Blog do Jozafá
A bíblia narra, em Gênesis 9:18-27, a maldição do patriarca Noé ao neto, Canaã. Noé foi flagrado bêbado e nu pelo filho, Cam, e, irritado, condenou o filho de Cam, Canaã, a ser escravo dos irmãos Cuxe, Mizraim e Pute e também dos tios Sem e Jafé.
Ainda segundo a bíblia, descendentes de Canaã se proliferaram em duas frentes: uma ocupou a região onde é hoje o Estado de Israel e outra foi para o sudeste da África. E é aqui onde a história fica interessante.
A escravidão, fenômeno antigo na história humana, ganhou força nas américas com a chegada dos europeus. A pilhagem dos recursos do novo continente enriqueceu as cortes europeias e exigiu que a igreja legitimasse o escravismo africano.
Em 1452, o papa Nicolau V (1397-1455) emitiu a bulaDum Diversitas, autorizando os reis da Espanha e de Portugal a escravizarem não-cristãos. O papa mirava os povos do Oriente Médio, que resistiam ao evangelho e suas cruzadas, mas a medida beneficiou os traficantes negreiros a partir do século XV. Porém, desde 324 a igreja proibia, sob pena de excomunhão, que se ajudasse na fuga de escravos.
O poder papal não justificava o fato político da escravidão com a narrativa bíblica sobre o desafortunado Canaã, embora as frentes missionárias nos países do Novo Mundo o fizessem. Uma carta do padre jesuíta Manuel da Nóbrega (1517-1570), por exemplo, afirma: “Por serdes descendentes de Can e terdes descoberto a vergonha de seu pai deverão os negros serem escravos dos brancos por toda a eternidade”.
Há uma dupla corruptela nesta narrativa. Primeiro: Noé amaldiçoou o neto, Canaã, e não o filho, Cam. Segundo: a maldição não foi hereditária, valendo apenas para Canaã.
A versão modificada do evento bíblico atravessou os séculos, confundindo inclusive alguns pesquisadores. Com a reforma protestante, a narrativa do genocídio hebreu à cidade de Canaã pelo general Josué, logo após a morte de Moisés, passou a ser atribuída à velha maldição. A escravidão de africanos, idem.
Atualizando a história, portanto: os descendentes de Cam que se estabeleceram no Oriente Médio foram assassinados para dar cumprimento à maldição (esta narrativa encontra-se no livro de Josué, na bíblia). O outro grupo, que ocupou partes da África, foi penalizado com o tráfico negreiro que devastou o continente.
É nesta versão que o pastor Marcos Feliciano, hoje presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal, acredita e propaga. Como ele, muita gente está também convencida de que negros são o resultado de uma maldição, homossexuais são uma ameaça à família, sexo antes do casamento invoca a ira divina etc.
É outra questão, tema para outro artigo, mas a proliferação de crenças contrárias aos direitos humanos no âmbito religioso é um sintoma cristalino do preço que o Brasil paga, e vai pagar por alguns anos, da precarização do seu sistema educacional. Será necessário muito tempo, planejamento e investimentos para corrigir os estragos da agenda neoliberal que viabilizou, entre outras coisas, o protagonismo político de concepções fundamentalistas sobre a vida social. As forças que legitimaram Feliciano e seu eleitorado são as mesmas que, nos anos 80 e 90, levaram milhões ao desemprego e à miséria.
Há que se afirmar o básico, o caráter supra-religioso da democracia. Significa que democracia e religião podem conviver, mas a democracia não pode assimilar os valores morais de uma religião. Religiões abraâmicas têm enorme dificuldade de compreendê-lo, não foram criadas para isso. Não se consideram, por exemplo, opções de fé. Consideram-se, cada uma, verdades irrefutáveis com validade universal. Excetuadas as múltiplas interpretações pessoais, o indivíduo que professa outra crença é considerado, pelo religioso de ordem abraâmica, um condenado à danação eterna enquanto não se arrepender.
Este ponto de tensão, acentuado no caso do cristianismo pentecostal, não pode ser solucionado. Fazer com que os cristãos percebam que ele incentiva a exclusão, a miséria, a perda de direitos e outros problemas sociais, enquanto há recursos para combater tudo isso, é o grande desafio da geração atual. Não é muito difícil, para alguém racional, entender que é errado combater leis nacionais de controle da violência baseando-se na interpretação de uma religião, qualquer que seja.
Há momentos em que interpretações religiosas evidenciam a sua origem dedicada a dominar a consciência de povos inteiros em prol de um país conquistador qualquer.
Este é um desses momentos.
Por isso escrevi esse artigo.
Se você é cristão, pense nisso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário