terça-feira, 31 de julho de 2012

“Depois de mim, o dilúvio”: o “círculo vicioso da dívida” pública no Acre

Israel Souza[1]
Ainda há alguns dias, o governo da Frente Popular do Acre (FPA)[2] fez aprovar, na Assembleia Legislativa do Acre (ALEAC), um pedido de empréstimos cujo montante, segundo informações veiculadas na imprensa local, supera 1 bilhão.
Os deputados que foram favoráveis ao pedido de empréstimo argumentavam, em seu favor, que isso representava “benefícios para o povo do Acre”. Os que foram contra afirmavam que era “um grande risco”.
Ciente da importância do tema da dívida pública para entender a conjuntura de nossos dias e a recente história do Acre, o presente texto o toma por objeto de reflexão. Dentre outras coisas, através do modelo de “desenvolvimento sustentável”, o texto chama a atenção para a relação entre os processos de endividamento crescente do Estado e de comprometimento - também crescente - de nosso território e riquezas naturais. 
A tese central aqui defendida é: através de endividamento, o atual governo implantou um modelo de desenvolvimento que se mostrou um fracasso multifacetado. E agora, a fim de atenuar ou encobrir as mazelas geradas pelo modelo adotado, se lança numa desesperada busca por novos empréstimos. 
Pretende com isso ganhar mais um fôlego político-eleitoral neste difícil momento em que sua legitimidade declina. As coisas parecem indicar que o governo entrou numa espécie de “círculo vicioso da dívida”, com graves implicações já em curso e outras ainda por vir. 
A matriz do “desenvolvimento sustentável”
           
Como é amplamente sabido, a história do “desenvolvimento sustentável” no Acre tem seu fundamento na relação do governo da FPA com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial (BM).
“Hemos dicho que la única manera de que la administración forestal sea viable es crear infraestructura de transporte confiable” (La Amazonía del mañana), disse um dos representantes do governo estadual ao solicitar empréstimo do BID, logo ao início dos 13 anos que a coalizão está à frente do poder estatal. 
Ao pedido, o banco respondeu “con la aprobación de un préstamo por 64,8 millones de dólares para el proyecto de pavimentación”. Então, foi assinado o Contrato de Empréstimo BID 1399/OC-BR para implantação do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre (PDSA). O valor foi de 108 milhões de dólares, dos quais 64,8 milhões do BID e 43,2 milhões de contrapartida local. 
O objetivo do Programa era “mejorar la calidad de vida de la población y preservar el patrimônio natural del Estado de Acre em el largo plazo.” Seu plano era constituído de três componentes: 1) manejo sustentável e conservação dos recursos naturais; 2) apoio e fomento do desenvolvimento produtivo sustentável e do emprego; e 3) infra-estrutura pública do desenvolvimento.  
Um dos resultados mais notáveis do PDSA foi a reconfiguração territorial de grande magnitude que ele ensejou, pois, ainda que referenciado na BR-364, suas implicações abrangem todo o território do estado. 
Derivaram-se daí “normas de protección de la selva lindante con la carretera por medio de medidas entre las que se cuenta la creación de parques estatales” e a implementação de “un conjunto de proyectos para conservar y administrar los recursos naturales, desarrollar industrias que aporten valor a estos recursos, y pavimentar un segmento de 70 kilómetros de la BR-364”. 
            A aprovação da Lei 1.426/2001, que instituiu o Sistema Estadual de Áreas Naturais Protegidas e a Concessão Florestal no estado, logo mostrou que a mercadificação e a privatização da floresta seriam a tônica do Programa. O próprio governo reconhece, em tom ufanista, que aproximadamente “seis milhões de hectares (de floresta) apresentam aptidão e acessibilidade para a produção florestal sustentada e contínua” (Programa de Desenvolvimento Sustentável do Acre), isto é, para a exploração madeireira. 
Sob a tutela do BID, o governo forjou assim um instrumento legal que possibilita a exploração privada da floresta e de seus bens. O paradoxo desse feito é que as florestas (habitadas e não habitadas) são públicas no nome e privadas em sua exploração e apropriação. 
Comprometimento crescente: hipotecando terras e territórios 
Em certo sentido, é lícito dizer que, pelos acordos com o BID e o BM, o governo pôs em marcha um processo em que o território do estado é, crescentemente, hipotecado. A contrapartida local, portanto, envolve bem mais que alguns milhões. O mapa a seguir mostra as dimensões disso, com as áreas verdes (claro e escuro) destinadas ao “uso sustentável” e à “conservação permanente”. 
Configuração territorial do Acre
Fonte: Base de dados geográficos do ZEE/AC, Fase II, 2006
Aprofundando este processo, no final de 2008, o Estado do Acre, através do Programa Integrado de Desenvolvimento Sustentável do Acre (ProAcre), firmou contrato de 150 milhões com o BM. 120 milhões do banco e 30 milhões de contrapartida local. 
Com previsão de duração de seis anos, o Programa tem como foco de ação as margens das BRs 364 e 317 (tratadas, agora, como Zonas Especiais de Desenvolvimento - ZEDs) e se propõe melhorar a qualidade de vida das comunidades mais distantes dos centros urbanos, levando-lhes saúde, educação e produção - coisa necessária louvável. 
Mas, não casualmente, o programa pretende também promover o “ordenamento ou adequação para o desenvolvimento sustentável, especialmente dentro de Unidades de Conservação, Terras Indígenas e projetos de assentamento” - coisa discutível e perigosa.
Por certo, em parte, o acordo trouxe investimentos para a educação e a saúde. Interessa, no entanto, observar não apenas o que o governo recebe - sem o quê seria difícil justificar minimamente o Programa -, mas como, através desse tipo de acordo, ele segue comprometendo crescentemente nosso território e bens naturais.
Infraestrutura
Outros mapas governamentais tornam ainda mais claro esse “comprometimento crescente” de nosso território. Ver-se-á que as “áreas de manejo florestal” e as “Zonas Especiais de Desenvolvimento” seguem, quase sem surpresas, os traçados das BRs 364 e 317. 
Pode-se dizer que os acordos do governo com os bancos aqui em foco tinham por finalidade o “desenvolvimento sustentável”. Este, por sua vez, tem por finalidade, sobretudo, a exploração madeireira ou, como dizem, o “manejo florestal sustentável”. 
A infraestrutura, um dos componentes do PDSA, ganha significado neste quadro. Os empréstimos e os acordos abriram caminho jurídico ao capital, redesenhando o território e redefinindo seu uso, mercantilizando e privatizando a floresta. Após o terreno assim preparado, as estradas abrem o caminho físico, facilitando ao capital o acesso às riquezas naturais.
Entre o abandono, a repressão e o assistencialismo
           
Claro que comprometer nessa magnitude o território, redesenhando-o e redefinindo seu uso, tem grandes implicações para os homens e mulheres que nele habitam e dele tiram seu sustento. Antes e de maneira mais direta que os que estão na cidade, eles sentiram os efeitos perversos dessas políticas, sofrendo pelo abandono ou pela repressão.  
            Muitos são os que reclamam da falta de incentivo técnico e financeiro para a pequena produção, da falta de ramais por onde escoarem o que produzem. A esta dificuldade, soma-se a imposição do “fogo zero”.  
Sem que o governo ofereça alternativas, a restrição indiscriminada do uso do fogo na preparação do roçado tem levado à fome e ao desespero muitas famílias. Agora seu ancestral modo de preparar a terra para o plantio virou crime, enquanto os madeireiros são tratados como responsáveis pela preservação da floresta. 
            Outros fatores têm acentuado ainda mais o problema. Resultando em desmatamento, a exploração madeireira tem levado igarapés a secarem (diminuindo a oferta de peixes, algo fundamental na alimentação dessa população) e a caça a fugir para áreas onde a movimentação e o barulho sejam menores. 
            Concorre para o mesmo sentido a atuação de alguns servidores do IBAMA e do ICMBIO. Em uma audiência pública realizada 31/05/2012, no Cine Teatro Recreio, moradores das Resex (Reservas Extrativistas) relatavam abusos de autoridade - sobretudo da parte do ICMBIO -, a representantes da Secretaria dos Direitos Humanos. 
Além das intimidações, constrangimentos e humilhações, os moradores das Resex reclamavam das multas impagáveis que estão sendo aplicadas - coisas que faz tempo Osmarino Amâncio denuncia. Também presente na audiência pública, uma liderança indígena dizia ter recebido uma multa de um agente do ICMBIO cujo valor ficava na casa das dezenas de milhares de reais.
            Por essas razões, muitos têm visto no “Bolsa Verde” uma forma de aliviar suas dificuldades. Todavia, até para isso a mentira e a coerção têm cumprido um papel fundamental.
            Lançado em 2011, o “Bolsa Verde” é um programa assistencialista do governo federal, parte do Programa Brasil Sem Miséria Região Norte. Aceitando participar do Programa, as famílias (residentes em florestas nacionais, reservas extrativistas e de desenvolvimento sustentável, em projetos de assentamento florestal, de desenvolvimento sustentável e de assentamentos extrativistas do Incra) passariam a receber 100 (cem) reais mensais.
            Em conversa com pequenos produtores de Brasiléia, Sena Madureira Capixaba e Boca do Acre, percebemos que pessoas estão sendo induzidas a assinar o termo de compromisso para participar do Programa sem saber ao certo o que estão fazendo. 
Os agentes do governo dizem a uns que eles “têm que assinar”, dando a entender que participar do Programa é uma obrigação. A outros dizem que é “complementação do Bolsa Família”. Nada dizem sobre o fato de que assinar o termo de compromisso restringirá, em escala colossal, seus já restringidos direitos de uso de seus territórios.
Em suma, o acordo do governo com os bancos levou ao comprometimento do território. Este comprometimento, por sua vez, tem resultado na restrição dos direitos de muitos homens e mulheres dos campos e florestas. Em razão disso, eles têm passado privações. Na busca de aliviá-las - tocados pela mentira e pela coação -, têm aderido ao “Bolsa Verde” cujo valor, convém salientar, é irrisório. 
Tudo isso tem ajudado o governo a reservar a floresta para o capital, seja pela via dos manejos madeireiros, seja através da proposição de políticas de REDD e Pagamento por Serviços Ambientais (PSA). A tendência daí resultante é que mais parcelas do território sejam incluídas no processo de comprometimento, mais florestas mercantilizadas e privatizadas, mais dificuldades para a população dos campos e florestas.
As várias faces de um mesmo fracasso[3]
Em algumas coisas o PDSA foi exitoso, como na promoção da exploração madeireira. Tal exploração passou de 300 mil m3/ano para mais de um milhão m3/ano. Como não podia deixar de ser, o desmatamento também aumentou. Passou de 5.300 Km2 entre 1988-98, para 7.301,2 Km2 na década seguinte.
Como a exploração madeireira, também a pecuária extensiva de corte triplicou nos últimos anos. Segundo o professor Elder Andrade de Paula, o rebanho bovino passou de 800 mil cabeças para três milhões.
            A condição social da maioria dos acreanos não teve a mesma sorte. De acordo com o Censo Demográfico de 2010, Paula ressalta que 66,2% dos domicílios acreanos recebem até um salário mínimo mensal. O autor destaca ainda que o estado do Acre, segundo pesquisa do Ipea, apresentou a maior desigualdade da região amazônica e a segunda maior do Brasil, atrás apenas do Distrito Federal. 
O Acre está, portanto, muito longe de ser “o melhor lugar para se viver na Amazônia”, coisa que o ex-governador Binho disse levá-lo a ser. Quase metade da população (algo em torno de 60 mil famílias) recebe o “Bolsa Família” como uma maneira de aliviar a pobreza. Destes empobrecidos, 121.290 compõem a população em extrema pobreza no estado.
Esses dados mostram que esse modelo de desenvolvimento é um fracasso ambiental, social, econômico e político. 
“Funcionalização da pobreza”
Coisas assim são claros sinais da incapacidade de o Estado local se sustentar. A suspensão dos programas assistencialistas do governo federal geraria um verdadeiro caos nestas terras, minando ainda mais a pouca legitimidade de que hoje o governo goza. 
Os impactos políticos seriam enormemente negativos para o governo já que, segundo fontes oficiais, “das 58.707 famílias beneficiárias do Bolsa Família, 89,5% têm renda per capita mensal de até R$ 70” (Tião Viana participa de lançamento do Bolsa Verde em Manaus). Com o Bolsa Verde, a estas famílias se somariam outras 15,8 mil. Seriam, então, mais de 74 mil famílias dependendo, de algum modo, do governo federal para garantir um mínimo de dignidade negado pelo modelo de desenvolvimento adotado localmente. 
Como se não bastasse essa degradante condição, tais sujeitos são submetidos a uma espécie de “funcionalização da pobreza”. Embora não sem contradições e limites, essa é uma forma de reproduzir ampliadamente a pobreza gerada pelo modelo e fazê-la funcional a ele. 
Desse modo, através dos programas assistencialistas do governo federal, o governo estadual evita o caos, domestica os empobrecidos - em parte, obviamente - e os arregimenta politicamente a fim conferir alguma aparência de legitimidade a seus projetos.
Vale ressaltar que não apenas na questão social o governo acreano depende do federal. Os principais projetos em construção contam com a ajuda da União: Cidade do povo e Ruas do Povo.      
  
