econômicas e de poder.
Nossa avaliação da atual conjuntura coincide com a tese formulada na década de 1930 por Georgi Dimitroff, que explica fascismo e "democracia burguesa" como duas formas diferentes do capitalismo. Neste sentido, a situação do Brasil hoje é em determinados aspectos comparável com aquela no início da década de 1920 na Itália ou aquela durante a Grande Depressão na Alemanha, quando a democracia burguesa foi transformada numa ditadura fascista, que manteve a exploração capitalista, mesmo com os meios mais brutais. Segundo Dimitrov (1938, p. 2, tradução nossa) fascismo é “ditadura abertamente terrorista dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas, e mais imperialistas do capital financeiro. ”
Podemos dizer que o sistema capitalista, em termos ideológicos, possui um caráter “camaleônico”, com dois principais discursos oscilando na sua superfície, que no contexto das atuais crises neoliberais se apresentam assim:
·        O primeiro discurso é de um suposto “consenso”, socialmente “inclusivo” e “politicamente correto”, reconhecendo parcialmente a existência de uma crise global e apresentando as políticas capitalistas – cujas consequências violentas e destrutivas ele oculta –  como “soluções”, através das quais “todos ganham”. Este discurso legitima mecanismos hegemônicos (menos violentos) de dominação. Ele pode ser chamado o discurso das falsas soluções.
·        O segundo discurso opera a partir da construção de um inimigo que possa ser excluído e abertamente perseguido. A crise global é basicamente negada e a “crise nacional’ simplesmente atribuída à atuação deste inimigo, dando-se a solução através da sua (política, cultural ou física) eliminação. Este discurso legitima mecanismos coercitivos (mais violentos) de dominação.  Ele pode ser chamado o discurso da negação.

Nas próximas páginas pretendemos mostrar, no contexto da Amazônia brasileira, que estes dois discursos se complementam e como – enquanto eles alternam e se sobrepõem – a espoliação continua e seus mecanismos econômicos em grande parte não mudam.

Exploração madeireira “sustentável”

O discurso das falsas soluções na esfera ambiental e climática foi idealizado inicialmente no âmbito do Banco Mundial e da ONU e consolidado nas grandes convenções que foram assinados na Eco-92. Consagrando o conceito de “desenvolvimento sustentável”, estes tratados preconizaram preservação do ambiente e do equilíbrio climático sem questionar o principal paradoxo do desenvolvimento capitalista: seu paradigma de crescimento económico ilimitado diante da limitação dos recursos naturais.
O Governo da FPA, como descrevemos no início do texto, reproduziu o novo discurso em nível local. No centro do desenvolvimento sustentável configuraram inicialmente os projetos de manejo madeireiro. O discurso apresenta estes projetos como inclusivos e participativos, denominando-os “manejo florestal comunitário sustentável”, enquanto os impactos violentos estão sendo sistematicamente ocultados. O relatório da Plataforma DhESCA de 2014 – veementemente desmentido pelo Governo da FPA – revela alguns aspectos deste “lado escuro” do manejo madeireiro, resumindo as queixas das comunidades afetadas, como por exemplo: “diminuição do território disponível para a realização de atividades tradicionais e de subsistência, [...] fuga de animais de caça, [...]  ‘Invasão’ de pessoas de fora das comunidades trazidas pelas madeireiras [...] exploração sexual de mulheres e meninas” (FAUSTINO; FURTADO, 2014, p.18)
O corte raso da floresta e a violenta expulsão de seus moradores que ocorreram em décadas anteriores seguindo o lema “integrar para não entregar”, foram trocados por uma matança silenciosa da vida do seringueiro. A proposta da Reserva Extrativista – originalmente do movimento seringueiro – foi desvirtuada e sucessivamente transformada em negócio pelas grandes ONGs e as madeireiras.

Dominação via Carbono

A relação de tutela que o Governo e as ONGs criaram com as comunidades rurais no Acre ao implementar os projetos madeireiros facilitou, predominantemente na década de 2010, a introdução dos programas para Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal – REDD e Pagamentos por Serviços Ambientais – PSA. Em 2012 o Governo criou por meio da Lei estadual 2.308 de 2010 (conhecida como lei SISA) e de um acordo com o estado da Califórnia (EUA) a base para um mercado regulado de Carbono e, com esta política, atraiu recursos do Fundo Amazônia (dinheiro principalmente da Noruega e da Petrobras), da Alemanha e recentemente do Reino Unido. Os países industrializados e os exploradores de combustíveis fósseis (A Noruega é um dos principais produtores mundiais de petróleo e gás) tem grande interesse em – através da compra de carbono florestal – “compensar” as emissões causadas por suas atividades, ou seja, “pagar para poluir”.
O discurso que enfatizava a vocação florestal do Acre e a previsão de poder vender créditos de carbono para Califórnia serviram como convite para os diversos empreendimentos de REDD privado que até hoje se instalaram no estado. Olhando de perto para alguns destes projetos, REDD revela-se como um poderoso novo mecanismo de espoliação da Amazônia que – mesmo utilizando a nova roupagem discursiva – conserva e reafirma antigas estruturas de dominação.   
A empresa estadunidense Carbon Co. LLC em parceria com a empresa Freitas International Group, LLC (nome de fantasia Carbon Securities) efetivou desde 2012 quatro projetos REDD no Acre: Purus, Russas, Valparaíso e Envira. As áreas onde estes projetos foram implantados são antigos seringais. Os parceiros locais da Carbon Co. que alegam ser proprietários destas florestas são em parte descendentes dos antigos seringalistas ou empresários que “compraram” as terras dos mesmos. Nestas áreas há históricos de conflitos de longa duração entre as comunidades – ex-seringueiros, ribeirinhos, pequenos produtores – e os supostos proprietários. Gerson Albuquerque (2012) descreve alguns destes conflitos no antigo seringal Valparaíso, e como as arcaicas relações de trabalho lá sobrevivem até hoje. Em entrevistas realizadas na década de 1990, moradores da área descrevem a relação com o atual “proprietário” da área, Manoel Batista Lopes:

Moro há 53 anos lá. Ele, lá no seringal, mata nossos porco, nossos cachorro. Primeiro ele mandava os capanga matá. A gente tinha que assiná um contrato prá prantá e só podia prantá pouco, na capoêra, num podia desmatá. Quem pescá no lago tem que dividi cum ele, se não dé ele diz que vai dá parte na justiça. (ALBUQUERQUE 2012, p. 18).

O violento regime de dominação que perdura nas florestas acreanas desde o primeiro surto da borracha não só não mudou com a nova economia florestal promovida pelo Governo da FPA, mas reafirmou-se na lógica dos projetos REDD. A proibição das atividades de subsistência que antes objetivava a maximização da produção de borracha, hoje serve para maximizar a estocagem de carbono na biomassa. O que mudou drasticamente com o novo modo de produção é o discurso. Agora encontram-se placas do projeto REDD nas colocações da área exibindo – ao lado das proibições do projeto – a frase: “A comunidade é parceira”.

Na mesma linha “eufemística”, as descrições oficiais dos projetos da Carbon Co. no Acre, enfatizam aspectos como participação, transparência e repartição de benefícios com a comunidade.  No documento descritivo do projeto Envira (MCFARELAND 2015, p.42) lemos por exemplo que eventuais queixas por parte da comunidade seriam atendidas pela empresa do promotor local do projeto, Duarte José de Couto Neto. Esta empresa seria ao mesmo tempo proprietária da área, ou seja, para os moradores Duarte de fato representa o “patrão”. O nível de participação e transparência que pode ser esperado do “atendimento” por este empreendedor ambientalista pode ser deduzida de suas declarações públicas, nas quais afirma entre outros ter “saudade, e muita do regime militar” (cit. in KILL, 2018).
Por meio do carbono como novo produto, implementa-se um novo modo de produção nas florestas, assentado nas antigas relações de dominação capitalista criadas pelos seringalistas. Para vender este produto – projetado para salvar o mundo da catástrofe climática –, o discurso que o promove precisa ofuscar as reais relações da sua produção. Neste sentido, a vinculação com o “legado” de Chico Mendes é um elemento essencial para a promoção dos projetos REDD. Na página de venda online da Carbon Securities (na versão em inglês) consta:

Hoje, a Carbon Securities firmou parceria com a Fundação Chico Mendes, gerida e operada por Ilzamar Mendes e Elenira Mendes, esposa e filha de Chico Mendes. Temos o prazer de manter vivo o espírito e a iniciativa de Chico Mendes e estaremos sempre lutando para salvar a floresta tropical juntos. (CARBON SECURITIES 2018, tradução nossa)

REDD: a ameaça vira ”oportunidade”
Surge a questão sobre o futuro dos projetos do tipo REDD no novo cenário político no Acre e no Brasil a partir de 2019. As esperadas políticas de eliminação do – como diz o presidente eleito – “ativismo xiita ambiental” e a reduzida fiscalização ambiental vão afetá-los ou inviabilizá-los? Seguindo nossa tese que o discurso das falsas soluções e o discurso da negação se complementam em uma só lógica de espoliação capitalista, esta mudança não pode afetá-los fortemente. Sem alongar especulações sobre o futuro, podemos mencionar duas circunstâncias que apontam para a persistência destes projetos.
Primeiro: projetos privados de REDD, como aqueles da Carbon Co. por enquanto vendem certificados apenas no mercado voluntário. Para isso eles não dependem de uma base jurisdicional específica. Mesmo se, com o fim do Governo da FPA, as transações com Califórnia não se realizem, estes projetos podem continuar vendendo seus créditos para empresas ou pessoas físicas no mundo inteiro que desejam diminuir ou apagar sua “pegada de carbono”. Entre 2016 e 2017, o projeto Envira vendeu créditos no valor de pelo menos 750.000 toneladas de carbono. (KILL 2018) No site da Carbon Securities (2018) pessoas podem comprar tais créditos online por dez dólares por tonelada. Baseado neste preço, o valor de mercado do carbono vendido pelo projeto Envira em dois anos totalizaria mais que 7,5 milhões de dólares.
Projetos privados de REDD teoricamente podem se tornar ainda mais lucrativos num cenário geral de desmatamento aumentado, uma vez que podem reivindicar mais “adicionalidade”. Que significa isto? Na medida em que um empreendedor REDD pode argumentar que a floresta que seu projeto supostamente preserva esteja ameaçada, este seu projeto vale mais redução de carbono em comparação com um cenário sem projeto. Na paradoxal logica da adicionalidade, a ameaça de desmatamento ou degradação florestal acaba “valorizando” o carbono florestal e transformando a ameaça em oportunidade de negócio.
Segundo: mesmo que algumas declarações do novo presidente eleito apontam para uma possível saída do Brasil do acordo de Paris, há indícios que isto não ocorra. A permanência do Brasil, com a consequente concretização de uma política nacional de REDD compensa economicamente. Um analista da revista Forbes argumenta neste sentido:

Os europeus fazem questão de destacar para Bolsonaro e para os poderosos interesses agrícolas que o apoiam, que o Brasil é um dos maiores beneficiários de ser signatário do Acordo de Paris. Como o país está na vanguarda da vulnerabilidade às mudanças climáticas e da capacidade de combatê-lo, ele recebe milhões em subsídios como parte do regime de Paris que desapareceria se abandonasse o acordo. (KAETING 2018, tradução nossa)

Para sustentar seu vício em combustíveis fosseis, os países industrializados necessitam o pretexto de “compensar” suas emissões.  Para o Brasil, por sua vez, esta dependência apresenta uma oportunidade de fazer um jogo duplo de ameaça e proteção da Amazônia, barganhando-a como “sumidouro de carbono”.

Sinergias com o agronegócio: o novo Código Florestal

O texto acima citado menciona os “poderosos interesses agrícolas” que apoiam o novo presidente do Brasil. Por que projetos “ambientalistas” como REDD e PSA seriam no interesse do agronegócio? Dois anos depois da criação da Lei SISA, o então senador Jorge Viana foi relator do novo Código Florestal (Lei nº12.651 de maio de 2012). Esta lei, marca a mudança de uma política exclusivamente de restauração para uma política com amplas possibilidades de compensação de desmatamentos. A Cota Rural Ambiental (CRA) é a peça central neste sistema de compensação, uma vez que pode ser usada para cumprir a obrigação de Reserva Legal em outra propriedade, ou seja, o proprietário que desmatou além do permitido, por exemplo um sojeiro da Amazônia mato-grossense, pode compensar essa dívida através de CRAs de outro local, dentro do mesmo bioma, seja em Mato Grosso ou, por exemplo, do Acre. O Novo Código Florestal, em seu artigo 41 inclusive autoriza e incentiva a “cumulação” de diversos tipos de compensações, quando autoriza o Poder Executivo a instituir programas para “pagamento ou incentivo a serviços ambientais [...] isolada ou cumulativamente” (grifos nossos), listando os sete serviços ambientais que haviam sido definidos em 2010 na Lei SISA e acrescentando como oitavo item “a manutenção de Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito”.
O relatório “Preparando a implementação da Cota de Reserva Ambiental em Mato Grosso” explica este “uso cumulativo” dos diversos serviços ambientais a partir da CRA pelos latifundiários do estado:

Além disso, a CRA sendo um atestado da existência de uma área florestal conservada, ela pode ser usada para outros fins e em outros mercados além da compensação de passivos de reserva legal: por exemplo, pode ajudar a viabilizar mecanismos de Redução de Emissões do Desmatamento e Degradação Florestal (REDD), estabelecendo um título conversível em toneladas de carbono; ou ainda, pode servir em ações de responsabilidade ambiental de empresas, como um “vale-floresta”, etc. Poderia também ser usada em pagamento da compensação ambiental de empreendimentos hidrelétricos, conversão de multas de impactos ambientais como derramamento de petróleo, dentre outros. (sem prejuízo da responsabilidade de remediação dos danos). (ICV 2013, p.9)

Neste sentido, a então Senadora e presidenta Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Katia Abreu comenta que sua organização procura “fundos e corporações que querem compensar suas emissões com a redução das emissões dos agricultores brasileiros” (cit, in CARDOSO 2012).
O novo Código Florestal cria fortes sinergias entre dois poderosos mecanismos de acumulação de capital no Brasil: o do agronegócio e o do carbono. Além disso, ele oferece para as agro-oligarquias – até então “anti-ambientalistas” que reproduziram o discurso da negação – a possibilidade de se apresentarem como protetores da Amazônia. Ou seja, de se apropriarem do discurso das falsas soluções. Nas palavras de Jorge Viana sobre o novo Código Florestal esta função fica clara: "Quando o meio ambiente ganha, ganha o agronegócio, ganha a produção, ganha a economia". (SENADO FEDERAL 2011)

