terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Polícia Federal invade aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro e leva criança de dois anos

Por Renato Santana,
de Brasília (DF)
 
Durante invasão da Polícia Federal em aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, neste domingo, 2, no município de Ilhéus (BA), M.S.M, de 2 anos, em fuga para a mata, se desgarrou dos pais e acabou nas mãos dos policiais. O delegado Severino Moreira da Silva, depois da criança ter sido levada para Ilhéus pelos federais, a encaminhou para o Conselho Tutelar que, por sua vez, transferiu o menor para uma creche, onde ele segue longe dos pais e isolado por determinação da Vara da Infância e Juventude.
 
Representante da Funai solicitou ao delegado a entrega da criança. A intenção era devolvê-la aos pais, mas Silva se negou a entregá-la ao órgão indigenista. De acordo com fonte consultada pela reportagem, o delegado se irritou com a acusação de que os federais teriam sequestrado a criança da comunidade e afirmou publicamente que o menor teria sido abandonado.
 
“Isso não é abandono! A PF que entrou atirando e então todos fugiram para o mato como tática de proteção e resistência (...) Quando estamos na mata e um animal foge sem os filhotes, saímos de perto porque sabemos que ele volta para buscar as crias”, diz cacique Rosivaldo Ferreira dos Santos Tupinambá, o Babau. A liderança afirma ainda que o pai voltou para buscar M.S.M, minutos depois de deixar a mulher com os outros dois filhos em segurança na mata, mas o menor já tinha sido levado pelos federais.
 
No ofício 0193/2014 (DFP/ILS/BA), encaminhado ao Conselho Tutelar, o delegado afirma que equipe formada pelas polícias Federal e Militar, além da Força Nacional, “deslocou-se à Fazenda São José, a fim de proceder a necessária averiguação sobre uma denúncia de que o citado imóvel havia sido invadido mais uma vez por criminosos foragidos da Justiça, os quais estariam utilizando-se daquele empreendimento (...) para fins escusos (sic)”.
 
O núcleo familiar Tupinambá, alvo da polícia e acusado pelo delegado de criminoso, nunca deixou o local onde foram atacados, resistindo em trabalhos locais, desde os bisavós do menor M.S.M, ou em saídas esporádicas para outros estados nordestinos devido a perseguições. A área já está identificada pelo Ministério da Justiça. Conforme relato dos Tupinambá, os federais chegaram atirando a ponto dos indígenas recolherem dezenas de cápsulas, de arma de grosso calibre (veja foto), espalhadas pela terra tradicional. No último dia 29 de janeiro, a Fazenda São José, localizada dentro de território considerado indígena pelo Estado desde 2009, foi alvo de reintegração de posse. Uma de três bases da Polícia Federal acabou instalada no local.
 
“O ministro da Justiça (José Eduardo Cardozo) é dupla-face: para nós ele fala em diálogo, mas não é possível que a Polícia Federal monte uma base militar dentro de uma terra indígena sem ele saber. Não são os fazendeiros nos atacando ou pistoleiros contratados por ele. É a polícia”, declara cacique Babau.  
 
A liderança, perseguida por pistoleiros e pela Polícia Federal (veja cronologia de violências abaixo), afirma que o episódio é parte de um grande plano para criminalizar a luta dos Tupinambá pelas terras tradicionais do povo. “Já perderam a vergonha de dizer que querem a minha cabeça. Já tentaram me matar várias vezes. No final do ano passado mataram três indígenas. Este ano já foram quatro, na região da praia”, denuncia.
 
Mentiras e manipulações  
 
Cacique Babau aponta para uma enraizada rede de mentiras e manipulações que constrói informações inverídicas dos Tupinambá e da própria liderança que exerce. “Primeiro que me responsabilizam por tudo que acontece na região entre Ilhéus e Salvador. Eu não sou o único cacique Tupinambá. Sou cacique da Serra do Padeiro que fica na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, que tem 21 aldeias e quase o mesmo número de caciques que lideram suas comunidades na luta pela terra do nosso povo”, explica.
 
No último dia 30 de janeiro, o procurador-geral da República, Rodrgigo Janot, requereu ao Supremo Tribunal Federal (STF), nessa quinta-feira, 30 de janeiro, a suspensão de liminares e sentenças em ações de reintegração de posse ajuizadas por donos de fazendas localizadas na Terra Indígena Tupinambá. O requerimento acabou na mesa do ministro Ricardo Lewandowski, que teria recebido a informação de que Babau descumpriu acordo e expulsou da terra indígena pequenos agricultores.
 
“Os pequenos só saem de lá quando o governo federal reassentá-los. A informação é mentirosa. Temos 300 crianças não-índias, filhos e filhas desses agricultores, que estudam nas escolas Tupinambá”, revela Babau. O cacique explica que na região existe uma pressão sobre esses pequenos agricultores para que eles se retirem da Serra do Padeiro e acusem os Tupinambá de os terem expulsado. Alguns foram agredidos nas cidades do entorno da terra indígena, caso de Buerarema, e tiveram seus produtos saqueados.   
 