O inferno de uns sustenta o paraíso de outros
O elevado número de pessoas dependentes da ajuda governamental diz muito sobre as debilidades da economia local e, portanto, do mercado de trabalho. 
Mesmo permitindo dar certa estrutura ao estado, com o que a governo da FPA ganhou robusta popularidade em seus primeiros anos, os empréstimos tomados não deram vida a uma economia dinâmica. 
Na verdade, parte significativa da infraestrutura aqui deitada com dinheiro dos empréstimos ou tem caráter meramente cosmético[4] ou está voltada para dar acesso aos bens naturais. Não admira que as áreas de manejo sigam amplamente o traçado das BRs 364 e 317. 
No entanto, a relação comercial calcada na exploração de bens primários apenas irrisoriamente favorece a pessoas comuns do lugar, privilegiando sobremaneira grupos forâneos e elites locais a eles ligadas de modo subordinado.
Por tal quadro, o Estado continua determinante para o mundo do trabalho. Todavia até neste ponto o governo acreano segue, servilmente, os cânones neoliberalizantes do BM.  
É notável o número de trabalhadores temporários em todas as esferas da administração pública, saúde, educação, segurança etc. São trabalhadores precarizados. Ganham pouco, trabalham muito, não têm segurança no trabalho e, não raro, seu salário atrasa - neste momento, há professores reclamando de salários atrasados a três meses. 
Tais condições deixam os trabalhadores super-expostos à exploração econômica como às chantagens políticas do governo. Sim. Não poucos foram e são intimados a participar de comícios ou reuniões com candidatos governistas. A eleição de 2010 não foi a primeira vez em que trabalhadores foram submetidos a isso[5]. Também não foi a última. Já ouvimos relatos dizendo que as coisas vêm se repetindo agora nesta eleição (2012) e, a permanecer do jeito que está, se repetirão ainda em outras. 
Como sempre, os patrões e os “donos de cooperativas” aproveitam a oportunidade para estreitar relações com o governo. E os sindicatos, pelegos, fazem vista grossa. Quando intimados, saem em defesa de “seu governo”. Lembremos que, para defendê-lo, tanto o patronato quanto os sindicatos lançaram cartas contra a revista Istoé e contra a Carta do Acre[6].  
Por limitar os concursos, como já vem ocorrendo, isso contribuiu para a valorização política e econômica dos cargos comissionados. Esse é um dos motivos pelos quais temos, numa ponta, trabalhadores sub-remunerados e super-explorados e, noutra, privilegiados, formando “ilhas de bem-aventuranças”. O inferno de uns sustenta o paraíso de outros. Entre os bem-aventurados estão aqueles abençoados pelo sangue, os acolhidos no serviço público pela via do nepotismo.
No quadro de um modelo de desenvolvimento fracassado, em que a pobreza impera e o Estado é espaço-chave para afirmação e ascensão social, não é sem razão que os cargos comissionados desempenham papel tão importante nas negociações antes, durante e depois das eleições.  
Há que se esperar ainda que o peso da dívida contraída pelo atual governo recaia sobre o salário do funcionalismo público, achatando-o, criando limites até para a simples reposição do que a inflação corroer. 
De outro lado, convém não descuidar de cortes nos gastos sociais que, já hoje, sustentam serviços de péssima qualidade. Tião Viana já foi, mais de uma vez, alertado pelo Tribunal de Contas do Estado por não respeitar o mínimo que a lei prescreve para o gasto com a educação.
           
