terça-feira, 13 de agosto de 2019

REDD EARLY MOVERS (REM) NO ACRE: VIOLAÇÕES DE DIREITOS DOS POVOS ORIGINÁRIOS E A PERSPECTIVA DE ACESO À JUSTIÇA EM CAPPELLETTI


Lindomar Dias Padilha[1]

            RESUMO

            O presente trabalho pretende apresentar uma rápida análise sobre as violações de direitos dos povos originários, notadamente os que habitam a região onde se encontra o estado do Acre, na perspectiva do acesso à justiça em Cappelletti tendo como pano de fundo o programa REDD EARLY MOVERS (REM)[3] implementado naquele estado. Abordaremos o REM como parte de um grande conjunto de mecanismos como REDD + contidos na Economia Verde[4] por meio da mercantilização e Financeirização da natureza.

PALAVRAS CHAVES: Povos Originários, Acesso à Justiça, REDD, Economia Verde.

I.                   INTRODUÇÃO


A inclusão de REDD+ como instrumento de proteção florestal e climática, aparece nas negociações sobre o clima a partir de 2005. REDD é uma sigla em inglês para designar Reducing Emissions from Deforestation and Forest Degradation ou Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação florestal em português.

Como se vê, a intenção, a olhos pouco atentos, pode parecer excelente já que se propõe a diminuir as emissões de gazes de efeito estufa, notadamente o CO2 e ao mesmo tempo conter o desmatamento. Este é o ponto central dos críticos deste mecanismo e outros oriundos deste como PSA (Pagamentos por Serviços Ambientais) e o Redd Early Movers (REM), mecanismo que nos propomos apresentar neste texto a partir de uma perspectiva crítica frente aos direitos dos povos originários.

            Portanto, o REM é o mesmo que REDD+, só que aplicado jurisdicionalmente. Ou seja, em todo o território do estado em questão. No nosso caso, o estado do Acre. Apresentamos neste trabalho as críticas e contradições deste programa especialmente por incidir sobre territórios indígenas, o que fere a Constituição Federal em seu artigo 231 que define terras indígenas como de usufruto exclusivo dos povos que nelas habitam e ainda o que preconiza a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, da qual o Brasil é signatário.

            Apresentaremos o REM com suas definições e propostas para em seguida apresentar os pontos conflitantes com a legislação brasileira atual e limites ao acesso à justiça e ao final, apontarmos as consequências deste tipo de programa para os povos originários bem como as violações de direitos decorrentes deste programa considerando sua implantação no estado do Acre. A utilização deste mecanismo além de violar direitos, dificulta, quando não impede, o acesso à justiça. 

            Pelo óbvio que, dado que se trata de um tema por demais extenso, não pretendemos apresentar soluções muito menos trata-lo com a profundidade que merece. Nossa intenção ao final é apenas realizar apontamentos com base em experiências vividas e em estudos realizados por diversas organizações e pesquisadores. Muito há que se refletir e desejamos a todas e todos uma ponta de reflexão a partir deste trabalho.

II.                REDD EARLY MOVERS (REM) NO ACRE

            O REM só se difere do programa de REDD+ por recair sobre todo o território de um determinado estado, no nosso caso, o estado do Acre. É uma forma de burlar a legislação para aplicar o REDD em terras indígenas, uma vez que a Constituição veta este tipo de programa, salvo quando de interesse nacional, cabendo aos índios o usufruto exclusivo sobre seus bens e riquezas. (BRASIL, Constituição Federal, 1988, artigo 231, § 2º)

REM é um programa piloto por meio do qual o governo alemão destina recursos para estados que começaram antes que outros com a implementação do chamado REDD+ jurisdicional. É um programa baseado na suposta redução das emissões de carbono em toda a jurisdição estadual, como o estado do Acre. (KILL, 2018, P. 1).

            Kill fala em “suposta redução” por considerar este mecanismo uma falsa solução. Portanto, além de violar direitos dos povos originários, este mecanismo não é capaz de cumprir o que se propõe. Estes são os dois pontos chaves que nos propomos a detalhar melhor oportunamente: viola direitos e não soluciona o problema ambiental.

