sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Nota do Conselho Indigenista Missionário sobre o Estado de Direito e a falta de limites do latifúndio no Brasil

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) manifesta perplexidade diante das gravesdenúncias divulgadas pelo Ministério Público Federal do Mato Grosso (MPF/MT), nesta quinta-feira, 21, envolvendo ruralistas, Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e parlamentar relator da Comissão Especial da Câmara Federal que trata da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215/00.

De acordo com a denúncia “Conversa telefônica legalmente interceptada, revela que o líder ruralista Sebastião Ferreira Prado 
planejava o pagamento de R$ 30 mil a advogado ligado à Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que seria o responsável pelo relatório da PEC 215, na Comissão Especial que aprecia a matéria na Câmara dos Deputados”.
Sebastião, líder da Associação de Produtores Rurais de Suiá-Missu (Aprossum), está preso, acusado de aliciar pessoas para resistir à desocupação da Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante, no nordeste de Mato Grosso. Cumpre salientar ainda que, segundo a denúncia, “o grupo recebia recursos de apoiadores de outros estados para financiar suas atividades, inviabilizando a efetiva ocupação do território pelos índios. A influência do movimento de resistência extrapolava os limites de Mato Grosso e influenciava, também, conflitos na Bahia, Paraná, Maranhão e Mato Grosso do Sul”.

São fortes as evidências da existência de uma verdadeira organização criminosa atuando, de maneira articulada e deliberada, em flagrante desrespeito ao Estado de Direito em nosso país. Além da afronta direta à decisão da mais alta instância do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu o direito do povo Xavante à Terra Indígena Marãiwatsédé e determinou a sua desintrusão, é demonstrada a interferência indevida da organização no ordenamento jurídico constitucional brasileiro, “mediante pagamento ao advogado (ou assessor) responsável pela elaboração do parecer (da PEC 215/00), envolvendo inclusive a Confederação Nacional da Agricultura – CNA” e a participação do grupo no fomento a conflitos envolvendo o direito e a posse de terras indígenas em diversas regiões do país.

Por meio da PEC 215/00, latifundiários e conglomerados empresariais, ligados ao agronegócio, especialmente multinacionais, visam revisar e impedir demarcações de terras indígenas, titulação de terras quilombolas e a criação de novas unidades de conservação ambiental no Brasil. Para além da inconstitucionalidade em si da PEC 215/00, as denúncias evidenciam o vício e a manifesta ilegalidade no processo de tramitação da mesma junto ao Poder Legislativo nacional.

É fundamental e urgente que sejam tomadas todas as medidas cabíveis, inclusive pela Procuradoria Geral da República (PGR) e pelo Conselho de ética da Câmara dos Deputados, para que seja amplamente apurada a participação e desvirtuamento da conduta de parlamentares federais e demais envolvidos nas graves denúncias, a fim de que o Estado de Direito seja devidamente resguardado e respeitado em nosso país.


Brasília, DF, 21 de agosto de 2014
Conselho Indigenista Missionário - Cimi

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Ai Ai Ai : MPF E PF investigam interferência indevida de ruralistas na tramitação da PEC 215

Conversa telefônica legalmente interceptada, revela que o líder ruralista Sebastião Ferreira Prado planejava o pagamento de R$ 30 mil a advogado ligado à Confederação Nacional da Agricultura (CNA), que seria o responsável pelo relatório da PEC 215, na Comissão Especial que aprecia a matéria na Câmara dos Deputados. No diálogo interceptado, Sebastião afirma que “o cara que é relator, o deputado federal que é o relator da PEC 215, quem tá fazendo pra ele a relatoria é o Rudy, advogado da CNA, que é amigo e companheiro nosso”.

O diálogo que revelou a interferência indevida de ruralistas na tramitação do Projeto de Emenda Constitucional 215 (PEC 215) foi interceptado, com autorização judicial, durante as investigações da organização criminosa envolvida com as reiteradas invasões à Terra Indígena Marãiwatsédé, da etnia Xavante, no nordeste de Mato Grosso.
Sebastião Prado, líder da Associação de Produtores Rurais de Suiá-Missu (Aprossum), está preso desde o dia 7 de agosto quando o Ministério Público Federal e a Polícia Federal deflagraram a operação para desarticular a atuação do grupo que coordenava e aliciava pessoas para resistirem à desocupação do território indígena. O grupo recebia recursos de apoiadores de outros Estados para financiar suas atividades, inviabilizando a efetiva ocupação do território pelos índios.
A influência do movimento de resistência extrapolava os limites de Mato Grosso e influenciava, também, conflitos na Bahia, Paraná, Maranhão e Mato Grosso do Sul.
Inicialmente, Sebastião Prado foi preso temporariamente, mas em requerimento apresentado à Justiça Federal no dia 11 de agosto, o MPF sustentou que a manutenção da prisão de Sebastião Prado tutela o “direito fundamental a um ordenamento jurídico constitucional estabelecido de modo legítimo, livre de interferências indevidas, segundo os princípios democráticos e republicanos que devem fundamentar a conformação ética, política e jurídica da sociedade brasileira”. O MPF acrescentou que o fato de a conduta da liderança ruralista direcionar-­se a corromper a edição de ato normativo destinado a transformar a própria ordem constitucional é circunstância sobremaneira gravosa, a exigir do Poder Judiciário medida capaz de obstar tal situação, ameaçadora do próprio estado de direito e da ordem republicana e democrática.
Ao apreciar o requerimento do MPF, a Justiça Federal entendeu que o lobby no âmbito do Congresso Nacional é um aspecto inerente ao próprio processo político, sendo que, a princípio, nada há de mais em se tentar influenciar o relator da PEC 215. Todavia, o juiz afirma que “o problema reside exatamente no meio utilizado para se efetuar o lobby, no caso mediante pagamento ao advogado (ou assessor) responsável pela elaboração do parecer, envolvendo inclusive a Confederação Nacional da Agricultura – CNA”.
Acrescentou o magistrado federal que “o fato de o relatório da PEC 215/2000 ter sido, supostamente, 'terceirizado' para a Confederação Nacional da Agricultura (CNA), representa, a princípio, um desvirtuamento da conduta do parlamentar responsável pela elaboração da PEC, eis que a CNA é parte política diretamente interessada no resultado da mencionada PEC”.
 Ao final da decisão que decretou a prisão preventiva de Sebastião Prado, a Justiça Federal ressaltou que “o objeto da PEC é exatamente poder rever a demarcação de terras indígenas já consumadas como é o caso de Marãiwatsédé, o que justifica a atitude do investigado e demais pessoas, ao tentarem a todo custo – segundo informações do MPF –, permanecer na área da reserva indígena, em total afronta a decisão judicial, transitada em julgado, na mais alta Corte deste País, no caso o Supremo Tribunal Federal”.
Diversas diligências investigatórias ainda estão em curso, sendo que os documentos relacionados à possível participação de parlamentares federais no caso foram remetidos à Procuradoria Geral da República para que sejam adotadas as medidas cabíveis. 


Assessoria de Comunicação
Ministério Público Federal no Mato Grosso
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Você sabe o que é REDD?

O que é REDD?
REDD é a sigla para Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação florestal*.
 
Quando foi lançada a ideia do REDD?
A proposta foi lançada com esse nome pela primeira vez em 2005, durante uma das conferências anuais da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre a questão do clima. Nessas conferências, governos discutem o problema das mudanças climáticas e do aquecimento global, e a expectativa é que delas pudessem sair medidas para solucionar esses graves problemas. 