“Círculo vicioso da dívida”
           
Como vimos alhures, endividando-se com o BID e o BM, o governo da FPA implantou um modelo de desenvolvimento que se mostrou um fracasso multifacetado, isto é, um fracasso na área ambiental, social, política e econômica. 
Em razão desse fracasso, agora o governo se lança numa desesperada busca por novos empréstimos, a fim de atenuar ou encobrir as mazelas geradas pelo modelo. Pretende com isso ganhar mais um fôlego político-eleitoral neste difícil momento em que sua legitimidade declina. 
As coisas parecem indicar que o governo entrou numa espécie de “círculo vicioso da dívida”, com graves implicações já em curso e outras ainda por vir. 
Por certo, o endividamento do Estado não começa com a FPA. Mas sob esse governo ele ganha grande impulso. Numa perspectiva histórica, vê-se que não se trata de um empréstimo e sim de um processo de endividamento crescente por parte do Estado, em que empréstimo sucede empréstimo. É exatamente esse processo que a expressão “círculo vicioso da dívida” pretende designar. Até parece que a América Latina dos anos 1970-90 e a Europa dos dias de hoje nada têm a ensinar sobre o perigo da dívida!   
Este empréstimo de mais de 1 bilhão que recentemente o governo fez aprovar na ALEAC não foi, portanto, o primeiro. Talvez nem seja o último. Na mesma ocasião, o governo também solicitou à ALEAC “a prerrogativa de solicitar créditos adicionais - ao BNDES e ao Banco Mundial - sem comunicar ao Poder Legislativo”.
O empréstimo e a “prerrogativa” acima referidos mostram que são graúdas as necessidades e as intenções do governo. Mostram também que, mesmo diante de tantos problemas, ele opta por seguir aprofundando o modelo de desenvolvimento, ampliando o comprometimento de nosso território e ignorando os limites financeiros do Estado.
O governo sempre se nega a tratar abertamente dos empréstimos. Não repassa informações ou documentos sobre eles. Ainda no último pedido encaminhado à ALEAC, não apresentou as minutas dos contratos, com a especificação de pagamento e investimentos dos recursos. 
Para o presidente da Unale (União Nacional dos Legisladores e Legislativos Estaduais), deputado estadual Luis Tchê (PDT), ao votarem favoravelmente a permissão de empréstimos, os deputados estavam “operando no escuro e assinando um cheque em branco para o governo gastar como quiser” (Sebastião Viana “manda” e deputados aprovam cinco empréstimos que superam R$ 1 bilhão). 
O valor da dívida do Estado é uma incógnita. Sabe-se, porém, que é grande. De acordo com o presidente da Unale, ela estaria na casa dos 5 bilhões, o que faria do Acre um dos 11 estados mais endividados do Brasil.
Cabe então indagar: será que chegamos naquela suicida situação, naquele círculo vicioso da dívida em que se recorre a novos empréstimos para pagar velhos empréstimos ou simplesmente os juros de velhos empréstimos? 
Tudo indica que, se lá não chegamos, de lá não estamos longe. A postura do governo, de negar informações e pedir dispensa da obrigação de comunicar à ALEAC novos empréstimos tomados ao BNDES e ao BM, aponta nessa direção.
Instituições maculadas
Importa sublinhar que, pelo feito, no ano de seu cinquentenário, o poder Legislativo acreano comprovou ser não mais que um apêndice do Executivo, se negando a cumprir, ainda que formalmente, sua função de fiscalizador. Em que pese o desrespeito aos ritos e à observância ao que prescreve a lei, a solicitação do governo foi aprovada, com 16 votos a favor e 7 contra. 
Um dos deputados favoráveis ao pedido do governo, Walter Prado, disse não poder “votar contra os benefícios para o povo do Acre”. Com essa justificativa, desrespeitou a orientação do líder de seu partido, deputado Luis Tchê, e agora, junto com outros consortes, faz parte do PEN (Partido Ecológico Nacional).  
A verdade é que os motivos de Walter Prado eram bem outros. Em 2010 ele foi acusado de crime eleitoral (compra de votos). Mas agora em 2012, a assembleia requereu a “sustação da ação” que corresponde à “suspensão do andamento da ação penal”. Seria exagero dizer que a fidelidade de Prado ao governo contou em seu favor no julgamento?
Recentemente, a Procuradoria Regional Eleitoral (PRE) pediu ao Tribunal Regional Eleitoral do Acre (TRE/AC) a continuidade, “até a condenação, dos processos criminais ajuizados contra os deputados estaduais Walter Prado e Elson Santiago” (Presidente da ALEAC e, gora também, membro do PEN).
Também por esses dias, a Procuradoria Geral Eleitoral (PGE) pediu, através de parecer, a cassação do senador Jorge Viana (PT), do governador Tião Viana (PT), do vice-governador César Messias (PP) e dos suplentes Nilson Mourão e Gabriel Maia. O documento ressalta que a vitória da coalizão na última eleição foi obtida de maneira “ilegítima e ilegalmente, com violações flagrantes que levaram ao desequilíbrio da disputa eleitoral no Estado do Acre” (Pedido de cassação de Jorge e Tião).
Os casos acima não maculam seriamente a imagem do TRE/AC? Não levantam dúvidas quanto à competência e à isenção do órgão?
“Depois de mim, o dilúvio”[7]
            Na Rio+20, o governo promoveu o dia do Acre. Um dos momentos deste evento tinha por título Faça do Acre sua floresta. O dono da madeireira Laminados Triunfo Ltda - aquela que aqui incorreu em crimes ambientais - foi um dos palestrantes!!! 
Foi com acerto que o grupo responsável pelo lançamento do Dossiê Acre no evento apresentou aquela faixa, com os dizeres “As madeireiras já fazem do Acre sua floresta”.
          
De imediato vale observar a proximidade que o título guarda com a propaganda do governo militar para atrair investidores para a Amazônia. Baseada na tese do “vazio demográfico”, a propaganda militar tratava a Amazônia como “uma terra sem homens para homens sem terra”. 
É exatamente isso o que o governo do Acre está fazendo, oferecendo a floresta acreana como se não houvesse ninguém habitando nela, como se ela já não tivesse dono. Queria ele dizer que o Acre é uma floresta sem homens para homens sem floresta? 
Cumpre dizer que isso representa uma desesperada busca por atrair capital, sem a menor preocupação com o comprometimento do território, com a sorte dos que nele habitam, com as finanças do povo acreano. 
Por tudo isso é que dizemos que os problemas do endividamento já são visíveis. E a tendência é que se acentuem. Resta saber não mão de quem esta bomba explodirá. Na mão da FPA? Na mão da oposição? Independente disso, sabemos que quem arcará com as contas será o povo.  
O atual governo, porém, por desespero político ou irresponsabilidade - ou um misto de ambas as coisas - segue sem muito se importar, como quem diz a si mesmo: “Depois de mim, o dilúvio”. E vai hipotecando o futuro do Acre.           