Uma publicação de 2012 do Ministério do Desenvolvimento e Cooperação da Alemanha analisado por Jutta Kill, descreve a abordagem do governo daquele país ao REDD, o que definiu o programa REDD Early Movers:

O REDD é um mecanismo de conservação florestal baseado em desempenho, que visa reduzir em muito os gases de efeito estufa em países emergentes e em desenvolvimento; planeja pagar uma compensação por reduções mensuráveis ​​e verificáveis ​​nas emissões de CO2. (KILL, 2018, P. 2).

            O mesmo documento explica que o REDD se baseia em uma “abordagem trifásica” que foi adotada na conferência climática da ONU em Cancún, México, em 2010. Como vimos anteriormente, a inclusão de REDD+ como instrumento de proteção florestal e climática, aparece nas negociações sobre o clima a partir de 2005. Logo, o REM tem um período de gestação mínimo de cinco anos. Interessante notar que a lei 2.308 do Estado do Acre, foi promulgada justamente em 22 de outubro de 2010. Falaremos mais a frente sobre esta lei.

            Aspectos legais, por meio de criação de leis, que violam direitos dos povos originários têm sido comuns, mas voltaremos ao tema das violações no capítulo posterior onde também trataremos do acesso à justiça propriamente dito. Por hora sigamos apresentando o programa REM no Acre.

            O governo alemão, também em documento oficial escreve que:

O REM está voltado aos pioneiros. São atores que tomaram a iniciativa já no início e estão trabalhando na criação das condições necessárias para receber financiamento de carbono no âmbito do programa de REDD. (KILL, 2018, P. 3).

A primeira jurisdição aceita no programa REDD Early Movers foi o estado do Acre. O KfW[1] e o Ministério do Desenvolvimento e Cooperação da Alemanha sempre descreveram o REDD Early Movers como um programa que fornece financiamento transitório para essa terceira fase do REDD, porque as negociações da ONU estavam avançando mais devagar do que o esperado inicialmente.

O financiamento do setor privado para essa terceira fase também continuava difícil, de forma que os financiadores, como o governo alemão, através do KfW, entraram em cena para fornecer fundos públicos como financiamento provisório ou transitório e ajudar a criar uma espécie justificativa conceitual. Durante as negociações do REDD, eles sempre afirmaram que, segundo a opinião do governo alemão, os fundos públicos não serão suficientes e o REDD deve ser um mecanismo que também sirva para atrair financiamento do setor privado.

O Estado do Acre, portanto, ao se abrir ao REDD jurisdicional, ou REM, está em última instância, abrindo seu território, notadamente as áreas ainda preservadas, ao capital privado. Fato que o governo nega peremptoriamente até hoje, mesmo com diversas críticas apresentadas por especialistas, como é o caso de Jutta Kill, do Conselho Indigenista Missionário - CIMI[2], do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais e várias outras organizações e pesquisadores.

Uma análise do histórico do REDD e do contexto das negociações climáticas da ONU sobre o REDD+ mostra claramente que o primeiro foi desenvolvido como um mecanismo que paga por reduções verificadas no fluxo de emissões entre o “estoque” de carbono na floresta e a atmosfera. O SISA e, segundo (KILL, 2018 P. 5), e em particular  o programa REM financiado pelo KfW, baseiam-se em um modelo que paga não só pela redução verificada do fluxo de emissões da floresta para a atmosfera, mas também pela manutenção do estoque de carbono.

Esta característica de “manutenção de estoque” é bastante peculiar ao REM aplicado ao Estado do Acre. Significa que, mesmo ainda não negociando em bolsas com os créditos de carbono, o KFW mantém um estoque impressionante e tão logo estes créditos venham a ter alto valor no mercado, seguramente serão utilizados.

Mas os pagamentos simplesmente por manter a floresta como estoque de carbono não são coerentes com o REDD na forma negociada na ONU nem com instrumentos de financiamento elaborados para o REDD: o REDD é construído com base em incentivos financeiros para reduzir emissões ou, no caso do REDD jurisdicional, visa mostrar que as emissões planejadas foram evitadas como resultado de programas governamentais que contribuem para que o governo obtenha uma redução na taxa de desmatamento. É por isso que todos os governos dos países do Sul global que têm terras florestais significativas, no contexto do REDD, estabeleceram metas para reduzir o desmatamento (e não para manter a floresta).

Estranhamente o REM no Acre não visa evitar ou reduzir as emissões por meio do mecanismo de REDD, mas sim, apenas manter os estoques. Estoques que, no caso dos povos indígenas, são resultantes de séculos de conservação e preservação. Ao transferir esses estoques a governos ou a iniciativa privada, o governo do Acre através do REM viola o que preconiza a Constituição Federal em seus artigos 231 e 232.
É somente através dessa estrutura incomum de pagamento, que inclui pagamentos por manter o “estoque de carbono” em lugares onde não há risco de o carbono fluir para a atmosfera que o financiamento do REM no Acre foi disponibilizado para financiar atividades em Terras Indígenas. Esses pagamentos são feitos a atividades em áreas onde não há risco imediato de desmatamento e para as quais o governo do Acre não pode mostrar uma redução verificada do fluxo de carbono para a atmosfera porque não havia risco de tal fluxo acontecer: os povos indígenas vinham mantendo a floresta dentro do seu território demarcado. Os pagamentos são feitos para recompensar a conservação do estoque de carbono, e não para reduzir o fluxo de carbono para a atmosfera, conforme sugerido pela primeira letra na sigla REDD, que significa “Redução”.

Sobre este aspecto Jutta Kill destaca que:

Do ponto de vista da justiça, esses pagamentos podem ser louváveis. Aliás, o REDD+ tem sido criticado por muitas organizações da sociedade civil desde o início como um mecanismo que proporciona um incentivo perverso ao oferecer dinheiro àqueles que representam riscos para a floresta (que planejavam destruir a floresta e liberar emissões), mas não aos que sempre a protegeram. Assim, a decisão do programa do REDD Early Movers, do KfW, de permitir pagamentos por atividades em locais onde não há risco de desmatamento é louvável sob a perspectiva da justiça, e provavelmente também foi essencial para criar uma “licença social para operar” e evitar a oposição à implementação do REM no Acre. (KILL, 2018 P. 5).

            Sim por um lado, o REDD oferece dinheiro para quem polui e ameaça o meio ambiente, por outro, o mecanismo de REM peca por considerar justamente os que mais conservam a natureza como potenciais destruidores. Também a “injustiça” se manifesta no fato de o REM ser realizado diretamente entre o governo do Acre e o banco alemão KFW, sem contudo considerar o valor da natureza em si mesmo e as comunidades como sendo detentoras de saberes tradicionais capazes de realizar o usufruto sem comprometer a natureza e os demais recursos, incluindo seus recursos culturais e medicinais. A perspectiva da justiça sinalizada por Kill é mais uma farsa do programa REM porque em nada tem a ver com a verdade da história desses povos e não os considera como sujeitos de direitos.

O programa REDD Early Movers se baseia na mesma abordagem do Fundo de Carbono do FCPF: enquanto o governo alemão – inclusive para não parecer estar prejudicando as negociações climáticas internacionais – não solicita créditos ou “compensações” de carbono em troca dos “pagamentos baseados em resultados” que faz ao estado do Acre, 30% do financiamento do REM são usados para operacionalizar o SISA e, em particular, seu programa ISA-Carbono. O ISA-Carbono, por sua vez, é uma estrutura destinada a gerar pagamentos... (KILL, 2018, P. 5).

            Para entendermos como isso funciona na prática no Estado do Acre, vale a pena ler e estudar a análise da cartilha do governo do estado do Acre intitulada: “Serviços Ambientais, Incentivos para a sua conservação. SISA: dialogando com os Povos Indígenas”, produzida pelo Instituto de Mudanças Climáticas e Regulação de Serviços Ambientais (IMC)[3]. A análise da cartilha foi elaborado por Winnie Overbeek e de pronto nos salta aos olhos uma observação:

Além do IMC, a Cartilha foi uma realização da Assessoria de Assuntos Indígenas do gabinete do governador do Acre, Tião Viana, e da ONG Norte americana Forest Trends. O apoio para a publicação vem do banco alemão de desenvolvimento KfW, do organismo de cooperação técnica alemã GIZ, do fundo da multinacional mineradora VALE e da ONG internacional conservacionista WWF. (OVERBEEK, 2013, p. 37).

