segunda-feira, 3 de março de 2014

JUIZ PROÍBE VENDA DE BEBIDA E DÁ PRAZO PARA ÍNDIOS PERMANECEREM EM EIRUNEPÉ NO AMAZONAS

Aldeia da etnia kulina, em Eirunepé, no Amazonas.  (Foto: Arquivo Funai)
Aldeia da etnia kulina, em Eirunepé, no Amazonas. (Foto: Arquivo Funai)
Uma portaria inédita assinada no último dia 21 de fevereiro pelo juiz estadual Leoney Figliuolo Harraquian, da Comarca de Eirunepé (AM), proíbe a venda de bebidas alcoólicas a indígenas e restringe a permanência deles no prazo máximo de 48 horas na sede da cidade. Localizado na bacia do rio Juruá, Eirunepé fica a 1.150 quilômetros de Manaus em linha reta.  A decisão judicial vem causando críticas dos índios e está sendo questionada por funcionários da Funai (Fundação Nacional do Índio).
Na portaria, o juiz Leoney Figliuolo Harraquian adverte a Funai a providenciar o retorno dos indígenas, assim que estes receberem seus benefícios sociais na cidade, às suas aldeias em até dois dias sob pena de multa de R$ 100 mil. Os índios só poderão ficar mais tempo na cidade em casos de necessidade, como doenças.
O juiz diz, na portaria, que sua medida foi tomada devido o “excessivo uso de bebida alcoólica por parte dos indígenas que chegam de suas comunidades a fim de receber seus benefícios, permanecendo na cidade de Eirunepé sem condições de higiene, hospedagem e alimentação, muitas das vezes abandonando suas crianças”.
Em Eirunepé vive uma população de cerca de cinco mil índios das etnias kulina e kanamari. As terras indígenas estão localizadas a longas distâncias da cidade. De canoa ou embarcação de pequeno porte, as viagens levam no mínimo três dias.
O coordenador técnico e único funcionário da Funai em Eirunepé, Arquimimo Amaral da Silva, admite a existência de alcoolismo em grupos de índios (uma minoria, segundo ele) que vão à cidade, mas diz que, apesar de “bem intencionado”, o juiz Leoney Figliuolo Harraquian tomou uma medida “extrema, precipitada e que rotulou todos os indígenas de alcoólatras”.
Segundo Arquimimo Silva, a decisão causou uma grande insatisfação na população indígena que não ingere bebida alcoólica e que se sentiu prejudica pela portaria.
Duas mulheres indígenas da etnia kulina ouvidas pelo Amazônia Real também questionaram a decisão. “Existe uma discriminação tão grande contra nós, agora seremos mais ainda discriminadas”, disse Marta de Oliveira Kulina, 39 anos.
Silva informou que já existe uma lei federal de 1973 (Estatuto do Índio) que proíbe a venda de bebidas alcoólicas a indígenas e o que o juiz fez foi repetir uma legislação. Para ele, o que precisa ser feito é fiscalizar a comercialização e punir os responsáveis pela venda.
O maior questionamento contra a portaria, porém, refere-se ao tempo que os índios poderão ficar na cidade. “O juiz atribuiu a Funai uma atitude sobre a qual ela não tem poder legal de exercer. A Funai não tem a prerrogativa de obrigar os índios a voltarem para suas aldeias. Não tenho como pegar um índio pelo braço e mandar ele voltar. O que o juiz fez foi jogar a responsabilidade para a vítima”, disse.
O coordenador técnico ressalta ainda que os índios não vão à cidade apenas para retirar benefícios sociais, mas tentar ter acesso a políticas públicas e expedir documentos pessoais. A demora no atendimento resulta na permanência deles na cidade. Ele diz que os índios aproveitam a estada na cidade para abrir conta em banco e tirar documentos, como registro de nascimento e título de eleitor. Silva conta que o Rani (Registro Administrativo Indígena) e os processos para o INSS, que cabem à Funai, em geral são feitos no mesmo dia. Já outros documentos chegam a ser deferidos em 40 dias.
“O cartório nem sempre funciona. No banco, os funcionários acabam pedindo mais documentos e o índio tem que voltar no outro dia. Quando o INSS defere um benefício social, todo o processo até o saque do beneficiário leva em média 25 dias. Então, o índio tem que continuar mais tempo na cidade. Não tem como ele retornar para aldeia e depois voltar novamente, pois além de viagem ser longa, é muita cara. Quando não pode pagar combustível, ele vem no remo, em viagens que levam três, quatro, cinco dias”, disse Arquimimo.
“Situação humilhante”
Em entrevista ao Amazônia Real, Leoney Figliuolo Harraquian disse que assinou a portaria como “um alerta” para que a Funai tome providências e assim evite deixar indígenas em situação “degradante, sem higiene e sem alimentação” em Eirunepé.
“Eles ficam perambulando pela rua, bebendo muito e acabam brigando. Não tem local adequado, as crianças são abandonadas. É uma situação humilhante. Fico com pena deles. Joguei essa portaria para ver se a Funai toma uma providência”, disse o juiz.
A decisão de Harraquian não é fruto apenas de sua observação. Ele contou que muitas pessoas da cidade lhe procuraram, pedindo para que tomasse providências em relação aos indígenas.
