sábado, 23 de abril de 2011

EVANGÉLICOS NA POLÍTICA


Transcrevo na íntegra o texto de Josafá Batista publicado em seu blog e que penso ter uma grande importância para nós que fazemos uma análise mais séria sobre os diversos problemas e questões que envolvem o nosso dia a dia. Vale a pena ler.
 
Por Josafá Batista

Algo que chama a atenção nestas eleições é o grande número de candidatos evangélicos. É um indicador importante sobre o comportamento do tecido social acreano nas últimas décadas. Desde 1990, sabe-se bem, as mais diversas denominações evangélicas cresceram e se desenvolveram no solo fértil de um Acre repleto de problemas sociais, às voltas com um "novo modelo de desenvolvimento" gestado e implantado pelo governo.

Não é a primeira vez que isso ocorre. Em 1929, em plena
Grande Depressão, as igrejas evangélicas norte-americanas tiveram uma explosão de fiéis que foram rapidamente treinados e engajados para "ganhar o mundo para Jesus". Assim nasceu a onda pentecostal do cristianismo e o televangelismo das "cruzadas" que invadiram o mundo com missionários e televangelistas, processos que a Primeira e a Segunda Guerra mundial aceleraram e refuncionalizaram em favor do american way of life, ajudando ativamente no combate à União Soviética e à Revolução Cubana.

Igrejas evangélicas sempre tiveram um papel político importante no processo de desenvolvimento da economia de mercado. Ao disciplinar os espíritos para a vontade do Senhor Jesus, elas ajudam a assimilar a autoridade externa como fonte da autoridade verdadeira. Ou seja: o poder que disciplina a vontade, por vontade de Deus (e por causa do pecado) está sempre fora do indivíduo, que é sempre um ser passivo. O poder sempre vem - do pastor(a), de Deus, do político competente, do Estado etc.

De tal magnitude é este processo que o papel político das igrejas evangélicas passa literalmente despercebido ao fiel. Uma vez que a fidelidade do crente a Deus é medida pela sua sintonia com as ações da igreja, a vontade do indivíduo torna-se cada vez mais sintonizada com a vontade do rebanho do Senhor. Ocorre que a vontade do Senhor não se manifesta diretamente: é uma interpretação, feita por um líder ou um grupo de líderes, o que dá imenso poder de estruturação organizacional (estamos falando de um livro de mais de 2.000 anos, no caso do que hoje se chama Novo Testamento, escrito em outro idioma, lido por outra cultura em outro ponto do globo terrestre).

Qual a implicação, na política, dessa "vontade dirigida"?

Abstraídas as
questões mais graves, possibilitadas pelo imenso poder advindo da alienação do grupo, e que consistem em assassinatos, furtos, chantagens etc, a questão filosófica mais premente é a transformação da política em religião. O que não é pouca coisa. Significa que questões pungentes da vida social, ou seja, questões externas à religião, são tomadas como assuntos religiosos em que vale a palavra do pastor, a concepção cristã de moralidade, o plano de Deus para o mundo etc.

Esta forma de ver a política esquece que, apesar de todos os protestos do cristianismo e de outras religiões, não há "princípio moral" fora dos indivíduos. Não há sequer princípio ético que deva ser seguido se os indivíduos não participarem e discutirem, formulando assim o questionamento e a solução éticas.

Nenhuma religião pode decidir sobre os destinos políticos de um povo, pela singela razão de que nem todos têm a mesma religião. Não há, por exemplo, princípio biológico que prove a existência de alma em embriões, pela igualmente singela razão de que o próprio conceito de "alma", em adultos ou crianças, é uma doutrina religiosa. Logo, trata-se de um arranjo válido para homilias, poesias e apologias religiosas, e mesmo assim entre aquelas religiões que partilham este princípio.

Outro exemplo é a questão da homossexualidade. Cristãos em geral, e não somente evangélicos, costumam declarar que a condição homossexual é um pecado porque não faz parte do "plano de Deus para a família", porque é "contrário à natureza". Se a discussão sobre isso alonga-se muito, imediatamente começam a surgir os trechos bíblicos que dão suporte a tal concepção.

Obviamente o cristianismo tem direito de estabelecer a homossexualidade como um pecado. Trata-se da herança judaica, que tem na afirmação do Homem Ideal (isto é, no Masculino Supremo) o seu
símbolo arquetípico. Em palavras fáceis, é a herança patriarcal (inclusive ao pé da letra) desta tradição religiosa em ação.

De qualquer forma, o cristianismo tem tanto direito de conceber a homossexualidade como pecado quando o candomblé tem o de fazer oferendas de alimentos aos orixás, o islamismo de fazer orações com o rosto voltado para Meca etc. São valores antropológicos dessas religiões, características que definem a sua herança, sua origem cultural.

O que o cristianismo não pode é tentar estender essa prática ao campo da política. Ou seja, o que os cristãos não podem nem devem é achar que os não-cristãos também devem pensar desta forma. A política não funciona assim. Valores religiosos valem para a religião nos quais eles se relacionam, e a Constituição garante a plena liberdade desse exercício, mas sugerir que o Congresso Nacional não deva aprovar leis para reconhecer situações de convivência homossexual, argumentando que tal coisa teria inspiração do demônio, é tentar inaugurar, sub-repticiamente, dissimuladamente, o discurso religioso no campo da política.

É tentar exigir que toda a sociedade se comporte de forma cristã, com o mesmo ímpeto destruidor, preconceituoso e elitista de qualquer ditadura.

Para que estender um valor religioso ao campo da política?

O que isso revela?

É evidente que revela uma necessidade inconfessável, incontrolável até, de transformar toda a sociedade em uma imensa igreja, a pretexto de fazer "política boa e ética".

Política boa e ética, isto é, a
transformação da política por meio da beleza que "alguém" engendrou, ou segundo a concepção preestabelecida de uma cultura particular, foi exatamente a proposta do Nazismo. A idéia de inferioridade dos negros, comunistas, judeus e homossexuais, dentre outros grupos, era consequencia justamente da sua identificação com o fraco, com o não-evoluído.

No Acre, cada vez mais questões próprias da vida política são tomadas como princípios da religião cristã. No horário eleitoral gratuito, pululam propostas cristãs para disciplinar a vida de não-cristãos e até não-religiosos.

Juntamente com um processo de desenvolvimento gestado e nutrido por grupos poderosos e externos, a vida política acreana está se tornando, aos poucos, motivação para o exercício de uma religiosidade aparentemente festiva, aparentemente alegre, mas que utiliza esse potencial mobilizatório para transformar a sociedade em algo, em algo seu.

Isso, pra mim, é assustador.

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