[1] Cientista Social, com habilitação em Ciência Política e membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental (NUPESDAO).
[2] Coalizão partidária que, desde 1999, está à frente do poder estatal acreano. Ela é encabeçada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). 
[3] Parte dos dados usados nesta seção foi extraída do texto que o professor Elder, valendo-se de pesquisa própria e de outros, escreveu para o Dossiê Acre
[4] Lembremos de obras bonitas que temos nos centros de algumas cidades, como Rio Branco, sem esquecer o abandono a que estão submetidas as periferias.
[5] Dentre outras, essa é uma das acusações que o Ministério Público Eleitoral faz aos irmãos Viana e a partir delas pede a cassação de ambos e seus suplentes ao Tribunal Superior Eleitoral.
[6] A Central Única dos Trabalhadores (CUT) escreveu uma carta com o título Em defesa do Acre: para não voltar ao passado. A Federação das Indústrias do Estado do Acre (FIEAC) também escreveu uma. Seu título era Em defesa do desenvolvimento sustentável
[7] Frase atribuída a Luís XV de Bourbon. Egoisticamente, o monarca expressa o desinteresse pelo destino da França depois dele.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Escândalo: Folha de São Paulo revela que Jorge Viana apoiou mensaleiros

 Caros leitores,
Vocês sabem que não sou dado a publicar matérias que possam conter excessivo apelo pulítico eleitoral. Entretanto, dado a gravidade do "mensalão" para a história do Brasil, não posso deixar de repercutir esta matéria publicada pelo jornal Folha de São Paulo e repercutida pela Contilnet. O mensalão vai entrar para a história como a maior organização criminosa, que operava dentro do governo, da história deste país. è a face mais podre do coronelismo feudal que até hoje domina a política brasileira, da qual o Acre ainda não conseguiu se livrar. Os grifos são meus.
Foi importantes nesse processo o governador do Acre, Jorge Viana, que conhecia o meio publicitário de Minas (a agência que fazia a propaganda de seu governo era a mineira ASA). Sua missão era acalmar o setor e evitar que mais pessoas dessem entrevistas
Senador Jorge Viana, do PT do Acre
Senador Jorge Viana, do PT do Acre
FERNANDO RODRIGUES

Brasília - O mês de agosto será marcado por uma guerra de versões entre os 38 réus durante o julgamento do mensalão.

Essas divergências se acentuaram ao longo dos anos, mas, quando o escândalo eclodiu, em 2005, muitos dos envolvidos formularam uma tese unificada sobre o dinheiro do esquema.

Tudo virou “caixa dois”. É o jargão usado para o uso de dinheiro não declarado pelas campanhas.

A história é longa. Remonta ao início de 2003, primeiro ano de Lula na Presidência. Na época, o empresário Marcos Valério Fernandes de Souza frequentava as sedes do PT. Loquaz, dizia aos dirigentes da sigla: “O PT me deve uns R$ 120 milhões”.

Em meados de 2004 o então ministro da Casa Civil, José Dirceu, foi procurado por Silvio Pereira, secretário-geral do PT, que relatou o que ouvira. Dirceu retrucou: “Mas não eram só R$ 40 milhões?”.

Dirceu nega a existência do diálogo. Já Silvinho, como é conhecido, relatou a conversa a mais de uma pessoa. Vistos em retrospecto, os indícios do início do governo Lula iam todos na direção de um esquema em formação.

O escândalo do mensalão se materializou em 6 de junho de 2005. Nessa data a Folha publicou uma entrevista com o deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) afirmando que congressistas aliados recebiam o que ele chamava de “mensalão” de R$ 30 mil do PT.

Os petistas ficaram aturdidos. Não sabiam como reagir. Aí ocorreu algo inusitado. O discurso de defesa foi arquitetado pela mesma pessoa que forneceu recursos para o esquema: Marcos Valério.

Tudo seria apenas caixa dois. Dívidas de campanha que precisavam ser pagas. Algo que todos os políticos acabam praticando. Um achado. O caixa dois passou a ser a versão oficial da defesa.

O ESCÂNDALO

Após a entrevista de Jefferson, a pressão aumentava a cada dia sobre o Planalto. Valério estava prestes a dar depoimento à Procuradoria.