O que causa as mudanças climáticas e o aquecimento global?
A partir do início da Revolução Industrial, há cerca de 200 anos, ocorreu um aumento drástico do uso dos combustíveis fósseis, como petróleo, carvão mineral e gás natural para se obter energia. Isso possibilitou a produção capitalista industrial e o consumo em massa. O resultado dessa escalada de consumo de petróleo, carvão mineral e gás tem sido a emissão de um grande volume de gases na atmosfera, principalmente o CO2 (dióxido de carbono, que é o carbono na forma de gás), o que tem levado ao chamado ”efeito estufa”, gerando o aquecimento global, que está mudando o clima do planeta muito rapidamente. Para frear o aquecimento global, é fundamental parar de queimar combustíveis fósseis, o que só será possível com a mudança do modelo de produção, comercialização e consumo.

Quem são os responsáveis e o que eles fizeram para frear o processo?








Apesar de se tratar de um processo global, as causas do aquecimento não têm sido “globais” e nem todos os seres humanos têm culpa por essa situação. Historicamente, os maiores responsáveis pelas emissões dos gases de efeito estufa são um conjunto de atores, incluindo grandes empresas transnacionais e instituições do capitalfinanceiro, que se beneficiam muito desse modelo de produção e consumo em massa dependente dos combustíveis fósseis, e têm interesse em mantê-lo. Em sua maioria, esse conjunto de atores se concentra nos países industrializados do Norte, incluindo América do Norte, Europa e Japão. Os governos desses países ainda não quiseram tomar as medidas necessárias para reduzir as emissões de gases porque isso afetaria profundamente os interesses de suas grandes empresas e instituições financeiras.

E o que o REDD tem a ver com tudo isso?
O REDD foi uma das falsas soluções apresentadas e apoiadas por governos e empresas que buscam evitar a redução real de emissões em seus países. Os promotores do REDD argumentam que, na medida em que o desmatamento, sobretudo em países tropicais, contribui com algo em torno de 15% para todas as emissões de CO2 no mundo, evitá-lo, além de preservar as florestas, ajudaria a reduzir a quantidade desse gás liberada na atmosfera. Ao mesmo tempo, os promotores do REDD argumentam que, como as árvores absorvem CO2 para crescer, a floresta poderia absorver parte do gás emitido pela queima de petróleo, carvão mineral e gás natural. Eles argumentam que isso ajudaria a reduzir o impacto das mudanças climáticas.

Mas isso funciona?
Não. Em primeiro lugar, a proposta do REDD não funciona porque não enfrenta a causa principal do problema: o modelo de produção, comercialização e consumo em massa. Ao defender medidas como o REDD e atendendo aos interesses dos grandes capitalistas, mantém-se a crença de que é possível resolver o problema preservando esse modelo. Em segundo lugar, o mecanismo do REDD não funciona porque parte do pressuposto de que, evitando-se emissões de carbono do desmatamento, é possível permitir a continuação da queima de combustíveis fósseis.

Por que isso não funciona?
Porque para o clima, há uma diferença muito importante entre dois tipos de carbono: por um lado, o carbono que é emitido quando ocorre o desmatamento, algo que faz parte do ciclo natural do carbono emitido e absorvido por vegetais. Por outro lado, há outro carbono que é liberado ao se extrair e queimar petróleo, gás ou carvão mineral. Este último aumenta o estoque total de carbono na atmosfera porque se trata de carbono que esteve guardado no subsolo durante milhões de anos. Mesmo que os vegetais consigam absorver parte desse carbono adicional, fazem isso apenas temporariamente, porque, quando a planta morre, quando há desmatamento ou fogo, o CO2 é novamente emitido, voltando para a atmosfera.

Mas, mesmo assim, o REDD pode ser uma solução para as mudanças climáticas?
Não. Mesmo que seja importante reduzir o desmatamento e conservar as florestas por inúmeras razões, entre elas, pelos povos que delas dependem, usar projetos de REDD para sugerir que isso poderia compensar emissões de petróleo, carvão mineral e gás em algum outro lugar do planeta atrasa decisões que lidem com aquilo que causa diretamente as mudanças climáticas: o uso industrial de combustíveis fósseis. E se apostarmos na ideia de que projetos de REDD podem compensar emissões de combustíveis fósseis, com o tempo, a quantidade de CO2 na atmosfera só aumentará e o problema das mudanças climáticas se agravará.

Ainda assim, o REDD tem conquistado muito apoio. Por quê?
O apoio entre os países com florestas tropicais se explica facilmente porque o REDD é visto por eles como uma oportunidade. Eles sabem que o REDD pode gerar dinheiro, desde que se comprometam a evitar o desmatamento. As ONGs conservacionistas que querem preservar as florestas também se empolgaram porque, com o REDD, visualizam uma oportunidade para combater o desmatamento e conseguir recursos para aumentar as áreas de florestas preservadas.Também os países poluidores abraçaram com entusiasmo a ideia porque seria uma forma relativamente fácil de darem uma resposta ao problema sem precisar reduzir suas emissões, vendendo a ideia de que estariam compensando a poluição. Outro grupo, ligado ao chamado capital financeiro, também se interessou muito. São bolsas de valores, fundos e bancos de investimentos, que enxergaram no REDD um novo mercado.

Um mercado? Como assim?
No mundo capitalista, que quer transformar tudo em mercadoria, os promotores do REDD pensaram, desde o início, que o REDD deveria funcionar através de um mercado. Só um mercado poderia gerar o dinheiro necessário para conservar as florestas no mundo. A mercadoria inventada e a ser negociada se chama “crédito de carbono”. Um “crédito de carbono” é nada mais que um papel, um documento, que representa uma tonelada de CO2 em alguma área no mundo onde haja um projeto que alegue estar reduzindo as emissões de CO2. No caso do REDD, o crédito de carbono representa a alegação de que uma tonelada de CO2 estaria sendo armazenada por não desmatar.

Como saber quantos “créditos” podem ser vendidos, ou seja, como determinar quantas emissões de CO2 serão evitadas com o projeto de REDD?
Para saber quantos créditos de carbono serão gerados a partir de cada projeto, os promotores do REDD dizem que é preciso fazer uns cálculos, bastante complicados. Inicialmente, seria necessário calcular quanto carbono há em uma área com floresta onde se propõe fazer um projeto de REDD. Isso é difícil ou impossível; hoje, não existe um método que faça esse cálculo de CO2 de forma confiável; por isso, os técnicos usam modelos aproximados e bastante complicados. São estudos que consomem muito dinheiro, mas é impossível chegar a um cálculo preciso e tampouco se conseguem verificar os números que resultam desse cálculo. Esses números podem variar em mais de 50%, entre um estudo e outro. Mas é preciso fazer outro cálculo, ainda mais complexo. Trata-se de saber a quantidade de carbono que a floresta terá futuramente com sua proteção proposta no projeto de REDD um prazo que se costuma estabelecer no acordo firmado entre o vendedor e o comprador dos “créditos de carbono”. Há ainda um terceiro cálculo realmente impossível de fazer, mas, ao mesmo tempo, essencial para comercializar créditos de carbono: a quantidade de carbono que a floresta teria no caso de não haver nenhum projeto de REDD. É um cálculo ainda mais imaginário do que os outros dois, porque, com o projeto de REDD sendo realizado, ninguém jamais saberá dizer o que teria acontecido sem esse projeto.

Por que esses cálculos são tão importantes?
Porque o comprador de um “crédito de carbono” compra o “direito de emitir” uma tonelada a mais de carbono que não poderia emitir. O crédito dá o direito ao comprador de alegar que os danos causados por suas emissões de carbono foram neutralizados. Ou seja, o crédito justifica uma emissão extra e, portanto, a redução também deve ser extra, em um nível que não teria ocorrido sem o projeto de REDD. Descontando a quantidade de carbono que se espera armazenar na floresta fazendo o projeto de REDD da quantidade de CO2 que se imagina que a floresta teria sem o projeto, tem-se a quantidade de emissões de carbono que o projeto afirma ajudar a evitar.

Isso resulta num cálculo confiável?
Não. A lógica desses cálculos mostra, por um lado, que eles não são confiáveis. Mas, para produzir algo que seja aceitável ao mercado de carbono, que quer saber se o crédito de carbono a ser negociado é confiável, produz-se uma quantidade enorme de documentos, envolvendo uma grande quantidade de consultores. Primeiro, para realizar o trabalho de cálculos, segundo, para verificar e auditar este trabalho e, terceiro, para certificar o projeto e dar garantias ao mercado de que o “crédito de carbono” de fato existe e é confiável.

E como estabelecer o preço do carbono?
O preço que um documento de “crédito de carbono” pode render depende de quanto vale o crédito, o que, na teoria, é determinado no mercado de oferta e demanda de carbono, ou numa negociação entre consultores e o comprador. Seu preço nos últimos anos oscilou entre 12 e 26 reais (US$ 5-12) por tonelada. Estima-se que os consultores e técnicos envolvidos nos estudos de cálculos do carbono absorvam mais da metade do valor do “crédito de carbono” para pagar por seu trabalho. Lembrando também que o valor imenso de toda a floresta impossível de se traduzir em preços não é levado em consideração, e o que vale é o valor monetário do carbono. Além disso, o REDD exige dos Estados que façam legislações para estabelecer regras sobre o funcionamento e a fiscalização do mercado de carbono, dando garantias aos comerciantes do CO2. Essas legislações também são bastante complexas, como a que já existe no Acre, no Brasil.

Até agora, falamos de REDD, mas também se fala de REDD+ e REDD++? O que é isso?
O REDD+ foi lançado em 2009 e amplia a proposta do REDD, incluindo os seguintes itens: “conservação de estoques de carbono florestal”, “manejo florestal sustentável” e “fortalecimento de estoques de carbono florestal”. Significa que qualquer área florestal com uma proposta de manter uma floresta “em pé”, mesmo com projetos de “manejo sustentável” que continuem destruindo a floresta, apenas mais gradativamente, pode conseguir um projeto de REDD+. Ou que projetos para regenerar uma área plantando monocultivos de árvores de eucalipto, inclusive transgênico, poderiam conseguir um projeto de REDD+.

Por que essa ampliação do REDD para REDD+?
Porque a ideia original do REDD criou dificuldades para que todos os países pudessem receber recursos. Por exemplo, países com muitas florestas tropicais, mas com uma taxa de desmatamento baixa, não poderiam ganhar dinheiro com a proposta original do REDD por falta de argumentação que sustente que projetos de REDD nas suas florestas pudessem gerar muitos créditos de carbono, pois a taxa de desmatamento já era muito baixa. A eles interessava incluir a opção de “conservação de estoques de carbono florestal”, ou seja, manter as florestas existentes como uma forma de também poder receber dinheiro vendendo créditos de carbono. O REDD++ amplia ainda mais o conceito do REDD+ para além de florestas, incluindo agricultura e outros usos do solo.

Por fim...
Desde 2005, governos com florestas tropicais, empresas de consultoria e grandes ONGs preservacionistas têm recebido volumosos recursos para se preparar para o REDD. Surgiram dezenas de projetos-piloto de REDD para buscar implementar a proposta na prática e mostrar que o mecanismo pode funcionar bem. O REDD já entrou em áreas onde vivem comunidades que dependem das florestas.

* Texto retirado da cartilha 10 Alertas sobre REDD para comunidades, uma publicação do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM, em sua sigla em inglês)

Fonte da notícia: Assessoria de Comunicação - Cimi

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Economia verde: o capitalismo em sua fase surreal

Algum dia da sua vida você chegou a imaginar que a espiritualidade dos povos indígenas poderia ser comprada? Nos seus piores sonhos, pensou em pagar pelo trabalho de polinização que as abelhas realizam desde que o mundo como conhecemos hoje é mundo? Concebeu que uma paisagem teria um valor definido em uma bolsa de valores? Ou, ainda, acreditou que seria possível pagar pelos conhecimentos milenares de comunidades tradicionais, como os pescadores artesanais e as quebradeiras de coco?

Mesmo considerando que os povos do Sul global foram, desde o início dos processos de colonização, literalmente roubados pelos países do Norte – através da intensa exploração mineral, da extração de madeira e biodiversidade, da usurpação de conhecimentos tradicionais e da escravidão -, as perguntas acima soam como surreais e inimagináveis. Isso se deve ao fato de que essas situações colocadas remetem a uma fronteira extremamente radical do capitalismo: a financeirização da natureza – que, aliás, só seria possível através da privatização da natureza.


O pior é que essa “financeirização e privatização da natureza” tornou-se realidade. Isso mesmo, há vários anos os capitalistas trabalham no sentido de privatizar e financeirizar os elementos da natureza – água, terra, ar, fauna, flora, conhecimentos dos povos tradicionais – e as as funções essenciais - fotossíntese, retenção de carbono, polinização, transporte de sementes pelos pássaros - que a natureza realiza para garantir a própria vida na Terra, não somente de humanos, mas de todos os seres vivos.

Claro está que para os mercados mundiais, para quem o que importa é a maximização dos lucros, o comércio de serviços ambientais representa uma nova e promissora fonte de lucratividade.

No entanto, a imensa maioria da população brasileira e mundial não sabe o que significa esta proposta macabra e assustadora que evolui rapidamente nos escritórios do Banco Mundial, de algumas das ONGs conservacionistas mais ricas do mundo, que ainda se aliam a corporações historicamente reconhecidas como destruidoras do meio ambiente, como a Shell, a Dow Chemical, a BHP Billiton, a British American Tobacco, a Petrobras e a Vale.

Como é comum em ocasiões que interessam aos poderes hegemônicos do capital, a proposta é baseada em conceitos bastante abstratos, de difícil compreensão e com um vocabulário repleto de termos em inglês e de um sem fim de siglas que parecem uma sopa de letras: CO2, IPCC, Redd, MDL, Waves, GEE, UNFCCC, PSA, Teeb, Nama, CCRA, COP, MEA...

Ou seja, é explícito o vasto desconhecimento sobre o tema das mudanças climáticas, sempre retratado pela mídia de modo alarmista, superficial e descontextualizado e, ainda, sujeito das distorções feitas em nome dos interesses corporativistas. Esta nova fronteira do capitalismo, a “verde”, se coloca como heroína, no sentido de apresentar os mecanismos e instrumentos necessários para ou “mitigar” ou atenuar os problemas climáticos e econômicos. E, assim, ela chega mascarada de “verde”, “sustentável”, “ecológica”, “florestal” e, agora, até mesmo “holística”.

No entanto, considerando seus principais “mentores” e a insistente recusa dos países industrializados – historicamente responsáveis pela poluição do planeta e de sua atmosfera – em se comprometerem com a diminuição de suas emissões de gases de efeito estufa (considerados os responsáveis pelas mudanças climáticas), fica evidente que o capitalismo verde é uma falsa solução.

Além de desconsiderar a dívida climática que estes países têm com os povos do Sul global – afinal, foi através do consumo desenfreado de combustíveis fósseis e da apropriação de bens comuns que eles cresceram economicamente -, esta proposta ainda pretende, através de mecanismos de “compensação”, colocar nas costas destes povos – que sempre preservaram os seus territórios - um ônus consideravelmente maior.

Através da perda da autonomia e do controle dos territórios pelas populações tradicionais, pretende-se impedir que a caça, a pesca, o roçado e outras atividades necessárias para garantir a sobrevivência destes povos continuem a ser feitas de modo a “compensar” as ações de destruição e poluição feitas pelas corporações, porque elas não pretendem mudar o seu modo de produzir.

Grave é a constatação de que muitos projetos do capitalismo “verde” já estão implementados no Brasil e em outros países. E as comunidades tradicionais e os povos indígenas estão diretamente ameaçados por eles.

Ofensiva à vista

A próxima Conferência das Partes (COP) das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 20) será realizada em Lima, noPeru, em novembro de 2014, e deverá avançar no sentido da normatização de uma legislação internacional para os mecanismos da economia verde. Processo que, provavelmente, será finalizado na COP 21 a ser realizada em 2015, em Paris, na França (país industrializado, localizado no Norte global). A partir daí, o caminho estará traçado para as legislações nacionais e as corporações poderão contar com uma segurança jurídica para suas empreitadas. Assim, rasga-se a Constituição Federal, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e outras normas e legislações que garantem o direito dos povos indígenas e tradicionais aos seus territórios.

Diante desta nova estratégia do sistema capitalista e de suas instituições, corporações e ONGs aliadas, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), mais uma vez, coloca-se ao lado dos povos indígenas e na defesa de seus direitos. Articulados com outros parceiros, nos próximos dias, estaremos resgatando algumas análises e publicações que contribuem para a reflexão e para uma perspectiva crítica sobre o capitalismo “verde”.

Nesse sentido, estaremos empreendendo esforços para compreender as propostas e os mecanismos, suas consequências e impactos na vida dos povos; para compartilhar essa compreensão e as análises feitas a partir dela; e para resistir, seja contribuindo para a organização dos povos seja ressaltando a perspectiva milenar do Bem Viver. Através dela, os povos indígenas estabelecem uma relação de harmonia com os outros seres e com a natureza - não baseada no produtivismo e na competição, algumas das causas da atual crise civilizatória que vivemos.

Na convivência com os povos indígenas, percebemos que são eles, com seus conhecimentos e sabedoria, as fontes inspiradoras para um outro tipo de modelo de sociedade onde o “ser” prevaleça sobre o “ter”, enfim, para uma real sociedade do futuro.

Fonte da notícia: Assessoria de Comunicação - Cimi

MAIS 7X1: Fifa comprou créditos de carbono do Acre para "neutralizar" impactos da Copa

POR MICHAEL FRANZ SCHMIDLEHNER*

Um elemento central na lógica da "economia verde" é o princípio da compensação ambiental. O mercado de carbono é baseado na idéia de que seria possível compensar emissões excessivas de gases de efeito estufa em um lugar por meio de reduções de emissões ou fixação desses gases em outros lugares e em outros contextos. Sistemas como "cap and trade" (em inglês, limitar e comercializar) permitem que as indústrias, ao invés de reduzir suas emissões dentro dos limites legais, possam "compensar" as emissões excedentes por meio de créditos de carbono. Esses créditos podem ser gerados, entre outros, através de projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, chamados REDD e REDD +. Os "títulos" ou "créditos" emitidos a partir destes  projetos devem comprovar o sequestro, fixação ou redução do fluxo de carbono em uma determinada área.

Além do fato de que a ideia básica "pagar para poluir" é eticamente questionável, os complexos arranjos dos projetos do tipo REDD apresentam uma série de graves problemas técnicos. O pesquisador britânico Larry Lohman resume: "As supostas reduções obtidas por essas compensações são baseadas sistematicamente em situações improváveis ​​e hipotéticas, e pouco levam em conta os impactos negativos sociais e ambientais do modelo de desenvolvimento em que estão enquadrados". Estes problemas se tornam ainda mais graves em programas de nível sub-nacional, ou seja, iniciativas a partir de regiões, províncias ou estados federais.  Tais iniciativas, ao gerarem fatos e estabelecerem normas regionalmente, tendem a minar as constituições de seus países, e foram julgados impraticáveis por várias organizações ambientalistas, tais como Greenpeace,  e esmagadoramente rejeitados pelos 194 países que fazem parte da Convenção-Quadro sobre Mudança do Clima (UNFCCC).

Acre como vitrine do REDD+

O Acre preenche internacionalmente um papel chave no avanço de mecanismos como REDD+ em nível sub-nacional.  Através  da  lei 2.308 de 2010, o governo  deste Estado criou o Sistema de Incentivos a Serviços Ambientais (SISA), visando estabelecer uma base legal para a criação e comercialização de diversos tipos de "serviços ambientais", especificamente por meio do programa ISA-Carbono - créditos de carbono. Há veementes críticas por parte de organizações da sociedade civil no Acre, denunciando que não houve uma adequada consulta pública antes da criação da lei. Estas organizações entendem que, de acordo com a Constituição Brasileira, processos ecológicos essenciais são inapropriáveis e inalienáveis e não podem ser transformados em mercadoria, apontando ainda os riscos e perigos que estes projetos representam pelas comunidades nas florestas acreanas.

Estas críticas não impediram que, logo após a criação da lei SISA, o governo atraísse grandes recursos financeiros de bancos e agências internacionais de desenvolvimento, recompensando e incentivando suas políticas de financeirização da natureza através dos "Serviços Ambientais".  A articulação com tais agencias e bancos vem sendo facilitada por grandes ONGs, tais como Fundo Mundial para a Natureza (WWF), Fundo de Defesa Ambiental (EDF) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam). Estas organizações, fazendo forte uso da histórica luta dos povos da floresta no Acre e da imagem de Chico Mendes,  promovem a iniciativa do governo acreano internacionalmente como "vitrine" para políticas de REDD e serviços ambientais.

Financiamento de REDD+

Reunião da Força Tarefa dos Governadores para o Clima e Florestas (GCF) em Rio Branco é uma iniciativa de colaboração sub-nacional, que atualmente integra 22 estados, províncias  e regiões de sete países e que trabalha para identificar e atrair oportunidades de financiamento de projetos REDD+.

Em 2010, o então governador do Acre, Arnóbio Marques, logo após a criação da lei SISA, firmou um "memorando de entendimento"  que visa a comercialização de créditos de carbono entre Acre, Chiapas (Mexico) e California (EUA). Desde então, o estado assume neste grupo um papel de destaque. O memorando deve permitir que indústrias californianas, para cumprir com a lei climática no seu estado, possam, através de um sistema "cap and trade", compensar emissões excedentes com créditos de carbono gerados a partir de áreas de florestas tropicais.  Assim como a criação da lei SISA, as compensações previstas no memorando  encontram forte resistência no Acre. Durante a conferencia Rio+20, em 2012, um grupo de ativistas lançou o Dossiê Acre, para evidenciar que as políticas governamentais no Estado, em vez de representarem um exemplo bem-sucedido para a implementação da economia verde na Amazônia, exemplificam justamente a falência deste modelo, revelando-o como ambientalmente destrutivo e socialmente excludente. Tambem em Chiapas, onde os projetos REDD+ causam conflitos de terra, e na California, onde as emissões excessivas têm impactos diretos sobre a saúde de comunidades de baixa renda nas proximidades das fabricas, grupos da sociedade civil organizada estão se opondo contra as compensações de carbono.

Ignorando os crescentes questionamentos e criticas acerca da compensação de emissões enquanto solução para o clima, do perigo da criação de uma "bolha de carbono" no mercado financeiro e dos impactos dos projetos REDD+ sobre comunidades locais, o GCF insiste em ampliar suas áreas de atuação e continua propagando REDD+ como se fosse solução vantajosa para todas as partes, apresentando o Acre como "experiência pioneira". Na reunião do GCF em 2013, o atual governador do Acre, Sebastião Viana, foi eleito como líder do grupo, e a reunião de 2014 agendada para a capital acreana. A reunião e aberta ao publico e será realizada nos dias 11 a 14 de agosto, nas facilidades da Maison Borges (Rua das Acássias, 1001 - Distrito Industrial SETOR B) em Rio Branco (AC).

Impactos de projetos REDD no Purus

Em junho de 2012, poucos dias antes da conferência internacional Rio +20, o governo do Acre comemorou publicamente o registro formal do primeiro projeto privado de serviços ambientais, o "Projeto Purus", no Programa ISA Carbono. Durante a cerimônia de registro do projeto, o vice-governador do Acre falou de um "momento marcante na história do Estado". O protocolamento do projeto deve ser o primeiro passo para a inclusão final no programa ISA Carbono. Os autores obtiveram  cartas de apoio de diversas instituições estaduais.  A descrição do projeto pela empresa estadunidense  CarbonCo, LLC começa com uma dedicação a Chico Mendes, fazendo menção dos empates em defesa das florestas acreanas: "Parabéns Chico, você não era um visionário: o Projeto Purus é a materialização deste sonho". O projeto ganhou a certificação "ouro" de uma das principais certificadoras internacionais para projetos REDD e já vendeu créditos de carbono para um evento de um cassino em Las Vegas (EUA) e recentemente para a realização da Copa do Mundo 2014 pela FIFA, supostamente "neutralizando" impactos ambientais destes eventos.

Em dezembro de 2013, sérias acusações de violações dos direitos dos residentes na área deste e de dois outros projetos REDD+ (Projeto Valparaiso e Projeto Russas)  foram publicadas depois de uma visita da Relatora Especial da Plataforma Dhesca (Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais). Entendeu-se que o manejo tradicional dos pequenos agricultores vem sendo criminalizado, impondo-lhes restrições que justifiquem a venda de carbono e ameaçando seu direito a terra.

REDD+ durante a reunião da SBPC

O assunto da Economia Verde e REDD+ vem sendo tratado também durante a reunião da SBPC, que está sendo realizada nesta semana no campus da Universidade Federal do Acre.  O evento "Tributo a resistência dos povos da Amazônia", com o subtítulo  "Do progresso que mata e destrói as ciências para  o 'Vivir Bien'" por sua vez, procura contribuir com  um olhar mais critico sobre progresso e ciência:  "Ademais de um cenário marcado pela intensiva instrumentalização do discurso científico - para fins de legitimação das adaptações instituídas sob os cânones  da  "economia verde" - acelera-se a destruição em larga escala."   Nesta quinta-feira (24), às 15h, Diego Cardona (Amigos da Terra Internacional); Lucia Ortiz (Amigos da Terra Brasil), Luiz Zarref (MST); Amyra El Khalili (Aliança RECOs); Ninawa (FEPHAC) participarão de uma mesa redonda sobre territórios indígenas e camponeses na mira da "economia verde".

No dia 25, às 9h da manhã,  a mencionada Relatora da Plataforma DHESCA, Cristiane Faustino, junto com Luiz Zarref (MST); Dercy Teles (STTR de Xapuri); Maria de Jesus (UFAC)  estará conferenciando sobre "Economia verde" no Acre: apontamentos  preliminares da Missão realizada pela Relatoria do Direito Humano ao Meio Ambiente  da Plataforma Dhesca. Com este evento espera-se inclusive informações sobre a visita da Relatoria nas áreas dos projetos REDD+ no Acre e sua avaliação.

Ainda no dia 25, as 14h30, fazendo parte da programação SBPC Indígena, José Carmélio Nunes Ninawá  Hunikuin (FEPHAC), Jorge Gabriel Furagaro Kuetgaje  (COICA), Almir Suruí (METAREILA), Delson Gavião  (PANDEREEHJ), João Neves Silva Galibi Marworno  (COIAB), Lucio Ayala (CIDOB), Julio Elbert Pareja Yañez (FENAMAD), debaterão, sob  moderação de Joaquim Tashkã Yauanawá (ASCY) sobre REDD Indígena, Serviços ambientais e Territórios Indígenas.

O avanço do debate, ou seja, se as criticas apresentadas pela sociedade terão qualquer influência sobre as políticas ambientais a nível governamental, dependerá principalmente do interesse e da participação da população. A sociedade deve fazer valer seu direito de ter total transparência e participação em qualquer decisão que afeta seu patrimônio natural.

* Michael Franz Schmidlehner é mestre em filosofia pela Universidade de Viena e liderou a campanha internacional contra a patente do cupuaçu por japoneses

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Bravos Índios Livres: matéria do CIMI sobre os isolados do Envira

Por Renato Santana,
de Feijó (AC)
O barulho do batelão reverbera no interior da floresta. Sobre o teto do barco, no horizonte de pálpebras cerradas pelo sol do meio-dia, a zoada mais parece uma revoada de pássaros com asas de ferro invisíveis. A estridência metálica, dentro da mata, espanta araras, macacos e demais bichos no sincopado tu-tu-tu-tu do motor, som reconhecido pelos indígenas em situação voluntária de isolamento na Amazônia como sinal aliterado da sociedade que os envolve. É inverno nesta porção extrema do país.As águas correm abundantes e a embarcação singra, sem muitos percalços, as entrelinhas da lâmina de água, lidas atentamente pelo barqueiro que desvia de troncos, na maioria das vezes submersos, e evita trechos mais rasos ou de intenso rebojo. No verão o rio seca e apenas cascos pequenos conseguem passagem entre as praias naturais, cujas areias oferecem aos isolados ovos de tracajá. O calor e a umidade perpassam as estações, assim como os piuns e carapanãs. O batelão navega contra a corrente vazante, e sete dias depois da saída do porto movediço de Feijó (AC) chegamos à Terra Indígena Kampa/Isolados, demarcada no paralelo 10°S, Alto Rio Envira, já na fronteira do Brasil com o Peru, onde as águas tingidas pelos sedimentos e barro passam a dar vida ao Rio Xinane. Esse vasto mundo se reduz, a cada dia, para os isolados, ainda que tenha o mesmo tamanho.
A região é uma das últimas no mundo a ter grupos de povos livres. Com a Constituição de 1988 e mais protegidos pelas demarcações, todavia vulneráveis às invasões dos territórios, eles conseguiram resistir aos massacres e dobraram suas populações nas últimas décadas. Exercem o pleno direito de resistência às vontades integracionistas da “civilização” e preservam suas próprias instituições sob a memória de uma vida de correrias. Chamadas na região de bravos, essas populações se negam ao contato com as sociedades que as envolvem – sejam as indígenas ou mesmo as ribeirinhas, cujas origens naquelas matas estão em famílias de seringueiros instaladas por ali desde o final do século XIX e decorrer do XX pelas frentes de colonização. Os ashaninka, tal como eles se autodenominam, dividem a Terra Indígena Kampa/Isolados com os bravos e os chamam de maxiriantsé, os valentes. A semântica oferece outro significado para o aparente tom pejorativo da palavra bravo, mas delimita a complexa noção de alteridade presente entre essas nações e seus convívios autodeterminados. No entanto, em terras onde grupos indígenas insistem contra a capitulação de suas formas livres de vida e outros lutam diariamente pela sobrevivência em interface com a sociedade branca, ser bravo, no sentido dado pela língua ashaninka, tornou-se um traço marcante entre esses povos. As relações culturais críticas dessas experiências, no reforço das alteridades tanto dos isolados como dos demais povos, geram um dos contextos mais complexos entre isolados e índios contatados do Brasil.
Entre o final de junho e durante todo o mês de julho essa história ganhou mais um episódio. Um grupo de indígenas livres causou alvoroço ao entrar na aldeia Simpatia, onde vivem os últimos ashaninka antes da fronteira com o Peru. Durante o primeiro semestre deste ano, os ashaninka relataram acontecimentos similares, todos encaminhados ao Ministério Público Federal (MPF) e à Fundação Nacional do Índio (Funai) pelos indígenas por intermédio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Não se trata, portanto, de um contato inédito. Dessa vez, porém, a Funai decidiu agir e montou na aldeia, em parceria com o governo do Acre, a Operação Simpatia. Os indígenas ficaram impedidos de sair da comunidade. No dia 26 de junho, servidores do órgão indigenista e os ashaninka estabeleceram novo contato com alguns desses livres que, conforme a equipe de sertanistas, estavam com gripe. A Funai divulgou foto com três deles. Durante o tratamento realizado por profissionais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), os indigenistas identificaram que esses livres falam um idioma do tronco linguístico pano, o mesmo de outros povos do Acre e Peru. Os isolados então puderam ser entendidos, de forma precária, sobre os ataques que vêm sofrendo, possivelmente de madeireiros e narcotraficantes peruanos. Em seguida voltaram para o interior da floresta no caminho das malocas de seu povo. Desativada há pouco mais de três anos, a Base do Xinane da Frente de Proteção Etnoambiental do Rio Envira retomará os trabalhos.   
Frente da borracha... Frente Etnoambiental
Na Terra Indígena Kampa/Isolados está instalada também a Base do Xinane, a três horas de barco da aldeia Simpatia no rumo da fronteira com o Peru. A estrutura foi abandonada depois de ataque de narcotraficantes, em junho de 2011.1 Antes, porém, de entender essa história que impactou a vida tanto dos ashaninka quanto dos bravos nos últimos anos, além do povo madja, também presente naquelas terras, precisamos fazer uma retrospectiva que remonta a cerca de cem anos atrás. No início do século XX, sobretudo depois da Primeira Guerra Mundial, as mobilizações voltadas à ocupação territorial da região Norte do Brasil se acentuaram. Nas décadas de 1930 e 1940, com ênfase no governo de Getúlio Vargas e nos acordos firmados com os Estados Unidos ante os esforços da guerra travada na Europa, frentes de colonização foram organizadas e seguiram rumo aos confins da Amazônia. Se por um lado a exploração das seringas entraria em seus ciclos econômicos, por outro o Norte passaria a ser parcialmente povoado, e o “espaço vazio” brasileiro, assim considerado pelo governo central, preenchido. Todavia, aquelas florestas tinham dono. Não estavam vazias. Nelas viviam povos indígenas ainda sem contato, que também fugiam. Entrecortado por rios com nascentes nos Andes e correntes às águas do Amazonas, a grande serpente, o Acre foi um dos estados que teve suas seringas e nações indígenas rasgadas por inúmeras frentes de colonização da borracha.
As varações e os igarapés entre os principais rios do estado foram as principais rotas de fuga dos povos indígenas. Os mais velhos chamam esse período de “tempo das correrias”. As mortes eram hediondas aos indígenas que resistissem à escravidão e às vontades dos senhores no poder. Caçadores de índios em nada perdiam aos seus antepassados que ilustraram em tintas de terror a história da invasão europeia à Ameríndia. No Rio Envira, onde, no Médio, viviam os huni kui e, no Alto, os madja, os grupos isolados, para fugir da violência das frentes de colonização, seguiram para mais perto da fronteira com o Peru e para além dela, numa área de circulação que lhes possibilitava resistir. Ao Envira, no entanto, as frentes de colonização não levaram apenas a própria sanha, mas também outros indígenas, que entre outros trabalhos atuavam como mateiros, além de intermediários ao contato agressivo com os povos livres. Afinal, se naquelas terras não viviam, ao menos circulavam. Os isolados, desde então, associam os ashaninka ao tempo dos massacres, contatos violentos, mortes e fugas. Com o fim dos ciclos da borracha, tais frentes de colonização desfizeram-se. Aos ashaninka e povos livres restou a herança do trauma coletivo, que segue pautando as relações entre essas sociedades. Nos últimos anos, com o retorno cada vez mais acentuado dos isolados a antigos territórios hoje ocupados pelos ashaninka, as excursões de livres às aldeias têm sido constantes. Levam terçados, roupas, redes, utensílios domésticos, tudo o que se pode colher nas roças e até mesmo crianças. Os ashaninka aprenderam a lidar com tais “delitos” sem violência, mas temem que em algum momento algo de mais grave aconteça – como antigamente. Caciques e demais lideranças tramam os fios tênues dessa história, elásticos como uma linha de borracha.
“No Rio Envira, os ashaninka sempre andaram, mas nascer aqui só os mais novos. Os mais velhos foram trazidos de outros lugares pelo kairu (branco), de aldeias do Peru. Acontece que estamos aqui e enterramos nossos mortos, fazemos nosso ritual. Nossos filhos nasceram aqui. Nossas aldeias cresceram. Ashaninka não quer brigar com bravo, mas quem aguenta ter suas coisas levadas? Se eles matarem um ashaninka, como faremos?”, indaga Txate Ashaninka, que não sabe ao certo a própria idade, mas aparenta ter por volta de 75 anos. Os olhos vão de um lado a outro em movimentos curtos, num rosto magro, queimado de sol. O cuzmã, espécie de batina e vestimenta tradicional do povo, cobre do pescoço aos pés a baixa estatura de seu corpo de pássaro. As mãos ossudas de Txate alternam entre segurar o próprio queixo, numa postura de reflexão, e apontar a mata enquanto a cabeça mergulha nas memórias encravadas nas árvores que ladeiam o Envira. “Naquela ali eu subia com as outras crianças. Alta, né? Os macacos vinham para perto”, aponta da janela do barco. “Era aldeia antiga nossa. Mais para trás tem kamarambi(ayahuasca) e onde era a roça do meu tio. Saímos daqui por causa dos bravos, mas nunca ninguém morreu.Teve flechado, mas sem mortes”, recorda Txate.
Tal como as árvores carregadas pelo Envira, cujas sementes germinam novas plantas em outras margens, as aldeias ashaninka desfeitas por conta da relação conflituosa com os povos livres reflorestaram o povo em outros pontos do rio, mais longe dos locais de aparição dos bravos. Na década de 1980, a aldeia Xinane foi um desses casos. Bem próxima da fronteira com o Peru, era constantemente alvo dos isolados. Os ashaninka que nela viviam a desativaram e se espalharam em outras aldeias ou fundaram novas. A elas os isolados também chegavam, e assim outras aldeias foram descendo o rio até quase o Médio. Com o aumento das tensões, e já sob uma nova política com relação aos povos em situação de isolamento voluntário, que previa o direito desses grupos de ter uma vida preservada da indesejada companhia das demais sociedades, a Funai construiu uma baseno local da antiga aldeia Xinane. O objetivo era identificar quem eram esses livres, demarcar o território e impedir conflitos entre eles e os ashaninka. Mais tarde, a estrutura passou a integrar a Frente de Proteção Etnoambiental do Xinane.