            Um banco Alemão (KFW), uma mineradora (VALE) Governo do Acre, ONGs internacionais e assessoria indígena se juntaram para a publicação de uma cartilha, com o intuito apenas de orientar a população indígena sobre Serviços Ambientais? Relembramos que a Forest Trends é uma ONG que assessora o Governo do Acre justamente na área de mercado de carbono. Se a ação do KFW no Acre é apenas “doação” seria correto deduzirmos também que a Forest Trends e a Vale também estão fazendo sua parte nesta espetacular doação? Claro que não. Bancos e mineradoras visam lucro e as ONGs que delas dependem só as defendem justamente por dependerem inclusive para custeio de salários.

            Imaginar que o Banco de desenvolvimento da Alemanha faz caridade com o Acre e simplesmente o premeia é mesmo uma demonstração de imensa crença no amor à humanidade da parte do sistema financeiro. Nós não cremos nisso. De outro lado, “redução na emissão de gases de efeito estufa por desmatamento e degradação florestal é exatamente a definição de REDD. Se esta redução não mantém vínculo com as terras indígenas e nem com as unidades de conservação, onde está sendo feita então? Nas cidades? É sabido e notório que as terras indígenas e as unidades de conservação são as áreas naturalmente mais preservadas. Se excluirmos as unidades de conservação e as terras indígenas, o que sobrará para o REDD ou REM acreano? Nada. REM no Acre então, é mera ficção.

III.               REM COMO VIOLAÇÂO DE DIREITOS – Limites ao acesso à justiça.

A Constituição Federal brasileira (CF), em seu artigo 231 garante aos povos indígenas o direito ao território. Segundo esta mesma constituição todos os territórios indígenas deveriam ser demarcados até o ano de 1994. Entretanto, como já vimos essa determinação jamais foi observada e, consequentemente muitos dos povos indígenas permanecem sem a devida regularização de seus territórios. Vejamos o que diz a Constituição sobre o direito dos povos originários, notadamente o direito ao território e à consulta:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. (...)
§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum" do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. (BRASIL, Constituição 1998)

            A simples não observância da Constituição Federal, por si só, já representa gravíssima violação de direitos desses povos originários e, claro, limites ao acesso à justiça. Claro que estamos falando de direitos ainda fundamentais. Se não há garantia dos direitos fundamentais aos povos originários, certamente não há do que se falar em acesso à justiça porque evidentemente acessar a justiça pressupõe a aceitação e reconhecimento de tais direitos. É preciso que nos empenhemos no sentido de localizar os pontos onde estes direitos estão sendo negados ou mesmo negligenciados. Para tanto, vale vislumbrar os obstáculos, conforme identifica e aponta Cappelletti:

(...) quantos dos obstáculos ao acesso efetivo à justiça podem e devem ser atacados? A identificação desses obstáculos, consequentemente, é a primeira tarefa a ser cumprida. (CAPPELLETTI, 1998, p. 6).

            Identifica-se também, no caso do Acre, como obstáculo ao acesso à justiça. A elaboração de legislação que visa burlar as normas constitucionais e decretos federais, bem como tratados internacionais. O caso mais eloquente produzido pelo governo do Acre foi a Lei 2.308/2010, conhecida como lei SISA que diz, entre outras coisas:
Cria o Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais - SISA, o Programa de Incentivos por Serviços Ambientais - ISA Carbono e demais Programas de Serviços Ambientais e Produtos Ecossistêmicos do Estado do Acre e dá outras providências.
Art. 1º Fica criado o Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais - SISA, com o objetivo de fomentar a manutenção e a ampliação da oferta dos seguintes serviços e produtos ecossistêmicos:
I - o sequestro, a conservação, a manutenção e o aumento do estoque e a diminuição do fluxo de carbono;
II - a conservação da beleza cênica natural;
III - a conservação da sociobiodiversidade;
IV - a conservação das águas e dos serviços hídricos;
V - a regulação do clima;
VI - a valorização cultural e do conhecimento tradicional ecossistêmico; e
VII - a conservação e o melhoramento do solo. (ACRE, Lei 2308/2010 – grifo nosso).

            A lei SISA, do Estado do Acre é, pois um grande exemplo de lei que desrespeita leis e normas federais e até tratados internacionais, como observamos. Alguns aspectos são particularmente preocupantes nessa lei. Um deles é que prevê legislar sobre territórios públicos federais, como as terras indígenas, reservas extrativistas e áreas de preservação. Outro aspecto é que foi elaborada sem nenhum debate público e prevê ações nas terras indígenas, por exemplo, sem que haja consulta prévia, instrumento internacional fruto de acordos que visam justamente garantir os direitos e, claro, orientar os países e favorecerem o acesso a estes direitos.
Ademais o Brasil, é signatário entre outras, da convenção 169 da OIT – Organização Internacional do Trabalho e, portanto, tal convenção tem poder de lei e deve ser assim aplicada internamente. Ou seja, a convenção faz parte do conjunto das normas e leis do brasil. Então vejamos o que diz a convenção sobre direito à consulta prévia, livre e informada em seu artigo 6º:

1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:       
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
 b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;
c) estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim.
2. As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão ser efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas. (CONVEÇÃO 169, OIT 1989- grifo nosso).

            Como pudemos constatar, além de não respeitar o que preconiza a carta maior brasileira, mecanismos como REM desrespeitam instrumentos internacionais e alteram as constituições estaduais (no nosso caso a do estado do Acre) para que possam ser implementados e assim satisfaçam aos interesses do capital numa clara ameaça a soberania nacional e fere de morte o usufruto exclusivo dos povos originários dos bens existentes sobre os seus territórios. Neste sentido já observava Cappelletti que:

Atriste constatação é que, tanto em países de common law, como em países de sistema continental europeu, as instituições governamentais que, em virtude de sua tradição, deveriam proteger o interesse público, são por sua própria natureza incapazes de fazê-lo. O Ministério Público dos sistemas continentais e as instituições análogas, incluindo o Staatsanwalt alemão e a Proleuratura soviética, estão inerentemente vinculados a papéis tradicionais restritos e não são capazes de assumir, por inteiro, a defesa dos interesses difusos recentemente surgidos. Eles são amiúde sujeitos a pressão política — uma grande fraqueza, se considerarmos que os interesses difusos, frequentemente, devem ser afirmados contra entidades governamentais. (CAPPELLETTI, 1998, p.19 – Grifo nosso).

            É exatamente essa pressão política a que se refere Cappelletti, somada às pressões econômicas, no caso do REM no Acre, que determinam as violações de direitos e impossibilitam que os povos originários tenham acesso à justiça. O Ministério Público Federal, que no caso dos povos originários é o responsável para acompanhar os processos, também possui limites que no caso do Acre se tornam ainda mais evidentes como por exemplo a falta de recursos humanos, as longas distâncias e a acessibilidade às comunidades. Tudo isso concorre para que o REM seja implementado sem o devido respeito aos direitos desses povos. Neste contexto, não há que se falar efetivamente em direitos por força mesmo do que também observa Cappelletti:
Embora o acesso efetivo à justiça venha sendo crescentemente aceito como um direito social básico nas modernas sociedades, o conceito de “efetividade” é, por si só, algo vago. A efetividade perfeita, no contexto de um dado direito substantivo, poderia ser expressa como a completa “igualdade de armas” (CAPPELLETTI,1998, p. 6)

            A ausência de consulta prévia, livre e informada, prevista na convenção 169 da OIT, é clara demonstração de que não “igualdade de armas”. Os povos originários não se encontram em condição de, digamos, negociar no mercado internacional e por isso ficam a mercê do estado para que os seus direitos e o acesso efetivo à justiça se consolide. Não tendo o estado do Acre e nem o Estado Nacional interesse de que estes povos tenham seus direitos efetivados, tanto mais por isso seus territórios ficam abertos e livres para iniciativas como os mecanismos de REDD e REM.