O empresário mineiro deixou vazar numa sexta-feira (dia 8 de julho) que teria marcado sua ida à Procuradoria para a semana seguinte. Vários políticos entraram em contato com ele.

Delúbio Soares foi um deles. O tesoureiro do PT e das campanhas de Lula falou com Valério no sábado. Conversa tensa, com ameaças diversas.

Valério se dizia abandonado. Queria proteção. Falou em negócios de seu interesse que o governo não poderia deixar de tocar, como a liquidação do Banco Econômico.

Delúbio comprometeu-se a tratar desses pleitos com a cúpula do PT e do governo. Mas a comunicação era difícil naqueles dias. Na segunda-feira, 11 de julho, Delúbio foi a Belo Horizonte conversar com Valério. Poucos na direção do PT foram avisados. Era uma operação de alto risco, mas imprescindível para montar uma versão aceitável.

Enquanto Delúbio se mexia, o governo enviava bombeiros para conversas reservadas. Foi importantes nesse processo o governador do Acre, Jorge Viana, que conhecia o meio publicitário de Minas (a agência que fazia a propaganda de seu governo era a mineira ASA). Sua missão era acalmar o setor e evitar que mais pessoas começassem a dar entrevistas.

Ao mesmo tempo, o prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel (hoje ministro), procurou políticos locais para colocar água na fervura.

Em Brasília, Lula se aconselhava com um antigo tesoureiro do PT, Paulo Okamotto. O ministro Antonio Palocci (Fazenda) acalmou os credores dos bancos Rural e BMG, usados no valerioduto. Preocupados com a eventual quebra das instituições, os credores ameaçavam acioná-las na Justiça. Ouviram de Palocci que deveriam aguardar, pois o governo não deixaria a situação sair do controle.

Em 12 de julho, dia seguinte à visita de Delúbio a Valério, fez-se uma reunião secreta em São Paulo em um escritório do advogado Arnaldo Malheiros Filho, responsável pelos casos de Delúbio e Silvio Pereira. Além de Delúbio, Silvio e dos advogados, estava no local José Genoino, presidente do PT quando o escândalo surgira. A reunião começou por volta de 9h.

No meio do encontro Delúbio disse: “Vocês não se espantem não, mas o Marcos Valério está chegando”. Um jatinho com o publicitário e o advogado Marcelo Leonardo aterrissara por volta das 10h no Campo de Marte.

Por volta das 10h30, Valério e Marcelo Leonardo entraram e se isolaram por alguns minutos em uma das salas do escritório. Quando entraram na sala maior, onde estavam os outros, o empresário pediu a palavra. “Temos três hipóteses. A primeira é derrubar a República. Vamos falar tudo de todos. PT, PSDB, PFL, todos. Não sobra ninguém. A segunda hipótese é a tática PC Farias: ficar calado. Só que ele ficou calado e morreu. A terceira hipótese é um acordo negociado, de caixa dois.”

Todos ficam calados. Segundo um presente, “era como se estivéssemos todos congelados”. Várias conversas paralelas começaram, até que cada um apresentou seu ponto de vista.

Genoino defendeu o governo Lula e a escolha da hipótese número 3. Essa foi a saída consensual.

Antes de a decisão ser aceita por todos, Delúbio, Valério e Genoino se reuniram separadamente numa sala. Depois da conversa reservada, o encontro maior não se instalou mais. Não houve anúncio formal, mas ficou subentendido que a saída era vender a versão do caixa dois ao público.

Já passava das 13h. A fome dos presentes foi saciada com sanduíches da padaria Barcelona, na praça Vilaboim, reduto tucano em São Paulo.

O primeiro a sair foi Valério. Ficaram no local os demais. Decidiu-se que no dia seguinte eles iriam a Brasília consultar o governo e as cúpulas dos partidos aliados. Malheiros providenciou o aluguel de um jatinho. Embarcaram cedo na quarta. Genoino preferiu não ir.

Ao chegar à capital federal, Malheiros e Delúbio se dividiram. O advogado foi ao encontro do então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, hoje advogado de um ex-diretor do Banco Rural, que é réu. O petista se deslocou para a casa de um amigo.

Na conversa entre Thomaz Bastos e Malheiros, o governo teve pela primeira vez detalhes da versão do caixa dois. Bastos ouviu e falou da necessidade de todos afinarem o discurso.

Aprovou a estratégia, mas antes precisava submeter o acordo a Lula.

Nessa mesma quarta, Thomaz Bastos chamou Antonio Palocci e ambos foram até o presidente. Lula concordou com a versão. O ministro deu sinal verde a Malheiros.

