Habermas
e o Mundo da Vida
Lindomar Dias
Padilha[1]
Aqui a ideia central é apontar relações nem sempre
cordiais muito menos idênticas entre o mundo da vida em Husserl e Habermas.
Em
Habermas, o mundo da vida, por sua natureza de compreensão mesma, relaciona-se
com o direito por interferências entre um e outro. Ainda que o direito, neste
caso específico, não seja o tema central, temos que apontar que o direito é
tido, ora como um meio de controle e organização dos sistemas do Estado e da
economia, ora como instituição. E, a partir do momento que o direito como meio
amplia sua função reguladora no mundo da vida, ele exerce a “colonização do
mundo da vida”. “[…] invade destrutivamente o mundo da
vida, perturbando lhe os processos de reprodução e, assim, ameaçando a
manutenção dos seus componentes” (NEVES, 2006, p. 75).
Foi o filósofo Edmund Husserl que, segundo MIRANDA (2009,
p. 102, apud, Pizzi,p.29), primeiro
adotou o termo “mundo da Vida” em contraposição ao positivismo sociológico dos
sec. XIX e início do XX. Nota-se em Husserl que o Mundo da Vida é uma tentativa
de compreender as situações que norteiam a conduta humana que rompe com uma
postura, digamos, natural. Assim, o mundo da vida em Husserl está diretamente
ligado à cultura, ao mundo circunstancial e, digamos, independente da ciência
ou pré-científica.
Mas a análise, com enfoque na fenomenologia do mundo da
vida em Husserl, seria realmente a mesma base, por assim dizer, em Habermas?
Não vou me deter aqui no método de
Husserl, nem no contexto que cerca a introdução de seu conceito “mundo da
vida”; eu me aproprio do conteúdo
material dessas pesquisas, estribando-me na ideia de que também o agir comunicativo está embutido
num mundo da vida, responsável pela absorção dos riscos e pela proteção da
retaguarda de um consenso de fundo. (HABERMAS, 2002 p.
86, grifo nosso).
De
fato, nos parece neste texto que Habermas, ainda que considerando e sendo
intelectualmente honesto com tal conceito, sua preocupação e intenção é, antes,
se valer do conceito direto sem considerar o momento e contexto em que Husserl
o concebe. Daí falar em apropriação do conceito material. Ou seja, se de um
lado, o mundo da vida em Hussel não seja tal e qual o concebe Habermas, é na
realidade inserida culturalmente que ele se faz notar em ambos os casos. Por
isso, a afirmação de que o agir comunicativo também está embutido “num” mundo
da vida, onde “conteúdo material” sejam convicções comuns, familiares e
culturais e interações linguísticas.
Entretanto,
Habermas, ainda que se valendo do conceito de mundo da vida, se distancia de
Husserl. Um ponto importante neste distanciamento é que o autor entende que a
posição husserliana ainda se propõe a atuar numa filosofia da consciência em
que o sujeito individualmente é responsável pelo conhecimento do mundo da vida
e ainda se coloca, como o eu, sendo parte deste mesmo mundo conhecido. Neste
caso, Habermas adota a filosofia da linguagem onde os conhecimentos dos
indivíduos são construídos intersubjetivamente.
O
autor não visualiza
como desejável uma completa racionalização do mundo da vida, isto é, uma
completa problematização de todos os conteúdos do mundo da vida e sua completa
substituição por consensos reflexivos, ele entende que o processo de
racionalização não acontece por ato de simples decisão racional.
A
teoria do agir comunicativo destranscendentaliza o reino do inteligível a
partir do momento em que descobre a força idea-lizadora da antecipação nos
pressupostos pragmáticos inevitá-veis dos atos de fala, portanto, no coração da
própria prática de entendimento […] A idéia do resgate de pretensões de validez
criticáveis impõe idealizações, as quais, caídas do céu transcen-dental para o
chão do mundo da vida, desenvolvem seus efeitos no meio da linguagem natural.