            É evidente que os povos originários não possuem as condições para realizarem este tipo de enfrentamento. Se por um lado se encontram em locais de difícil acesso e em franca desvantagem em relação à sua capacidade de articular para enfrentar o mercado, de outro, o mercado com claros interesses no que há nesses territórios, conta além do apoio explícito de órgãos governamentais com vasto poder aquisitivo. E ai, mais uma vez valemo-nos das observações de Cappelletti:

Pessoas ou organizações que possuam recursos financeiros consideráveis a serem utilizados têm vantagens óbvias ao propor ou defender demandas. Em primeiro lugar, elas podem pagar para litigar. Podem, além disso, suportar as delongas do litígio. Cada uma dessas capacidades, em mãos de uma única das partes, pode ser uma arma poderosa (CAPPELLETTI, 1998, p. 7).

Evidentemente salta-nos aos olhos a superioridade financeira dos interessados na efetivação de programas vinculados ao ISA Carbono, caso de REDD e REM sobre os povos originários. Se os povos originários possuíssem recursos significativos poderiam, por exemplo custear o grupo de trabalho para realizar estudos em vistas a demarcação de seus territórios. Os territórios tradicionais, pois, não são demarcados porque há interesses de setores (inclusive internacionais) financeiros sobre seus territórios e bens naturais ali existentes de um lado e, de outro lado os povos não possuem recursos necessários para demandar contra estes interesses. Vejamos o que diz Kill quanto ao financiamento:

O governo alemão também é um dos maiores financiadores do Fundo de Parceria Florestal do Banco Mundial (FCPF, na sigla em inglês). Há financiamento para duas fases: uma fase de preparação ou “prontidão” e uma fase em que os países são pagos pelas reduções verificadas das emissões provenientes de perdas de florestas. Essa segunda fase é semelhante ao programa REDD Early Movers, mas em um contexto multilateral em vez de um programa bilateral, como o REM. (KILL, 2018, P. 5).

            O financiamento do governo alemão, bem como de empresas e bancos privados, é fator determinante. Há financiamentos abundantes para a implementação desses programas e não há nenhuma forma de financiamento, ou talvez haja poucas, que visem a efetivação e garantia de direitos dos povos originários. CAPPELLETTI (1998, p. 6) observa que de qualquer forma, torna-se claro que os altos custos, na medida em que uma ou ambas as partes devam suportá-los, constituem uma importante barreira ao acesso à justiça. Neste caso específico de financiamento internacional, a um só tempo temos violação de direitos e limites claros de acesso à justiça.

IV.              CONSIDERAÇÕES: REM e as consequências aos povos originários

            Claro está, pois, que a intenção do governo do Acre, com o REM, foi e é atuar de forma mercadológica por meio dos PSA – Pagamentos por Serviços Ambientais e, entre estes “serviços” merecem destaque o programa ISA Carbono, onde está sendo executado o programa REM, e os chamados produtos Ecossistêmicos. Para tanto, é fundamental um arranjo que possa considerar os territórios dos povos originários, maior berço Ecossistêmico. Ocorre que a lógica desses povos não obedece e muitas vezes não se enquadra na lógica mercadológica do capital e isso exigiu um grande esforço para fazer com que os povos fossem, digamos, considerados, enquanto parte do processo de geração de capital e serviços. Atentemos também para o fato de que os elementos da natureza sempre desempenharam “funções” e não “Serviços”. Mudam-se as funções para serviços e para tanto se espera que haja um “pagamento”. Tudo para satisfazer ao mercado.

A primeira e gravíssima consequência para os povos originários é a perda da autonomia sobre o território e do direito ao usufruto exclusivo. Claro que o banco KFW ou quem quer que seja que venha a adquirir o direito ao carbono fixado nas árvores não permitirá que nada que possa significar “alteração” a esta fixação não mais será permitido. Assim, os povos indígenas não poderão mais fazer seus roçados de subsistência, construir suas casas, enfim, realizar tudo aquilo que faz parte de suas práticas tradicionais. A perda da autonomia sobre os territórios poderá levar a uma possível perda cultural. Por exemplo, se não puderem mais realizar tarefas cotidianas comuns e tradicionais, daqui a alguns anos os mais jovens não saberão mais como realiza-las.