Em outubro do ano passado, a Associação dos Juízes para a Democracia (AJD) enviou uma comissão ao território Tupinambá. Uma das conclusões da comissão de juízes, publicada na edição de outubro/dezembro do jornal da AJD, é de que “a grande maioria dos meios de comunicação divulga é que os indígenas são responsáveis pelos atos quando são, na verdade, vítimas. Incitam (tais factóides) a vingança e a violência abertamente, em publicações jornalísticas e até mesmo em outdoors, afirmando que se trata de falsos índios. Essa postura, reiterada pelos latifundiários da região, acaba por ser validada pelo governo federal, já que não foram, até hoje, tomadas as providências necessárias para que as demarcações se efetivassem”.
 
No último dia 3, colunista baiano divulgou que a Polícia Federal e a Força Nacional caçavam cacique Babau e que ele “conta com apoio de grupos fortes e poderosos. Tem milhões de reais no bolso e lidera um exército de cinco mil homens que – armados e pilotando 150 motos e mais de vinte carros – estão tirando a paz e o sossego dos agricultores de Buerarema, Ilhéus, Una e São José” (leia na íntegra aqui).
 
Histórico de violências
 
O histórico recente de violências por parte do Estado contra os Tupinambá é vasto, tanto quanto de fazendeiros e pistoleiros. De prisões arbitrárias, abuso de força policial, torturas, destruição de casas, veículos comunitários, alimentos e equipamento escolar a lista de acusações contra o Estado parece interminável. 
 
Foi assim que a Polícia Federal impôs sistematicamente, por ordem de decisões judiciais ou outras motivações nem tão claras para os indígenas, pressão aos Tupinambás para que deixassem as áreas retomadas por meio da luta. As ações recaíram principalmente contra o líder, Cacique Babau, e seus familiares.
 
A seguir, uma lista cronológica e atualizada das violências sofridas pelos Tupinambá nos últimos cinco anos – tanto da PF quanto de pistoleiros e fazendeiros:
 
17 de abril de 2008
 
Primeira prisão do cacique Babau, acusado de liderar manifestação da comunidade contra o desvio de verbas federais destinadas a saúde. O cacique estava em Salvador no momento dos fatos.
 
23 de outubro de 2008
Ataque da PF na aldeia da Serra do Padeiro, com mais de 130 agentes, 2 helicópteros e 30 viaturas – para cumprimento de mandados judiciais suspensos no Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região e contra orientação do Ministério da Justiça, resultando em 22 indígenas feridos a bala de borracha e intoxicação por bombas a gás, destruição de casas, veículos comunitários, alimentos e equipamento escolar.
 
27 de maio de 2009
 
Prisão preventiva do irmão do cacique Babau, por dirigir carro da Funasa carregando mantimentos. O Desembargador Cândido Ribeiro, do TRF da 1ª Região, não encontrou justificativa na ordem de prisão, da Justiça Federal de Ilhéus.
 
2 de junho de 2009
 
Cinco pessoas foram capturados e torturadas por agentes da PF – spray de pimenta, socos, chutes, tapas, xingamentos e choque elétrico. Os laudos do IML/DF comprovaram a tortura, mas o inquérito concluiu o contrário.
 
10 de março de 2010
 
Cacique Babau é preso, durante a madrugada, em invasão da PF em sua casa, embora a versão dos agentes – comprovadamente falsa – informe que a prisão teria acontecido no horário permitido pela lei.
 
20 de março de 2010
 
Prisão do irmão do cacique Babau, por agentes da PF em plena via pública, enquanto levava um veículo de uso comunitário da aldeia para reparo.
 
16 de abril de 2010
 
Babau e seu irmão são transferidos para a penitenciária de segurança máxima em Mossoró (RN), por receio da PF de ver manifestações diante de sua carceragem em Salvador pela passagem do “Dia do Índio”, em desrespeito ao Estatuto do Índio.
 
3 de junho de 2010
 
A irmã de Babau e seu bebê de dois meses são presos na pista do aeroporto de Ilhéus pela PF, ao voltar de audiência com o presidente Lula, na Comissão Nacional de Política Indigenista, por decisão do juiz da comarca de Buerarema. Permanecem presos em Jequié por dois meses, até o próprio juiz resolver revogar a ordem de prisão.
 
5 de abril de 2011
 
Estanislau Luiz Cunha e Nerivaldo Nascimento Silva foram presos numa situação de “flagrante preparado” – prática considerada ilegal– num areal explorado por empresas, de dentro da Terra Indígena Tupinambá. Acusados baseados em meros indícios dos crimes de “extorsão” pela PF, Estanislau – que toma remédios controlados – e Nerivaldo – que teve a perna direita amputada, após baleamento por agente da PF – respondem ainda por “tentativa de homicídio” contra policiais federais. Coincidentemente, a ação foi feita na véspera da chegada do Secretario de Justiça do estado da Bahia, à região. Após dois meses e meio presos, o TRF da 1ª Região lhes concedeu a liberdade por 3 x0 em julgamento de habeas corpus, em 20 de junho.
 
3 de fevereiro de 2011
 
Prisão da Cacique Maria Valdelice, após depor na Delegacia da Polícia Federal em Ilhéus, em cumprimento ao Mandado de Prisão expedido pelo Juiz Federal Pedro Alberto Calmon Holliday, acusada de “esbulho possessório”, “formação de quadrilha ou bando” e “exercício arbitrário das próprias razões”. A cacique foi libertada no final do mês de junho, após cumprir quatro meses em prisão domiciliar.
 
14 de abril de 2011
 
Por volta das 5h da manhã, fortemente armados e com mandado de busca e apreensão, vários agentes da PF vasculham a residência da cacique Valdelice, assustando toda a família – principalmente os muitos netos da cacique. Em Salvador, chegava para reuniões com autoridades locais a “Comissão  Tupinambá” do CDDPH.
 
15 de abril de 2011
 
Fortemente armada, a PF acompanha oficiais de justiça em cumprimento de mandado de reintegração de posse. Indígenas e Funai não haviam sido previamente intimados do ato, que foi presenciado pelos membros do CDDPH, que testemunharam o despreparo de agentes e a presença de supostos fazendeiros que incitavam as autoridades contra os indígenas.
 
28 de abril de 2011
 
A Polícia Federal instaura o inquérito, intimando o procurador federal da AGU e os servidores da Funai a prestar depoimento sobre denúncia de “coação” contra a empresária Linda Souza, responsável pela exploração de um areal, situado na terra Tupinambá.
 
29 de abril de 2011
 
Prisão do cacique Gildo Amaral, Mauricio Souza Borges e Rubenildo Santos Souza, três dias antes da delegação composta por deputados federais da CDHM e membros do CDDPH/SDH visitarem novamente os povos indígenas da região por causa das violências que continuam a ser denunciadas.
 
5 de julho de 2011
 
Cinco Tupinambá são presos pela PF sob as acusações de “obstrução da justiça” e “exercício arbitrário das próprias razões”, “formação de quadrilha” e “esbulho possessório”.
 
18 de outubro de 2012
 
No Fórum de Itabuna (BA), cinco Tupinambá, vítimas de tortura cometidas por policias federais, prestaram depoimento ao juiz Federal em parte do procedimento da Ação Civil Pública por Dano Moral Coletivo e Individual movida pelo Ministério Público Federal (MPF) da Bahia contra a União. Os procuradores abriram inquérito também para apurar os responsáveis pela tortura, atestada e comprovada por laudos do Instituto Médico Legal (IML). 
 
14 de agosto de 2013
 
Estudantes da Escola Estadual Indígena Tupinambá da Serra do Padeiro foram vitimas de emboscada na estrada que liga Buerarema a Vila Brasil. O atentado ocorreu quando o caminhão (foto acima) que transportava os alunos do turno da noite para as suas localidades foi surpreendido por diversos tiros oriundos de um homem que se encontrava em cima de um barranco. Os tiros foram direcionados para a cabine do veículo, numa clara tentativa de atingir o motorista, que com certeza o atirador achava ser Gil, irmão do cacique Babau, pois  o carro é de sua propriedade. Quem conduzia o carro era Luciano Tupinambá.
 
26 de agosto de 2013
 
No município de Buerarema, contíguo ao território tradicional Tupinambá, atos violentos promovidos por grupos ligados aos invasores da terra indígena. Indígenas foram roubados enquanto se dirigiam à feira e 28 casas foram queimadas até o início de 2014. O atendimento à saúde indígena foi suspenso e um carro da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) foi queimado.
 
8 de novembro de 2013
 
Aurino Santos Calazans, 31 anos, Agenor de Souza Júnior, 30 anos, e Ademilson Vieira dos Santos, 36 anos, foram executados em emboscada quando regressavam da comunidade Cajueiro, por volta das 18 horas, na porção sul do território Tupinambá, quando foram emboscados por seis homens. Disparos de arma de fogo foram feitos contra os indígenas. Na sequência os assassinos praticaram torturas, dilaceraram os corpos com facões e com o que é chamado na região de “chicote de rabo de arraia”. Procuradores federais apontam assassinatos como parte do conflito pela terra.
 
28 de janeiro de 2014
 
Após realizar a reintegração de posse de duas fazendas localizadas na Serra do Padeiro, no município de Ilhéus, na Bahia, policiais federais e da Força Nacional montaram uma base policial na sede da fazenda Sempre Viva. Ataques com granadas contra os Tupinambá refugiados na mata.
 
2 de fevereiro de 2014
 
Durante invasão da Polícia Federal em aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, M.S.M, de 2 anos, em fuga para a mata, se desgarrou dos pais e acabou nas mãos dos policiais. O delegado Severino Moreira da Silva, depois da criança ter sido levada para Ilhéus pelos federais, a encaminhou para o Conselho Tutelar que, por sua vez, transferiu o menor para uma creche, onde ele segue longe dos pais e isolado por determinação da Vara da Infância e Juventude.

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