Depois de alguns dias sem postar, retomo com este excelente texto de Roberto Liebgot. Uma análise verdadeiramente comprometida coma verdade. Desejando à todas e todos um excelente ano e que possamos seguir animados na certeza deque lutar, em sí já é uma vitória.
Ao
examinar a conjuntura indigenista brasileira, em 2012, salta aos olhos a
intensificação de campanhas contra os direitos indígenas, protagonizadas
especialmente por políticos, empresários, latifundiários e organizações
ruralistas. A Folha de S. Paulo tem publicado, no caderno Mercado,
uma
coluna escrita por Kátia Regina de Abreu, senadora pelo PSD, do estado do
Tocantins. A vinculação da senadora com setores empresariais e pecuaristas fica
evidenciada na vigorosa campanha contra as demarcações de terras indígenas, da
qual ela se tornou porta-voz.
Algumas
ideias defendidas na referida coluna compõem uma plataforma claramente
articulada em defesa do agronegócio. Kátia Abreu afirma, por exemplo, que
a
situação de violência contra o povo Guarani-Kaiowá será resolvida com ampliação
da assistência e não com garantia de terras; que não se trata de um conflito
entre os indígenas e o agronegócio e sim da tentativa de ONGs e da Funai de
impor sua vontade; que o direito indígena a terra deve estar subordinado aos
interesses dos setores considerados produtivos; que a ideia de que os índios
vivem em condições abjetas, possuem poucas terras e estão entregues à própria
sorte é um equívoco. Tais afirmações são sustentadas em rasos argumentos de base
quantitativa, gerados em pesquisas cujos procedimentos estão longe de resguardar
parâmetros constituídos no sólido terreno dos estudos antropológicos.
Outro
exemplo das investidas contra os direitos indígenas são os pronunciamentos
ofensivos ou as ameaças claramente formuladas contra as comunidades indígenas
por parte de grandes proprietários de terras, fazendeiros, empresários cujas
alegadas propriedades estão sobrepostas à terras tradicionais de alguns povos
indígenas. É o caso, por exemplo, dos pronunciamentos do ex-garimpeiro Claudino Garbin, que possui uma empresa
de terraplanagem, comprou terras no Paraguai e uma propriedade de
33
hectares no entroncamento das BRs-101 e 280, em
Araquari/SC. Ele argumenta que o processo de expansão econômica não pode
sofrer interferências, pois é o maior valor a se resguardar. Diferente do que
pensa o empresário, os preceitos constitucionais são, isto sim, o que se deve
resguardar acima de qualquer interesse privado.
Em
uma reportagem publicada no site Notícias
do Dia, em 24 de novembro de 2012, Claudino
Garbin afirma: “Se colocarem índios aqui, a bala vai comer solta. Que não
sejam loucos”[1].
Na
mesma reportagem, o deputado federal Valdir
Colatto (PMDB/SC) insurge-se contra os direitos indígenas com a absurda
afirmação de que “a Constituição determinou que as terras deveriam ser
demarcadas até cinco anos da promulgação, portanto as terras que não foram
demarcadas nesse período não são indígenas e não necessitam de regulamentação”.
De acordo com a tese do parlamentar, a inoperância, a morosidade, a omissão do
governo anularia os direitos assegurados na Constituição. Se assim fosse,
praticamente todos os direitos sociais da população brasileira seriam nulos,
considerando-se que os governos raramente cumprem prazos determinados.
Os
exemplos destacados mostram como se concretiza, em discursos variados,
publicados em diferentes fontes, uma onda antiindígena com argumentos racistas,
preconceituosos, que apelam para uma classificação e hierarquização dos
segmentos sociais para justificar que os direitos de alguns (fazendeiros,
ruralistas, grandes empresários) sejam respeitados, enquanto os de outros (povos
indígenas, quilombolas) sejam negligenciados.
Observam-se
também no parlamento brasileiro expressões desses diversos interesses nas terras
e em seus potenciais, ao considerar os projetos de lei que tentam impedir que se
concretizem as demarcações. Exemplo disso é a PEC 215/2000 que propõe que as
demarcações de terras sejam autorizadas pelo Congresso Nacional. Sem contar as
dezenas de outros projetos de lei apresentados por parlamentares para, de algum
modo, restringir os direitos indígenas.
Orçamento
indigenista contingenciado e violações dos direitos
humanos
Os
dados da execução do orçamento indigenista, ao longo do último ano, também
demonstram o descaso do governo Dilma para com os povos indígenas. Chegamos ao
final de 2012 com apenas 71,37% do orçamento indigenista liquidado, conforme
dados do programa Siga Brasil/Senado Federal. Programas e ações fundamentais
para a garantia da vida dos povos indígenas tiveram uma pífia execução de seus
recursos. É o caso do item Delimitação,
Demarcação e Regularização de Terras Indígenas, no qual foram utilizados
apenas 37,66% dos R$ 15.878.566,00 alocados para este fim. Tal aspecto, em si,
já é evidência da falta de vontade política para que se cumpram os dispositivos
constitucionais que asseguram as terras a estes povos. E se considerarmos que
apenas 34% das terras indígenas encontram-se registradas, vemos que, além de ser
insuficiente, o orçamento para 2012 sequer foi executado pelo governo, que
preferiu, mais uma vez, ceder às pressões de segmentos veementemente opostos aos
direitos indígenas.
A
falta de uma atuação mais decisiva por parte do governo no tocante às
demarcações é demonstrada pelas 339 terras indígenas que ainda encontram-se sem
nenhuma providência por parte do poder público. Fica mais clara ainda a
negligência se olharmos apenas para o ano de 2012 quando apenas sete terras
indígenas foram homologadas pela presidente da República.
A
morosidade e negligência na condução dos processos de regularização das terras
indígenas têm efeitos diretos sobre a vida de centenas de pessoas. Não podemos
deixar de observar também as crescentes demandas judiciais contra procedimentos
de demarcações de terras, em curso ou até em fase de julgamento definitivo.
Normalmente as decisões têm um caráter liminar que suspendem os procedimentos
demarcatórios até que o mérito seja decidido pelas instâncias superiores, no
caso Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal. Exemplo disso é a
decisão do TRF da 4ª Região, que suspendeu os efeitos da Portaria Declaratória
da terra indígena Mato Preto, no estado do Rio Grande do Sul. Em função destas
manobras jurídicas, os processos se arrastam por décadas sem que haja uma
solução para o litígio imposto.
Há,
inclusive, uma correlação entre este aspecto e o estado caótico em que se
encontra a saúde dos povos indígenas. Seja porque, somente quando têm a posse da
terra é que as comunidades conseguem restabelecer algumas condições culturais
fundamentais, seja porque somente com a finalização do processo de demarcação as
pressões e violências praticadas por setores interessados nas terras são
atenuadas.
Não
bastasse isso, observa-se no atual governo a continuidade de uma modalidade de
discriminação cruel, que é a recusa, por parte Secretaria Especial de Saúde
Indígena (SESAI), de atendimento de indígenas que não vivem em áreas demarcadas
ou regularizadas. Neste caso, os indígenas são duplamente penalizados: primeiro,
pela negligência e morosidade na condução dos processos de demarcação e,
segundo, pela desassistência praticada para conter gastos com demandas sociais,
fundada sob o argumento de que os indígenas não necessitariam de atenção
especial por viverem em periferias urbanas, em áreas (ainda) não
reconhecidas.
Outro
item da execução orçamentária de 2012 a ser considerado é o que se destina à Estruturação de Unidades de Saúde para
Atendimento à População Indígena, para o qual o governo estava autorizado a
gastar o montante R$ 26.650.000,00 e liquidou somente R$ 2.176.388,00 (o que
corresponde a tão somente 8,17% do previsto). Vale ressaltar que a situação da
saúde indígena (gerada em grande medida pela falta de assistência adequada) é
tão grave que os procuradores da República na 6ª Câmara de Revisão e Coordenação
Ministério Público Federal, ao participar de uma reunião com integrantes de
diferentes regiões do Brasil no mês de novembro deste ano, constataram que os
índios estão morrendo hoje não por epidemias, mas por displicência do governo.
Como resposta a essa grave situação, o Ministério Público deflagrou uma campanha
denominada “Dia D da Saúde Indígena”, na qual várias ações judiciais foram
propostas exigindo do Governo Federal a adoção de medidas para tentar solucionar
problemas como falta de medicamentos, ausência de água potável, transporte
adequado para pacientes que vivem nas comunidades etc.
Em
documento assinado por procuradores da 6ª Câmara, denuncia-se que a mortalidade
de crianças indígenas, por exemplo, está acima da média nacional. A cada mil
crianças indígenas nascidas vivas, 52,4 morrem na infância – índice duas vezes
maior que o do restante da população do país[2].
Enquanto
o governo Dilma investe em grandes obras, contingenciando os recursos
orçamentários imprescindíveis para assegurar dignidade e atendimento adequado à
população indígena, agravam-se os problemas de saúde e precarizam-se as já
escassas estruturas existentes. Tanto é assim que, nas 4.750 aldeias mapeadas
pela SESAI, existem apenas 717 postos de saúde, sendo que a maioria deles não
dispõe de equipamentos e pessoal para seu efetivo
funcionamento.
De
acordo com a vice-procuradora-geral da República e coordenadora da Câmara das
Populações Indígenas do MPF, Dra. Deborah Duprat, nas aldeias indígenas “está
faltando tudo: médico, remédio, transporte para levar pacientes para os
hospitais. O quadro é de extrema indigência”.
Retomando
os números da execução orçamentária de 2012, o dado mais impactante é, sem
dúvida, o de Saneamento Básico
em Aldeias
Indígenas para Prevenção e Controle de Agravos, com
previsão de R$ 67.986.192,00 dos quais foram aplicados apenas R$ 86.403,00 (o
que corresponde à vergonhosa cifra de 0,13%). Para ressaltar a displicência do
Governo Federal em relação a este quesito, basta retomar dados divulgados pelo
Censo 2010 do IBGE, que indicam que nas áreas indígenas registram-se os maiores
déficits em redes de esgoto sanitário, se comparadas com as demais residências
em diferentes regiões do país. Em apenas 2,2% das terras indígenas todos os
domicílios estão ligados à rede de esgoto, rede fluvial ou fossa séptica e
somente 16,3% são atendidos pela coleta de lixo.
Diante
da grave situação vivida pelas comunidades e povos em todo o país, a falta de
execução do orçamento previsto para a questão indígena é injustificável e se
caracteriza como uma violação dos direitos humanos.
Nesta
mesma direção, intensifica-se a perseguição e criminalização de lideranças
indígenas que lutam pela terra, em especial nos estados de Mato Grosso do Sul,
Mato Grosso, Bahia, Pernambuco, Pará e Maranhão. Somem-se a isso as dezenas de
casos de agressão contra comunidades, resultando, em 2012, no assassinato de
pelo menos 55 pessoas.
A
omissão do governo em relação ao intenso processo de violências enfrentadas
pelos Guarani-Kaiowá em
Mato Grosso do Sul, e que se pode caracterizar como genocídio,
é talvez o elemento mais significativo deste processo amplo de agressão aos
direitos do ser humano. Os abusos contra este povo são denunciados por
organizações no Brasil e no exterior. Vale ressaltar, ainda, que o estado de
Mato Grosso do Sul continuou sendo, em 2012, recordista em violências contra os
povos indígenas, e ali as comunidades são obrigadas a viver em beira de estradas
– uma situação de “miséria cercada de riquezas por todos os lados”. Realidade
semelhante vive o povo Guarani no estado do Rio Grande do Sul, submetidos em
maioria a uma vida em acampamentos provisórios, sem condições adequadas de
saúde, de saneamento, de alimentação.
Registre-se
aqui que das sete homologações de terras indígenas assinadas pela presidente da
República em 2012, nenhuma se destinou a povos de Mato Grosso do Sul ou do Rio
Grande do Sul.
Ao
fazer esta breve retrospectiva da política indigenista em 2012 constata-se a
absoluta falta de disposição política, por parte do governo Dilma, para que os
programas e projetos que beneficiem as comunidades indígenas sejam efetivamente
executados. Tal fato estimula a cobiça de segmentos econômicos e políticos que
ambicionam a exploração das terras indígenas e seus recursos ambientais,
hídricos e minerais. O desenvolvimentismo proposto pelo governo visa
essencialmente fortalecer os grandes conglomerados econômicos independentemente
dos povos, culturas, pessoas e do meio ambiente.
Há
grandes desafios a serem enfrentados pelos povos e suas organizações: entre
eles, o de apresentar as demandas, mobilizar-se em torno delas para que
efetivamente sejam acolhidas e transformadas em políticas públicas, assegurando
sua participação em todas as etapas; e o de pressionar o poder público para que
as terras sejam efetivamente demarcadas, protegidas, estando na posse e usufruto
assegurados aos povos e comunidades.
Sem
que isso aconteça, não é possível vislumbrar o efetivo combate às violências, ao
descaso, à omissão e à dependência de “políticas” paliativas e compensatórias.
Sem isso, na hora de discutir políticas públicas os povos indígenas serão
tratados como "entraves" num modelo de desenvolvimento sem garantias, que
privilegia alguns setores e penaliza muitos.
Porto
Alegre (RS), 04 de janeiro de 2012.
Roberto
Antonio Liebgott
Cimi
Regional Sul – Equipe Porto Alegre
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