“Limpando o ar” para as multinacionais

Não são apenas os latifundiários que ganham com o agronegócio. Alimentando o crescente vício do mundo industrializado em carne e biocombustíveis, a produção das commodities agrícolas (como soja, cana de açúcar, milho) por sua vez é viciada no uso de produtos de empresas multinacionais, tais como sementes (patenteadas ou transgênicas) e agrotóxicos. Nos últimos três anos houve forte concentração corporativa neste ramo. Atualmente, os quatro “gigantes” do agronegócio mundial são: Corteva Agriscience (resultante da fusão de Dow com Dupont em 2015), Chem China (que comprou Syngenta em 2017), Bayer (que comprou Monsanto em 2018) e BASF.
Para nossa análise, Bayer – agora a maior corporação agrícola do mundo – e BASF merecem especial atenção. Após a compra da empresa americana Monsanto pela Bayer por cerca de US$ 66 bilhões, a BASF – por exigência das autoridades de defesa da concorrência – adquiriu ativos da Bayer no valor de cerca de US$ 7,24 bilhões. Com isto, estas duas multinacionais alemãs assumem uma posição dominante no agronegócio brasileiro. Combinadas, as vendas de Bayer e Monsanto no Brasil somam R$ 15 bilhões anuais (PORTALDOAGRONEGOCIO. 2018). Ao mesmo tempo, por serem fortes componentes da economia exportadora alemã, Bayer e BASF vêm participando em diversas iniciativas juntas com o governo daquele país. Estes programas, como por exemplo German Food Partnership (GFP, Parceria Alimentar Alemã), fóruns para “soja responsável” e “óleo de palma responsável” frequentemente são criticadas por organizações da sociedade civil, que veem nelas uma “lavagem verde” para as insustentáveis práticas do agronegócio. O apoio à implementação do novo Código Florestal pelo Governo Alemão é igualmente consistente com seu interesse na expansão do agronegócio no Brasil. Entre 2014 e 2020, o Ministério para Cooperação e Desenvolvimento da Alemanha (BMZ) apoiou a operacionalização do CAR com 5,5 milhões de Euro. (GIZ 2017)
Mas, sobretudo temos que mencionar neste contexto a recente implantação do programa alemão REDD Early Movers no estado de Mato Grosso (para mais informação sobre este programa, leia o artigo de Jutta Kill nesta revista). Por que a Alemanha quer “premiar” por sua política climática justamente aquele estado Brasileiro, que desde décadas é considerado o líder em desmatamento e o berço do agronegócio brasileiro?
O período em que o acordo para financiar REM em Mato Grosso foi fechado (final 2017) coincide com a consolidação da compra de Monsanto pela Bayer. Neste momento já se sabia que a Bayer terá que lidar com as grandes polêmicas em torno dos produtos agrotóxicos que assumiria da Monsanto. No foco desta polêmica internacional estão os herbicidas da linha Roundup com o princípio ativo glifosato, que segundo estudos independentes é considerado possivelmente cancerígeno. O presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja-MT) comenta sobre este veneno: “Sem glifosato não tem safra no Brasil” e “Hoje produtor não sabe mais plantar de outra forma a não ser esta” (ESTADÂO 2018). A função de “lavagem verde” pelo programa REM – isto é a tentativa de com ele encobrir os impactos violentos do agronegócio por meio do discurso das falsas soluções – fica evidente a partir deste momento.
Olhar para o histórico das duas corporações alemães nos permite entender ainda melhor certas dinâmicas discursivas. Na época do regime nacional-socialista alemão, Bayer e BASF faziam parte de uma só empresa aglomerada, chamada IG Farben. A IG Farben foi responsável pela produção do gás venenoso Zyklon B que foi usado para assassinar milhões de pessoas nos campos de extermínio. A mão de obra da empresa era em grande parte trabalho forçado, incluindo 8000 internos dos campos de concentração. A estreita cooperação com o Governo nazista levou a um quintuplicar dos lucros líquidos da IG Farben entre 1933 e 1943. (HAYES 1987, p.124)
Hoje, a Bayer diz “contribuir para a formação e o bem-estar da sociedade, além de [desenvolver] ações de preservação do meio ambiente.” e BASF assegura criar “química para um futuro sustentável”. Como tal “conversão” pode ser explicada? Insistimos que as corporações capitalistas não possuem ideologia ou filosofia. Elas obedecem unicamente ao imperativo da acumulação de capital. O caráter inexorável da progressão desta lógica encontra sua simples expressão no título da revista mensal da IG Farben de maio 1938: "De fábrica para fábrica".

Empresas como Bayer e BASF, seguindo a dinâmica camaleônica do sistema capitalista, constantemente adaptam seu discurso para conciliar seus mecanismos de acumulação com a moral da época. Esta dinâmica acaba conservando estruturas de poder: o discurso muda justamente para que as relações de poder não mudem. Desta forma, as estruturas coloniais e imperiais vêm se reafirmando ao longo dos séculos.

Concluindo

A intensificação do desmatamento e dos atos de violência contra os povos da floresta que se iniciam com a nova presidência e seu discurso da negação desafia a sociedade civil para adotar formas mais diretas de resistência. Porém, o perigo neste momento é que o discurso das falsas soluções possa se fortalecer diante da ameaça, apresentando-se como “única alternativa” para lidar com a crise. Não devemos cair neste engano. Os movimentos sociais precisam reconhecer que os dois discursos se complementam e juntos promovem a espoliação capitalista da Amazônia
Na medida em que o capitalismo extingue vida na terra, a luta da esquerda se tornará uma luta ecológica. Uma ecologia política – isto é uma abordagem que reconhece a dimensão essencialmente política da questão ambiental – inspirada na luta anticapitalista do movimento dos povos da floresta e Chico Mendes pode nortear a esperada reformulação da esquerda no Brasil pós-2018. As palavras que Euclides Távora dirigiu a Chico Mendes em 1964, parecem valer novamente para nós hoje: “[...] por maior que seja o massacre, sempre existirá uma semente que renascerá e aí você terá que entrar, mesmo que seja daqui a oito, dez anos.” (CUT/CNS 1998) Só que hoje a acelerada destruição da base da vida pelo capitalismo não nos permite mais esperar muito.


Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE, Gerson Rodrigues. Cultura, Trabalho e Lutas Sociais entre Trabalhadores Agro-Extrativistas do Rio Valparaíso na Amazônia acreana. Revista Nera, n. 5, p. 13-33, 2012.
CARBON SECURITIES. Who we are. Website da empresa Freitas International Group, LLC. Disponível em: http://www.carbonsecurities.org/about.html. Acesso 06 de novembro 2018.
CARDOSO, Alessandra, Novo Código Florestal: arquitetura institucional e financeira para o "agronegócio verde" Publicado em 15/06/2012. Disponível em: http://www.inesc.org.br/noticias/noticias-do-inesc/2012/junho/novo-codigo-florestal-arquitetura-institucional-e-financeira-para-o-agronegocio-verde. Acesso 07/11/2018
CUT/CNS. Entrevista com Chico Mendes: “A defesa da Vida” realizada durante o 3º Congresso Nacional da CUT, em Revista Chico Mendes 9/9/98
DIMITROV, Georgi. The United Front: The Struggle Against Fascism and War. London: Lawrence and Wishart, 1938.
ESTADÂO (2018). Agronegócio diz que, sem herbicida alvo de polêmica com Monsanto, não há safra no Brasil. Disponível em:  https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,agronegocio-diz-que-sem-herbicida-alvo-de-polemica-da-monsanto-nao-ha-safra-no-brasil,70002453992. Acesso 16/08/2018
FAUSTINO, Cristiane; FURTADO, Fabrina. Economia verde, povos da floresta e territórios: violações de direitos no estado do Acre. Relatório de Missão de Investigação e Incidência. 2014.
GIZ. CAR – Ländliches Umweltregister in Amazonien. Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH, November 2017. Disponível em:  https://www.giz.de/de/downloads/CAR%20-%20L%C3%A4ndliches%20Umweltregister%20final.pdf  Acesso 03/09/2018
HAYES, Peter. Industrie und Ideologie: Die IG Farben in der Zeit des Nationalsozialismus. Zeitschrift für Unternehmensgeschichte, 1987, 32. Jg., Nr. 2, S. 124-136.
ICV (2013) Instituto Centro de Vida: Relatório da oficina técnica: Preparando a implementação da Cota de reserva Ambiental em Mato Grosso, Cuiabá-MT 2013. Disponível em:  https://www.icv.org.br/wp-content/uploads/2013/08/Apresenta%C3%A7%C3%A3o-CRA.pdf  Acesso em 05/08/2018.
KEATING, Dave. The Paris Climate Agreement Survived Trump. Can It Survive Brazil's Bolsonaro?. Forbes online. Oct 24, 2018. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/davekeating/2018/10/24/the-paris-climate-agreement-survived-trump-can-it-survive-brazils-bolsonaro/#38e996736435. Acesso 07 de novembro 2018
KILL, Jutta. Projeto Envira REDD+, no Acre, Brasil: certificadoras de carbono atribuem Nível Ouro a promessas vazias, Boletim WRM n. 237, Abril - Maio 2018
MACFARLAND, Brian. O Projeto Envira Amazônia - um Projeto de Conservação de Florestas Tropicais no Acre, Brasil, Carbon Co LLC 2015
MORAIS, Maria de Jesus. Usos e abusos da imagem de Chico Mendes na legitimação da “economia verde”. Dossiê Acre. Brasilia: CIMI, p. 21-26, 2012
PAULA, Elder Andrade; DA SILVA, Silvio Simione. Movimentos sociais na Amazônia brasileira: vinte anos sem Chico Mendes. Revista Nera, n. 13, p. 102-117, 2012.
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SENADO FEDERAL.  Jorge Viana: Código Florestal deve tratar floresta também como ativo econômico. 08/06/2011. Disponível em https://www12.senado.leg.br/codigoflorestal/news/jorge-viana-codigo-florestal-deve-tratar-floresta-tambem-como-ativo-economico Acesso 08/09/


[i] Artigo pulicado originalmente na revista Trinta anos pós assassinato de Chico Mendes e destruição oculta de florestas e vidas no Acre, em dezembro 2018
[ii] Michael Franz Schmidlehner, formado como mestre em filosofia na Universidade de Viena, nativo da Áustria e brasileiro naturalizado, é pesquisador e professor de filosofia.

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