A “hipoteca“ dos territórios já é uma realidade muito grave. O Acre não está, digamos, exportando os créditos de carbono mas está comercializando a fixação deste. Ou seja, os créditos ficam como que em estoque para o Banco Alemão. Assim, ainda que seja fato de que o KFW ainda não está negociando estes créditos, poderá fazê-lo no futuro se julgar vantajoso do ponto de vista econômico. Todas as terras indígenas são tratadas como estoque. Portanto, sim as terras indígenas são uma espécie de garantia para o Banco KFW, dadas em hipoteca, e são negociados, os créditos, diretamente com o governo do acre. Essa é basicamente a diferença. Ou seja, os créditos não são negociados pelas comunidades e povos indígenas, mas fazem parte de uma espécie de garantia de estoque negociadas por meio do chamado REDD jurisdicional onde todo o Estado do Acre figura como território de REDD e os acordos são feitos com o governo.

Uma espécie de “Sebraelização” das relações, a mercantilização dos artesanatos e mesmo da cultura, assim como a Financeirização da natureza por meio da economia verde (base do modelo econômico do REM) tem um vício de origem. Ou seja, não procuram equacionar e resolver os gravíssimos problemas dos povos originários, mas apenas resolver os problemas de falta de políticas públicas da parte do governo e em vários casos, resolver o problema de caixa de governos e ONGs. Esses projetos tendem ao fracasso especialmente porque não escutam os povos indígenas nem durante a elaboração e muito menos na execução. São sempre vindos de “fora”, nunca nascem da vontade desses povos e se quer essa vontade é considerada. Mais do que fracassarem, esses projetos criam dependências.

Os recursos adquiridos por meio destes “projetos” não são eternos e nem suficientes para manter as comunidades. Então nos deparamos com uma outra consequência: acabado o dinheiro, como farão para garantir sua sobrevivência e a sobrevivência das gerações futuras?

Como recebem algum recurso com o compromisso de não alterar o meio natural, não farão mais seus roçados, não realizarão mais atividades como caça e pesca. Com o recurso deverão comprar tudo de que necessitam. Ai aparece uma outra consequência que é o aumento de “lixo” nas comunidades e aldeias, principalmente garrafas pet e sacolas plásticas. Nesta mesma direção, com o lixo e com mudanças nos hábitos alimentares aparecerão ainda mais doenças sobre as quais o pajé não tem controle e não sabe como curar trazendo consequências ainda mais graves para as crianças em especial.

Por fim, deixo estas considerações, mais uma vez reportando-me a Cappelletti que ao demonstrar as “ondas” termina por, digamos, aferir a necessidade de um maior debruçar sobre os temas de acesso à justiça apontando para um movimento que não cessa já que a ideia de ondas é uma ideia de que se está sempre em movimento. Para os povos originários serve como ponta de esperança.

Podemos afirmar que a primeira solução acesso - a primeira “onda” desse movimento novo - foi a assistência judiciária; a Podemos afirmar que a primeira solução acesso - a primeira “onda” desse movimento novo - foi a assistência judiciária; a segunda dizia respeito às reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses “difusos”, especialmente nas áreas da proteção ambiental e do consumidor; e o terceiro - e mais recente - é o que nos propomos a chamar simplesmente “enfoque de acesso a justiça” porque inclui os posicionamentos anteriores, mas vai muito além deles, representando, dessa forma, uma tentativa de atacar as barreiras ao acesso de modo mais articulado e compreensivo. (CAPPELLETTI, 1998, p. 12 Grifo nosso).

Reconhecer direitos e respeitar esses povos e seus territórios é questão de respeito à democracia pode ser o maior passo rumo a uma sociedade realmente justa, ou que prima pela busca dessa justiça. Neste sentido, quando falamos em Processo e Justiça de acesso à justiça, não estamos dizendo que a justiça esteja lá em algum lugar sagrado aguardando que alguém a encontre. Não. Estamos antes falando de uma justiça que é caminho e porta, busca incessante e construção contínua. O acesso à justiça é um direito porque o é também o direito de buscar, construir e até de experimentar, mesmo que parcialmente, o sabor da justiça.

Talvez seja mais que esperança. Talvez seja um caminho a ser trilhado. O futuro destes povos depende de que façamos um mutirão de solidariedade para construirmos este futuro, pois, futuro não nos é apenas dado, é construído por mãos, mentes e corações solidários.

Neste sentido os povos originários seguem sendo exemplo de caminhar. Há séculos que vem resistindo e se renovando nessa resistência, sempre na esperança que já é certeza de que haverá um novo dia. Por mais que a noite seja fria e escura, o alvorecer virá com o cantar dos pássaros e com o aquecer dos raios do sol. É no amanhecer que festejaremos a justiça e finalmente o acesso a ela. Este é o processo, Processo e Justiça.






Referências:
ACRE, Instituto de Mudanças Climáticas, IMC, Serviços Ambientais, Incentivos para a sua conservação. SISA: dialogando com os Povos Indígenas. Rio Branco, 2013
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
CAPPELLETTI, Mauro – BRYANT Garth, Acesso à Justiça. Sergio Antônio Fabris Editor. Porto Alegre, 1988.
KILL, Juta. REDD Early Movers (REM) no Acre, Brasil. World Rainforest Movement (WRM) - Movimentos Mundial pelas Florestas Tropicais, Montevideo, 2018. Disponível em https://www.fdcl.org/publication/2018-01-01-redd-early-movers/ Acessado em 19/06/2019.




[1] Fundado em 1948 como uma instituição pública, o KfW pertence hoje à República Federal da Alemanha (80%) e aos estados federados (20%). Com ativos totais de mais de 518 bilhões de euros (dados de novembro de 2012) é um dos três maiores bancos alemães. O KfW capta os recursos para suas atividades de fomento quase exclusivamente nos mercados de capitais internacionais. O grupo KfW está ativo tanto na Alemanha como internacionalmente. As atividades de fomentoda economia interna são divididas nos segmentos de negócios KfW Mittelstandsbank (KfW banco para PME), KfW Privatkundenbank (KfW banco de retalho), KfW Kommunalbank (KfW banco de municípios) e Kapitalmarktnahe Produkte (produtos voltados para o mercado de capitais). As atividades de financiamento internacionais abrangem a área de financiamento à exportação e project finance, que é da responsabilidade de subsidiária KfW IPEX-Bank, a área de negócios KfW Entwicklungsbank (KfW Banco de Desenvolvimento), e a DEG (Sociedade Alemã para Investimentos e Desenvolvimento, na sigla em alemão).

[2] Cimi é um órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB.
Foi criado pela CNBB no ano de 1972 com o objetivo de lutar pelo direito à diversidade cultural dos povos indígenas, neste trabalho denominados de povos Originários. Busca fortalecer a autonomia destes povos na construção de projetos alternativos, pluriétnicos, populares e democráticos frente ao desrespeito a seus direitos e à tentativa de integração destes povos à sociedade majoritária.

[3] O Instituto de Mudanças Climáticas e Regulação de Serviços Ambientais – IMC é o órgão responsável por articular as políticas referentes à mitigação e adaptação aos impactos de mudanças climáticas, realizar periodicamente o inventário de emissões de gases de efeito estufa – IGEE e articular ações de gestão de riscos associadas aos incentivos aos serviços ambientais. Além disso compete ao IMC gerir o Sistema de Incentivo a Serviços Ambientais do Estado do Acre – SISA.



[1] Lindomar Dias Padilha é mestrando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito, PPGD, pela Universidade Católica de Petrópolis - UCP
[2] Flávio Mirza é Pós Doutor em direito pela Universidade de Coimbra atualmente leciona na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na qualidade de professor adjunto, na graduação, mestrado e doutorado em Direito e na Universidade Católica de Petrópolis, graduação e mestrado. É advogado criminalista.
[3] REM é um programa piloto por meio do qual o governo alemão destina recursos para estados que começaram antes que outros com a implementação do chamado REDD+ jurisdicional. É um programa baseado na suposta redução das emissões de carbono em toda a jurisdição estadual, como o estado do Acre. O programa piloto foi criado para promover financiamento aos governos que demonstraram interesse no mecanismo REDD+ assim que o debate sobre ele foi iniciado, de modo a recompensá-los pela “ação pioneira” e pela contribuição na forma que o REDD+ tomou nas negociações climáticas da ONU.
[4] A expressão “economia verde” substituiu o conceito de “ecodesenvolvimento” usado pelo canadense Maurice Strong, primeiro diretor-executivo do Pnuma e secretário-geral da Conferência de Estocolmo (1972) e da Rio-92.

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