“Sou o passado falando”
O sertanista José Carlos Meirelles fundou a base e nela viveu durante 22 anos, entre 1988 e 2010. Criou filhos, que com o tempo passaram a trabalhar em frentes de proteção, manteve uma família e a ela agregou os peões que sobre os pisos de madeira da pequena vila também moravam. As histórias de Meirelles são despudoradas quanto a finais felizes e tampouco o transformam em herói defensor dos povos indígenas. “Sou o passado falando”, diz. Prefere a prosa ao discurso e não se priva de relatar, com seu sotaque de homem do interior, episódios de que não se orgulha, como quando se viu diante de isolados e, para defender parentes, precisou atirar.O indígena atingido acabou morto.2Ou quando foi atacado pelos isolados num igarapé próximo da base, enquanto pescava. Uma flecha atravessou seu rosto e ele precisou ser levado de helicóptero para um hospital de Rio Branco (AC). “Andávamos na mata, coisa hoje esquecida. Parece que hoje se monitora índio isolado e protege-se o território via notebook”, afirma. Não há indigenista atuante na temática dos isolados que não tenha ouvido as histórias de Meirelles, seja para criticá-lo ou para tê-lo como referência. Entender, porém, as problemáticas dos isolados do Envira e a política para os isolados da Funai passa necessariamente por um pouco de prosa com Meirelles.
Quando chegou ao Xinane, o sertanista trabalhava com a informação de que apenas um povo isolado vivia na região. “Localizamos. Depois descobrimos que havia outro nas cabeceiras do Riozinho. Localizamos. Depois descobrimos mais um em 2008, além dos mascho piro que andam pelo Envira sazonalmente e com mais frequência de 2006 para cá. E muito provavelmente um quinto grupo que anda nas cabeceiras do Rio Jordão, oriundo da reserva Murunaua, no Peru”, explica Meirelles. O tempo e a perseverança, conta o sertanista, fiaram a metodologia de trabalho. As informações inicialmente eram de outros indígenas do Envira ou de ribeirinhos, mateiros. Com a consolidação da Frente do Xinane aperfeiçoou-se a captação de informações, com longas estadias no meio da floresta e monitoramentos por sobrevoos. Descobriu-se então que alguns desses povos são caçadores e coletores, caso dos mascho, que circulam na fronteira do Brasil com o Peru, nômades, e outros agricultores, com possível associação ao tronco linguístico pano. “Quando chegamos, ocorriam muitos conflitos entre os ashaninka e huni kui e os isolados. Em 1989 sobrevoamos suas pequenas malocas, que hoje já devem ser o dobro”, lembra Meirelles. O sertanista observa que esses povos tiveram um aumento populacional nos últimos anos e isso também provoca mudanças no comportamento. No Brasil, existem 94 povos em isolamento voluntário.

Narcotraficantes atacam
Se por um lado desde os anos 1980 se registram conflitos entre isolados e os demais povos das margens do Envira, por outro, a partir de 2005, data Meirelles, as cabeceiras do Envira no Peru, até então desabitadas pelo homem branco, foram invadidas por madeireiras e depois pela coca. Os empreendimentos, no geral, são de mesmo dono e a madeira é usada para lavar a coca. O avanço das fronteiras do crime organizado internacional para cima do território gerou o episódio de junho de 2011, quando a Base do Xinane foi cercada por narcotraficantes e a equipe de servidores da Funai retirada do local por helicópteros da Polícia Federal. Meses antes, em março, o traficante português Joaquim Antônio Custódio Fadista, condenado por tráfico de drogas no Brasil, Luxemburgo e Peru, foi detido na Base do Xinane depois de aparecer no local sozinho, portando uma mala com drogas e dólares e pedindo passagem. Levado para Rio Branco, foi extraditado para o Peru. Logo conseguiu liberdade e em junho regressou ao Xinane com capangas para se vingar de quem o havia detido e supostamente localizar a mochila recheada com drogas e dinheiro. Meses depois, em agosto, Fadista foi mais uma vez detido. Informados pelos ashaninka, a Polícia Federal e servidores da Funai chegaram ao Xinane para averiguar a circulação de supostos narcotraficantes. Durante a operação, a equipe localizou Fadista no meio da mata, nos arredores da Base do Xinane. O governo federal tem informações de queo narcotráfico, sediado do outro lado da fronteira, estuda a região com o intuito de utilizá-la.
A ação de madeireiras, portanto, estaria atrelada ao narcotráfico e a intensidade da ação delas na região está submetida ao avanço do negócio da droga no território compartilhado pelos ashaninka e pelos isolados. Sobrevoos realizados pela equipe do Xinane, do final dos anos 1980 até sua desativação em 2011 sob fogo cerrado dos traficantes, comprovam a ação de madeireiros. No entanto, tais investidas diminuíram depois da demarcação e da consequente proteção do território. No lado brasileiro registra-se a incidência de pequenos madeireiros, além da utilização da área dos isolados “como supermercado de carne, peixe e madeira por parte dos brancos. Os ashaninka e os madja também pescam nessas áreas para vender em Feijó”, diz Meirelles. A tendência é de que a Funai retome os trabalhos da Base do Xinane, mas como impedir que o território deixe de ser acossado pelo narcotráfico? No último dia 24 de março, a presidente do órgão indigenista, Maria Augusta Assirati, reuniu-se em Lima com representantes do Ministério da Cultura peruano para a formalização interinstitucional de protocolos para a proteção e promoção dos direitos dos povos isolados e de recente contato, que vivem nas regiões de fronteira entre os países. Aos indígenas, porém, fica a relação com os isolados.

“Sofreram muitas violências”
O cacique Ominá Madja tem uma pequena coleção de objetos dos isolados recolhidos na mata. Um de seus filhos aprendeu a tocar uma pequena flauta tingida de urucum e musgo. As janelas da casa do cacique miram a floresta chuvosa. Naquele mesmo dia pela manhã, um isolado foi avistado espreitando dependurado numa árvore. Por trás do manto de água nada se esconde. “Eles sofreram muitas violências. Como a gente também. Toda vida que índio morre por um pedacinho de terra, seja querendo ou defendendo ela. Só que os bravos não sabem tudo o que a gente sabe de vocês [brancos]”, analisa. Cacique da aldeia Igarapé do Anjo, homônimo de um dos igarapés onde os isolados mantêm aldeias, o indígena afirma que a relação dos madja com os livres não é pautada pela violência, mas que alimentam desconfianças mútuas. “Tentamos falar com eles, apesar de a língua ser diferente. Como a gente não ataca, eles chegam perto cada vez mais. Achamos cerâmica deles, panelas, flechas e flautas. Estão perto da gente”, diz Ominá. O cacique aponta para a ação de madeireiros na região, o que justificaria a aproximação cada vez mais constante desses povos às aldeias madja. Como no decorrer do processo histórico os madja e os ashaninka passaram a casar entre si, algumas aldeias são compartilhadas. “Aqui a gente é madjaninka”, riem. Se por um lado as fronteiras impostas pelos Estados nacionais não existem para as populações em isolamento voluntário, que circulam entre alguns países num grande território ancestral, aos ashaninka e aos madja a demarcação da Terra Indígena Kampa/Isolados é apenas uma formalidade importante. A comunidade Igarapé do Anjo está dentro dessa terra indígena, assim como a aldeia Terra Nova, onde o cacique Isanami Madja é casado com uma ashaninka.
Enquanto a esposa prepara caiçuma de mandioca, Isanami mostra a identidade puída. Levado junto com roupas e panelas, o documento foi encontrado tempos depois, num buraco, junto a outros objetos saqueados pelos isolados. Silenciosos e sem violência, os livres chegaram a levar o mosquiteiro de Isanami enquanto ele e a mulher dormiam. O episódio é lembrado com risos, mas nem sempre as histórias são irreverentes. Certa vez uma mulher madja estava na roça quando foi abordada por dois isolados. Primeiro tomaram o terçado das mãos da indígena e depois insistiram para que ela fosse embora com eles. Os homens da aldeia, tão logo ouviram os gritos da mulher, correram para a roça e lá chegando precisaram afugentar os livres. Tanto a Funai quanto os madja sabem que poucos quilômetros separam as aldeias das malocas dos isolados. Conforme Isanami, tal aproximação tem se intensificado nos últimos cinco anos, mas de uns três anos para cá deixou de ser sazonal e ocorre todas as semanas. “Já os vi muitas vezes, perto da aldeia e no meio da mata. São cabeludos e têm o corpo pintado de urucum e jenipapo. Já vi caçando macaco. Olham a gente e correm. Não ficam, não”, conta Isanami. Para o cacique, o mais difícil é ter roupas e utensílios sempre levados pelos isolados. “Olha, vou te dizer meu pensamento: não que tem de amansar ou fazer violência contra eles, madeireiro é quem faz assim, mas imagina ter suas roupas levadas toda hora por outras pessoas; ou a sua roça? Perder tudo. Isso deixa a gente triste”, conclui.

Proposta diplomática
Enquanto esteve na Base do Xinane, Meirelles realizou algumas oficinas com os ashaninka e os madja para tratar da relação com os isolados. “Creio que os isolados, pela nossa atitude de respeito, durante anos, com aquele território só para eles, consideram sua área de ocupação aquele pedaço. E é. Os ashaninka chegaram ao Envira na década de 1940, os isolados já estavam lá. Então quem invadiu a terra de quem?”, questiona o sertanista. A principal reclamação dos ashaninka é de que Meirelles não os deixava participar das ações da frente, e agora eles reivindicam mais protagonismo. Querem entender quem tem se movimentado pelo território além dos isolados. Pretendem desenvolver uma nova diplomacia. “Para a gente, tem peruano no meio e até outros indígenas do Peru juntos. Como vai dizer diferente? A gente quer ir ver mesmo, porque tem ashaninka no Peru que diz isso dos madeireiros e traficantes andando por aqui. Tanto os parentes bravos quanto nossas aldeias estão sem proteção”, conclui Txate Ashaninka. Na Base do Xinane, Txate e os ashaninka encontram razão para o argumento: pegadas de pés descalços e botas se misturam riscando o limo que cobre a madeira quebradiça das pontes que ligam as casas da estrutura. Antigo funcionário da base, Francisco das Chagas recorda que Meirelles temia a presença dos ashaninka na base por conta do histórico de conflitos entre eles e os isolados. “Seu Meirelles queria os bravos perto da base”, diz Chagas. O experiente mateiro lembra que muitos funcionários da frente foram alvo de flechadas, inclusive o próprio Meirelles, e que “só não morreram porque Deus foi camarada”. Os isolados costumavam andar perto das casas da base arremedando animais. E confirma: “Não sei bem a razão, mas os bravos estão cada vez mais em cima dos ashaninka. É de uns três anos pra cá, daqui acolá [gesticula com os braços] a gente vê eles atravessando o rio. Na aldeia Simpatia [última aldeia ashaninka antes da base] não faltam”. Chagas também não confirma a presença de peruanos não indígenas, mas salienta movimentações diferentes de isolados na região. O mateiro está há quase duas décadas no Envira, onde casou com uma ashaninka e hoje já cuida dos netos.

Crianças levadas pelos bravos
Outras histórias envolvendo os isolados dão conta de crianças levadas por eles. José Poshe e Bibiana Ashaninka nunca se esqueceram de uma festa ocorrida na aldeia há dezoito anos, quando a pequena Sawatxo foi carregada. Na época com 5 anos, a jovem dormia com os irmãos. Ao ouvir choros e gritos das crianças, Poshe correu para casa e, ao chegar, os mais velhos relataram que um bravo havia entrado na casa e levado Sawatxo.Foram muitos dias procurando pela menina na floresta. Em vão. “Deve estar grande. Já deve ter tido filhos. Ela deve ter se acostumado sem a gente. Todo mundo se acostuma a tudo”, diz Poshe olhando para o rio. Dezenas de outras tentativas foram relatadas pelos ashaninka. Do lado peruano, uma das histórias terminou em massacre. Entre os ashaninka do Envira, o ocorrido na comunidade Doce Glória, Departamento de Ucayali, Peru, em 2003, próximo à cabeceira do Rio Juruá, mesmo que não tenha tido a participação de indígenas do Brasil, é um fantasma que assombra as florestas do território que compartilham com os isolados. Enquanto preparava a comida para o marido e outros ashaninka que estavam pescando, uma mulher foi morta por um grupo de livres do povo mascho piro. Imediatamente os ashaninka arregimentaram um grupo e, na mata, deram o mesmo fim da mulher para cerca de trezentos isolados. O relato vem dos ashaninka do Envira, que têm parentes entre os ashaninka do Peru. “Então eu não sei se, caso um parente bravo mate um ashaninka, isso não pode acontecer [um episódio semelhante ao de Doce Glória] no Envira. Eu, como mais velho, digo aos mais novos para não fazerem nada. Para não irem à mata quando se sabe que eles estão lá, mas a gente não controla tudo”, afirma Txate Ashaninka.
O fantasma dessa história, porém, tem razão de assombrar um povo tomado pelo mágico. Os indígenas afirmam que a movimentação dos mascho foi provocada pela ação de madeireiros ilegais vindos do Departamento de Madre de Dios, chegando às cabeceiras do Rio Juruá, perpassando territórios dos isolados, na Zona Reservada do Alto Rio Purus, uma unidade de conservação na Amazônia peruana criada ainda no governo Alberto Fujimori (1990-2000). “Eu penso que se não for retomado um trabalho aqui no Envira pode acontecer algo como lá no Peru. Isso dá mais medo em mim que as flechas dos parentes bravos. Mas a gente não quer que a Funai volte como era antes. Ashaninka e madja precisam estar juntos. Precisamos ser parte”, diz Txate.
No último mês, lideranças ashaninka relataram a aparição de isolados na aldeia Simpatia. Na mesma comunidade, um indígena caiu em uma armadilha dos livres, no interior da floresta, mas não se feriu. No Igarapé do Anjo, aldeia do povo madja, a inserção dos livres acontece toda semana. A Base do Xinane, devorada pela fome úmida da floresta amazônica no paralelo 10°S, segue como símbolo do desafio da política indigenista aos isolados. Num paradoxo, como assegurar e garantir a liberdade desses povos? Enquanto isso, os livres exercem o direito de resistência e demonstram diplomaticamente que não irão aceitar as mortes de antigamente. As histórias circulam, e eles seguem o caminho de volta entrecortado por trilhas de outros povos. Por essas picadas, os livres também seguem, onde muitos deles tiveram a carne morta devorada pela terra. Um jardim de ossos na paisagem da memória. Num mundo brevemente grande, que já teve seu apocalipse de fogo para esses povos, tais encontros ocorrem entre as ruínas de raízes que insistem em tecer novos convívios e relações