Pois bem, independentemente de nós sabermos ou não a respeito desse processo, ele está ocorrendo e acredito que talvez seja importante você dedicar um pouco do seu tempo para conhecer alguma coisa a mais sobre ele.
Para começar, afinal, o que é a FINANCEIRIZAÇÃO DA NATUREZA? Posso dizer que é um processo através do qual o capital especulativo se apropria da natureza com a finalidade de comercializar, por exemplo, a polinização realizada por abelhas. É, é isso mesmo. Com a FINANCEIRIZAÇÃODA NATUREZA você poderia, por exemplo, largar tudo e investir em alguns títulos franceses, em uma bolsa de valores na Inglaterra, nos títulos do “serviço” prestado pela polinização de abelhas africanas em alguma colméia de uma floresta da Malásia. Ou seja, através de certificados, títulos e essas coisas todas que divertem os acionistas do mundo todo, a natureza é transformada em uma grande fábrica que produz mercadorias essenciais à vida como a água, ar puro, fertilidade do solo, biodiversidade, captura de carbono, beleza (não é uma metáfora, segundo alguns economistas e outros iluminados da nossa era S/A, a beleza também pode ser quantificada e precificada, podendo vir a garantir muito lucro a quem tiver esses” títulos de beleza” em sua posse). Ou seja, a FINANCEIRIZAÇÃO DA NATUREZA é a condição de possibilidade para que exista a MERCANTILIZAÇÃO DA NATUREZA.
Mas vamos por partes. Acima expliquei que a FINANCEIRIZAÇÃO DA NATUREZA permite que larguemos tudo e invistamos em títulos da polinização de abelhas malasianas em alguma bolsa de valores na Inglaterra. Isso mesmo. Porém, o investimento em títulos da polinização de abelhas malasianas só será rentável se muitas pessoas estiverem dispostas a COMPRÁ-LOS. Aí entra o papel da MERCANTILIZAÇÃO. Em outras palavras, transformar a natureza em mercadoria. Daí em diante, até os ATRIBUTOS ABSTRATOS da natureza começam a ser passíveis de serem convertidos em mercadorias. Eu disse ATRIBUTOS ABSTRATOS porque talvez não tenhamos dado atenção suficiente ao fato de que há muito tempo os atributos concretos da natureza como a água, por exemplo, vêm sendo mercantilizados. Alguém pode pensar: “há algo de errado na água ser comercializada?” Não sei, vamos pensar. Você e eu moramos em um mesmo planeta, somos da mesma espécie e, na teoria, segundo nossas próprias convenções, temos os mesmos direitos e deveres. Muito bem. Nem você, nem eu produzimos, por exemplo, a água. Na verdade, ninguém produz água, a não ser a natureza da qual você eu fazemos parte, igualmente. Nesse sentido, por que a Nestlè ou a Coca-Cola – que também não produzem água – podem engarrafar, precificar e vender para você e para mim a água que, em tese, deveria ser de todos/as, uma vez que esse recurso transcende as fronteiras e limites criados por nós?
É aí que eu queria chegar: todo esse processo sutil e muito bem pensado está fazendo com que você e eu acreditemos que é justo que a natureza, que por muitos milênios foi considerada um BEM COMUM, passe a ser objeto de privatização, precificação e mercantilização. Bom, eu não sei quanto a você, mas para mim soa de forma bastante alarmante a possibilidade de que meus netos tenham de pagar pelos metros cúbicos de ar que respirarem durante o mês. Acha que essa possibilidade é bizarra? Experimente tentar vender uma garrafa de água para um índio Ticuna e você provavelmente verá exatamente a mesma reação de incredulidade na expressão dele. Talvez não devêssemos nos preocupar tanto com o estranhamento causado por pensarmos em pagar pelo ar que respiramos, mas com certeza deveríamos refletir com dedicação o porque de termos naturalizado de tal forma pagarmos para uma corporação a água que compramos no hipermercado.
Como isso se dá na prática?
