Nas
celebrações para lembrar o aniversário de sua morte, sindicalista é
destituído de seu conteúdo político revolucionário e transformado em
pragmático "ambientalista"
Por Elder Andrade de Paula*
Fonte: Repórter Brasil
"Quando
te vi com essa camiseta pensei que era mais um propagandista do governo
do Acre", disse-me um dos participantes do II Congresso da Comissão
Pastoral da Terra (CPT) realizado em Goiás no ano de 2005. O comentário
me deixou perplexo porque a camiseta em questão era branca e tinha
estampada, em sua frente, uma imagem com o rosto de Chico Mendes,
sobreposta com a chamada: "Chico Mendes Vive" e, logo a seguir, o texto
escrito por ele no ano de seu assassinato "Atenção jovem do futuro, 6 de
Setembro do ano de 2012, aniversário ou centenário da Revolução
Socialista Mundial, que unificou todos os povos do planeta num só ideal e
num só pensamento de unidade socialista que pôs fim a todos os inimigos
da nova sociedade. Aqui fica somente a lembrança de um triste passado
de dor, sofrimento e morte. Desculpem... Eu estava sonhando quando
escrevi estes acontecimentos; que eu mesmo não verei mas tenho o prazer
de ter sonhado".
Minha
perplexidade deveu-se ao fato de não estar estampado na dita camiseta
nenhuma logomarca identificando o governo do Acre. Ademais, existia
outro detalhe fundamental: não havia e não há no vocabulário e nas ações
do governo do Acre absolutamente nada que tenha proximidade com esse
sonho de Chico Mendes. Ao contrário, o Chico Mendes evocado pelo governo
acriano foi destituído de seu conteúdo político revolucionário e
transformado em um pragmático "ambientalista", em consonância com todo o
complexo de organizações da sociedade civil articulado em torno da
ideologia do desenvolvimento sustentável. Às vezes, também o transformam
em vidente, quando usam seu nome para justificar as perversas políticas
voltadas para o aprofundamento da mercantilização da natureza. Dizem,
dentre outras barbaridades, que Chico Mendes seria a favor do manejo
florestal madeireiro, dos famigerados Pagamentos por Serviços Ambientais
- PSA, quando sabemos que essas proposições emergiram após o seu
assassinato.
Enfim,
o fato que relatamos ilustra com muito vigor o monumental poder da
imagem e a sofisticação crescente com que tal poder é manipulado. O
Governo do Acre tem usado de forma primorosa esse recurso, logrando
"colar" com maestria a imagem de Chico Mendes ao seu projeto político,
afirmando que estaria realizando os "seus ideais" - como mostra Maria de
Jesus Morais no seu artigo "Usos e abusos da imagem de Chico Mendes na
legitimação da "economia verde", no Do$$iê Acre: O Acre que os
mercadores da natureza escondem, documento apresentado em 2012 durante a
Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro.
Imagem e poder
Nesse
sentido, a manipulação da imagem de Chico Mendes atua como um antídoto
contra a memória de Francisco Alves Mendes Filho. Enquanto a memória
revela obstinado desejo de transformação de uma realidade marcada pela
exploração, injustiça e destruição, a imagem manipulada volta-se para o
ocultamento dessa realidade. Mais do que isso, os novos mapas com
ilustrações do "Zoneamento Econômico Ecológico", que não passam de
adaptações jurídicas e institucionais inebriadas com o vocabulário
subjacente à ideologia do desenvolvimento sustentável, são usados para
apresentar o Acre como "modelo de economia verde" a ser replicado em
outras regiões do mundo.
Essa
separação e/ou adaptação entre imagem e seus significados tem sido
usada também em "Nuestra América" desde os primórdios da colonização
europeia, como lembra Serge Gruzinski em seu livro "A guerra das imagens
- de Cristóvão Colombo a 'Blade Runner' (1492-2019)". De acordo com
ele, desde que Colombo desembarcou no novo mundo a imagem foi utilizada
para fins de dominação. Sem demora, diz o referido autor, os
recém-chegados se perguntaram sobre a natureza das imagens que possuíam
os indígenas. "Prontamente, a imagem constituiu um instrumento de
referência, e logo de aculturação e de domínio, quando a igreja resolveu
cristianizar os índios desde a Flórida até a terra do fogo. A
colonização europeia aprisionou o continente em uma armadilha de imagens
que não deixou de ampliar-se, desenvolver-se e modificar-se ao ritmo
dos estilos, das políticas, das reações e oposições encontrados",
escreve Gruzinski.
É
precisamente nesta perspectiva analítica que interpretamos a
intencionalidade dessa separação entre "Chico e Francisco". Isto é,
apropriar-se de uma imagem e destituí-la de seu sentido original para
transformá-la em poderoso instrumento de legitimação do poder.