(HABERMAS, 2002, p. 89)
Se
o eu só é conhecido por meio de uma interação intersubjetiva, o mundo da vida
só poderá ser conhecido na relação também intersubjetiva dos sujeitos de uma
mesma comunidade linguística. Decorre daí, outro distanciamento onde Habermas
diz que Husserl utiliza “mundo da vida” como oposto às idealizações feitas nas
ciências sociais. Assim, “Husserl conclama o mundo da vida como a esfera
imediatamente presente de realizações originárias” (HABERMAS, 2002, p. 88). O
agir comunicativamente, então, se apoiaria, segundo o autor, também em
pressupostos idealizadores. Ou seja, há por consequência do próprio agir
comunicativo e a intersubjetividade no mundo da vida, uma estrutura
transcendental.
O
mundo da vida ocupa uma posição de destaque na obra do autor por se constituir
como pano de fundo do agir comunicativo. A função mesma do mundo da vida é, ao
mesmo tempo permitir que se formem consensos mas, se manter aberta às
problematizações e ao risco de dissensos profundos. Tais dissensos, quando
houver, o próprio mundo da vida e seu agir comunicativo, se incumbirá de,
democraticamente recompor as possibilidades de novos consensos.
A
introdução do agir comunicativo em contextos do mundo da vida e a
regulamentação do comportamento através de instituições originárias podem
explicar como é possível a integração social em grupos pequenos e relativamente
indiferenciados, na base improvável de processos de entendimento em geral. É
certo que os espaços para o risco do dissenso embutido em tomadas de posição em
termos de sim/não em relação a pretensões de validade criticáveis crescem no
decorrer da evolução social. Quanto maior for a complexidade da sociedade e
quanto mais se ampliar a perspectiva restringida etnocentricamente, tanto maior
será a pluralização de formas de vida, as quais inibem as zonas de sobreposição
ou de convergência de convicções que se encontram na base do mundo da vida […]
Este esboço é suficiente para levantar o problema típico de sociedades modernas:
como estabilizar, na perspectiva própria dos atores, a validade de uma ordem
social, na qual ações comunicativas tornam-se autônomas e claramente distintas
de interações estratégicas? (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 44-45)
A resposta a esta pergunta de Habermas, de forma simples
e objetiva, seria o Direito. Na teoria discursiva, o papel que restaria ao
mundo da vida é o de prover temas e argumentos para problematização em
discursos de justificação, pelo devido processo legislativo. A linguagem
coloquial, típica do mundo da vida e circulante na esfera pública, deve ser
problematizada e transformada em direito legítimo. O mundo da vida, ao passar
da subjetividade a intersubjetividade, teria que necessariamente contar com a
existência de um sistema regulador, legislativo, o que não seria, para
Habermas, demérito algum do “mundo da vida” uma vez que, na esfera pública,
ainda que de forma regulamentada, o mundo da vida segue sendo sensos e
dissensos da intersubjetividades.
Entretanto,
como dissemos a análise do direito e mesmo da teoria do direito em Habermas,
demandaria algo mais que um artigo. Podemos falar desta “regulamentação do
comportamento através de instituições originárias” em termos mais propriamente
relacionados com o agir comunicativo onde a intersubjetividade entre os
sujeitos, em constante construção crítica de consensos, teria posição na regulamentação,
ainda que não fosse em termos sistematicamente e abrangentes.
Poderíamos
então dizer que na Teoria da Ação Comunicativa, Habermas quer, antes,
convencer-nos de que o mundo simbólico em comum é na verdade um mundo da vida na
medida em que o construímos e descontruímos, criticamente, e sempre em
construção de consensos e dissensos que brotam das “intersubjetividades” dos
sujeitos.
Referências:
ALMEIDA,
A. A. de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa.
Belo
Horizonte: Editora Fórum, 2005.
HABERMAS,
J. Pensamento pós-metafísico. Estudos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2002.
HABERMAS,J.
Direito e democracia. Entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro:Tempo
Brasileiro, 2003.
NEVES,
M. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. O Estado Democrático de
Direito
a partir e além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
MIRANDA,
M. da S. O mundo da vida e o Direito na obra de Jürgen Habermas.
Prisma
Jurídico, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 97-119, jan./jun. 2009.
[1]
Lindomar Dias Padilha é bacharel em filosofia pelo instituto Paulo VI,
licenciado em filosofia pela UECE, especialista em desenvolvimento social no
campo povos indígenas, quilombolas e comunidade tradicionais, Pela UnB, e
mestrando em Direito pela Universidade
Católica de Petrópolis - UCP.
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