Para tudo isso começar a funcionar, precisamos ter uma comunidade sistematicamente desassistida, marginalizada e excluída de qualquer intervenção política. Somado a isso, essa comunidade deve, fundamentalmente, estar territorializada em um local que possua elementos naturais alvos de especulação que possam ser financeirizados e mercantilizados no mercado global. A partir daí, basta convencer a comunidade de que ela “ganhará” muito mais “vendendo” o direito aos recursos naturais que ela desfruta. Assim começa a porta de entrada para o processo, ou o chamado “Pagamento por Serviços Ambientais” (PSA). Na realidade, o PSA não é nada mais do que mercantilizar as “funções naturais da natureza” (não tem como fugir dessa redundância para enfatizar o aspecto tragicômico desse mecanismo). Obviamente a natureza não tem uma conta bancária e não faz o que faz para garantir o salário no fim do mês. Aí que entram as benevolentes tutoras “legais” da natureza, instituições e organismos que, abdicadamente, colocam-se à disposição para administrar o complexo mercado de pagamento por tais “serviços”. Claro que há uma outra variável, o tutor dos serviços ambientais, automaticamente, torna-se dono da floresta, rio, colméia ou o que quer que seja, antes tidos como bens comuns – nem privados, nem públicos – que estavam à disposição de comunidades específicas e que dependiam de tais recursos para garantir sua sobrevivência, perpetuação e autonomia. No processo proposto pelos defensores do PSA, em “troca” de um retorno financeiro, as comunidades abdicam do seu poder de decisão e gestão sobre seus próprios territórios, tornando-se, tão somente, uma espécie de zeladores de um patrimônio natural, agora privatizado em nome de um suposto bem coletivo (é, como você deve ter notado, esse processo é cheio de ousadas contradições). Aí alguém levanta o dedo e pergunta: “mas o que há de errado nisso, já que a comunidade aceitou uma compensação financeira?”. É, parece justo. Talvez esse seja o maior problema de todos, pois nesse jogo a justiça é perspectivada a partir de dentro do referencial de uma economia de mercado e de suas corporações, bem diferente da realidade contextual das comunidades que vivem sob outra lógica. Sendo assim, enquanto nossas corporações agem da forma que consideram justa, as comunidades, por um lado, perdem a soberania sob seus territórios e, por outro lado, acabam tornando-se dependentes desse assistencialismo corporativo criado.
O que isso tudo tem a ver com Agroecologia?
Bem, talvez fosse mais fácil dizer o que isso não tem a ver com agroecologia. Entender que a Agroecologia é um compromisso ético e político com o pensamento ecológico, ou seja, com uma perspectiva sistêmica, hospitaleira e abrangente, deixa claro que isso tem tudo a ver com a Agroecologia, principalmente quando afirmamos que a agroecologia é indissociável da Justiça Ambiental. Ou seja, não basta afirmarmos que um ou outro aspecto de uma ação é justo ou injusto em si mesmo. A partir da perspectiva da Justiça Ambiental, todas as dimensões envolvidas e impactadas em qualquer processo devem ser consideradas equanimemente. No caso de uma agricultura que se pretenda agroecológica, por exemplo, todos os sistemas devem ser levados em consideração, possibilitando que nenhum dos entes envolvidos direta ou indiretamente no processo suportem uma carga maior do que outros. Nesse sentido, mais do que você e eu ficarmos discutindo a respeito de qual ação é a melhor para essa ou para aquela comunidade, é fundamental que cada uma dessas comunidades possa ter voz e respeito por suas determinações, sem qualquer descaso ou tutela. Por isso debater e levar esse debate adiante é uma possibilidade de intervenção nessa questão. Aliás, obter todo tipo de informação a esse respeito é fundamental, pois esse processo tem muitas frentes, uma delas sendo, inclusive, a própria aprovação do novo código florestal brasileiro. Você sabia que o novo código estabelece o marco jurídico necessário para o estabelecimento do PSA no país? Pois é, essa medida tem a potencialidade de alterar significativamente o cenário da agricultura, sobretudo a agricultura agroecológica. Ou seja, está tudo integrado e interconectado, não importa por onde começarmos ou o caminho que optarmos por seguir, o processo é um só e não estamos sozinhos nele.
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