Obviamente, ela necessita manter alguns nexos com uma memória
"devidamente adaptada" aos fins políticos de cada momento, conforme
explicitado anteriormente.
No
decorrer das celebrações dos "vinte anos sem Chico Mendes", em 2008,
mostramos os usos e abusos da imagem desse líder sindical no artigo
"Movimentos sociais na Amazônia brasileira: vinte anos sem Chico
Mendes". Destacamos, entre outros pontos, que as proposições do
Movimento Sindical no "tempo de Chico Mendes" foram apropriadas e
transmutadas na sua negação. Portanto, não estava em curso uma suposta
continuidade e, sim, uma ruptura com esse legado. Agora, faremos um
exercício oposto: realçar os traços de continuidade no "estilo de
desenvolvimento" em curso no Acre.
Legado
Em
uma de suas últimas entrevistas , registrada no livro "O Testamento do
Homem da Floresta Chico Mendes por ele mesmo", de Cândido Grzibowski,
ele disse o seguinte:
Não
dá pra se entender que o governo seja ecológico, que defenda a
ecologia, que seja contra o desmatamento, e que ao mesmo tempo esse
mesmo governo mande a polícia armada para proteger o desmatamento.
"Em
princípio teve alguns momentos que houve um avanço considerável do
governo na questão ecológica, no Conselho Nacional dos Seringueiros, na
luta dos seringueiros. Mas, em seguida, nós começamos a desconfiar e
começamos a descobrir que o governo do Estado estava fazendo um discurso
ecológico para justificar a aprovação de seus projetos nos bancos
internacionais ou junto às organizações internacionais. (...) Não dá
pra se entender que o governo seja ecológico, que defenda a ecologia,
que seja contra o desmatamento, e que ao mesmo tempo esse mesmo governo
mande a polícia armada para proteger o desmatamento (...) Até o momento,
a justiça sempre está do lado do maior. Um dos problemas, um dos pontos
mais fracos com que nos defrontamos é a própria justiça. Muitas vezes
recorremos ao apoio da justiça e a justiça, inclusive este ano foi
claro, ficou do lado dos latifundiários (...)"
É
justamente aí, no governo do PMDB de Flaviano Melo (1987-90), que podem
ser encontrados os traços que teriam continuidade e que caracterizam o
"fazer" do governo acriano desde 1999. Ao analisarmos atualmente os
inúmeros conflitos pela posse da terra e aqueles relativos à expansão da
exploração madeireira e pecuária no estado, vemos com clareza a
reiteração daquele cenário político descrito por Chico Mendes em 1988. A
diferença fundamental é que, hoje, o "ovo da serpente" eclodiu e o
Estado está mais subordinado aos ditames dos financiamentos externos e à
lógica do capitalismo verde (interpretado como resultante das
modificações operadas no capitalismo no sentido de promover um movimento
simultâneo de adaptação à nova divisão internacional do trabalho, ao
reordenamento de natureza geopolítica, às reconfigurações nas relações
Estado-Mercado e à assimilação do ambientalismo no processo de
acumulação global que o presidem).
Os
resultados de tudo isso apareceram bem sintetizados no já citado Do$$iê
Acre. No referido documento destacam-se entre outros: 1) a elevada
concentração da propriedade fundiária e da renda; a permanência dos
conflitos pela posse da terra e o surgimento de outra ordem de conflitos
relacionados com o processo de aprofundamento da mercantilização da
natureza; interdição das demarcações de Terras Indígenas; 2) expansão
das atividades produtivas consideradas mais predatórias como a pecuária
extensiva de corte e exploração madeireira; 3) autoritarismo político e
cooptação das representações dos trabalhadores, como o sindicalismo
rural, com honrosa exceção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STTR)
de Xapuri.
Sendo
assim, o que prevaleceu não foi o legado de Chico Mendes mas, sim, o de
seus inimigos. A continuidade passível de constatação é aquela
relacionada com o prolongamento da espoliação sob a batuta de um poder
oligárquico que necessita ser ocultado para mostrar a imagem de um "Acre
moderno". Os "usos e abusos" da imagem de Chico Mendes (como diz Maria
de Jesus Morais) são fundamentais neste sentido. Neste ano de 2013, o
slogan usado pelo governo acriano para "comemorar" os 25 anos de
assassinato de Chico Mendes foi: "25 anos, Chico Mendes vive mais"
(texto e imagens sobre o assunto chegaram a ser publicados na página da
Agência de Notícias do Governo do Acre, mas o link http://www.agencia.ac.gov.br/ index.php/chico-mendes-25-anos não está mais disponível).
Por
esta razão, ao invés de usar a dita expressão parece mais apropriado
dizer que Chico Mendes vive mais indignado com o capitalismo verde.
* Elder Andrade de Paula é professor associado do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre.
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