O juiz, que está em Manaus, retorna a Eirunepé no próximo dia 15 para voltar a discutir o assunto com a Funai. Indagado sobre como se dará a fiscalização da portaria, ele afirmou que também encaminhou a decisão a outros órgãos da cidade, inclusive ao comando da polícia. “Olha, não tem como cumprir rigorosamente essa portaria. Espero que a Funai fique alerta. Tenho certeza que isso será resolvido. Não estou impedindo que o índio fique na cidade. Quero que ele fique em Eirunepé, mas de forma digna”, disse.
Stephan Dienst, um linguista que atua junto aos índios kanamari, entrou com uma representação na semana passada no Ministério Público Federal do Amazonas pedindo providências para derrubar a portaria.
“Quando soube dessa portaria encaminhei uma denúncia ao Ministério Público Federal. Não se pode tirar dos índios o direito de ir e vir. Se eles quiserem ficar um mês na cidade, podem. Um juiz não pode baixar uma portaria que viola a constituição federal apenas para resolver um problema que deve ser resolvido por todos os órgãos e não apenas pela Funai”, disse Dienst, que coordena a Associação das Comunidades Kanamari de Flecheira.
O coordenador regional da Funai em Atalaia do Norte, Bruno Pereira, disse que o juiz agiu com a visão do preconceito”, expondo os indígenas e deixando-os acuados e cerceando o direito deles de ir e vier”. Ele afirmou que a Funai também está tomando medidas para derrubar a portaria.
Pereira reconhece que o problema do alcoolismo existe, mas deve ser combatido não apenas pela Funai e sim por vários órgãos. “Seria mais simples se o juiz entendesse os problemas antes de assinar a portaria, mas ele usou o pior expediente. Para se resolver seria necessária uma ação articulada entre todos os entes públicos e não apenas a Funai. O atendimento é precário em todos os setores”, disse.
Aldeia indígena é acessível por viagem de três horas em barco
Aldeia indígena é acessível por viagem de três horas em barco
Falta de estrutura
A Coordenação Técnica (CT) da Funai em Eirunepé tem apenas um funcionário concursado (Silva), que responde por uma população de aproximadamente 5,7 mil indígenas de 38 aldeias dos municípios de Envira, Itamarati, Ipixuna e Eirunepé, localizadas na bacia do rio Juruá. A CT é subordinada à Coordenação Regional da Funai, cuja sede fica localizada no município de Atalaia do Norte. As viagens de Atalaia até Eirunepé são possíveis apenas pelo rio (leva vários dias) ou por avião fretado.
Arquimimo Amaral da Silva reconhece que há um alto índice de alcoolismo entre os indígenas e tenta, dentro de suas possibilidades, realizar atividades preventivas. Na semana passada, a Funai realizou um palestra com a organização Alcoólicos Anônimos com um grupo de indígenas.
Ele conta que, em parceria com a Polo Base da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que fica na sede de Eirunepé, a Funai deverá realizar um levantamento sobre os indígenas que ficam em trânsito na sede municipal para assim identificar as dificuldades que estão sendo enfrentadas por eles.
Um dos grandes desafios para tentar solucionar o problema do alcoolismo – assim como outras doenças – é a falta de estrutura de saúde na região. O único polo base da Sesai está localizado na sede de Eirunepé. Equipes de saúde ficam apenas esporadicamente nas aldeias.
“Poucas aldeias têm postos saúde, por isso os índios são obrigados a vir para a cidade. Muitos vêm com seus próprios recursos, a remo, de canoa, ou em ‘rabetinhas’ (canoa a motor) com gasolina emprestada. As aldeias não têm rádio de comunicação e isso dificulta as remoções. A situação de educação é outro problema. Apenas duas aldeias têm escolas. Ou seja, é todo um conjunto de ações que deveriam ser desencadeadas”, contou Arquimimo.
Mulheres kulina questionam
Funcionária da Casa de Saúde Indígena (Casai) em Eirunepé, Erondina Araújo da Silva, 48 anos, da etnia kulina, disse que é preciso tomar providências em relação aos indígenas que sofrem de alcoolismo, mas que não concorda com a medida judicial.
“Muitos índios vão parar no aterro da cidade e na beira do rio. Mas daí assinar um documento como desse juiz é demais. Os índios ficam muito tempo na cidade porque precisam tirar documento. Nisso, muitos comerciantes aproveitam para vender bebida para eles”, disse Erondina, que nasceu na aldeia Piau.
Marta Zacarias de Oliveira, 39 anos, que estava de passagem por Eirunepé antes de voltar para sua aldeia quando o Amazônia Real conseguiu falar com ela por telefone, disse que a portaria é discriminatória.
“O índio é livre para andar em qualquer canto. Quando ele vem para a cidade, fazer suas coisas, tudo é muito demorado. Além de ser desrespeito, ele ainda sofre preconceito e é mal tratado”, diz Marta, que é conselheira distrital de saúde indígena.
Marta concorda que o consumo de bebida está “muito forte” entre os índios e que é preciso tomar providências para evitá-lo. “Os índios que viajam para a cidade não têm controle. Os brancos não estão nem aí, vendem a bebida assim mesmo. Mas alguém pergunta para o índio por que ele bebe? Como ele poderá ser tratado se nas aldeias não tem posto de saúde, não tem remédio. Eu fico muito triste com tudo isso”, relata Marta.

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