CENTRAL

O endereço em que Delúbio se instalou em Brasília foi transformado em central da versão do caixa dois. Foram chamados ao local todos os políticos que precisavam ter o discurso ajustado. Em romaria, eles chegavam, tomavam conhecimento e concordavam com a estratégia.

Estiveram ali, pelo menos, Arlindo Chinaglia, José Janene, José Borba, Valdemar Costa Neto, Aloizio Mercadante, Ricardo Berzoini, Paulo Okamotto e Renato Rabelo. Entre os que foram consultados estão Dirceu e um representante do PTB.

No dia seguinte, quinta-feira (14 de julho), já com tudo acertado, Delúbio passou por Belo Horizonte para finalizar os detalhes do depoimento de Valério à Procuradoria, que acabou sendo feito nessa mesma data. Antes de prestar seu depoimento, o ex-tesoureiro tomou conhecimento do teor do que fora dito por Valério. O depoimento de Delúbio à Procuradoria ocorreu na sexta-feira, dia 15.

Na véspera desse depoimento, com o discurso afinado, os protagonistas da montagem da versão do caixa dois voltaram a São Paulo. Havia um clima mais relaxado. No dia 14, à noite, houve ainda duas reuniões para preparar o depoimento de Delúbio.

A primeira teve como protagonistas Genoino, Delúbio, Silvio Pereira, Ricardo Berzoini e José Dirceu. O advogado Arnaldo Malheiros chegou na metade do encontro. Nessa reunião o objetivo era checar de maneira pontual os detalhes que Delúbio abordaria.

Um exemplo de que o clima estava melhor foi o prazer a que se deu Delúbio, torcedor do São Paulo: ele assistiu ao final da partida em que seu time disputava a finalíssima da Libertadores –e foi campeão pela terceira vez. Após a partida, todos saíram para um segundo encontro, já na madrugada de sexta. Coube a Malheiros ligar para o procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, para acertar o depoimento de Delúbio. Estava montada a versão do caixa dois.

Ato contínuo, em viagem a Paris, o presidente Lula deu entrevista na qual falou sobre a operação. O “Fantástico”, da TV Globo, transmitiu o vídeo em 17 de julho: “O que o PT fez do ponto de vista eleitoral é o que é feito no Brasil sistematicamente”. E mais: “Não é por causa do erro de um dirigente ou de outro que você pode dizer que o PT está envolvido em corrupção”.

O escândalo começava a ficar domado. No discurso oficial, circunscrevia-se o mensalão a mero uso de dinheiro não contabilizado em campanha. Lula não virou réu.

Agora, sete anos depois, o STF julgará se é verossímil a versão do caixa dois, tão bem arquitetada naquele conturbado julho de 2005.

 Folha de São Paulo

 Ilusionismo governamental

"O julgamento do mensalão está em todos os lugares, só não estaria no governo. Dilma avalia, corretamente, que não tem para onde fugir e qualquer que seja o resultado a notícia será ruim, muito ruim para o seu governo. Bem por isso, colocou todo mundo para trabalhar... longe do Tribunal. O plano é ocupar agosto e setembro com uma "agenda do desenvolvimento", pacote de estímulo aos investimentos cheio de medidas populares. E o pedido de presença da Guarda Nacional para fazer a segurança do STF no mês de agosto por ora está negado. Dilma não quer chegar nem perto do escândalo, o problema é que o escândalo mora com Dilma, no PT. "

Postado por Roberto Jefferson

sábado, 28 de julho de 2012

Portaria 303/2012- Revogação Já!

Sob o pretexto de regulamentar a atuação de advogados e procuradores federais que estiverem à frente de processos judiciais que afetam áreas indígenas, a Advocacia-Geral da União (AGU) editou, no dia 17 de julho, a Portaria 303/2012. A AGU almeja, com essa portaria, que os procedimentos de demarcação de terras indígenas sejam submetidos aos efeitos das 19 condicionantes impostas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento (março de 2009) sobre a manutenção da demarcação em área contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol/RR. Trata-se, portanto, de um conjunto de condicionantes vinculadas a um caso específico: o julgamento envolvendo a demarcação da terra Raposa Serra do Sol e não afeta outros procedimentos. Comentando sobre o alcance e efeitos deste julgamento, o jurista José Afonso da Silva, especialista em direito constitucional, declarou: “Um caso único e específico pode até criar um precedente, mas não uma jurisprudência” (Agência Brasil, 20/07/2012).

Vale ressaltar que algumas condicionantes estabelecidas no referido julgamento foram questionadas através de embargos de declaração (ou pedidos de esclarecimentos) e que ainda não foram julgados pelo STF. Portanto, quando apreciados e julgados os embargos, tais condicionantes poderão sofrer modificações de forma total ou parcial. A AGU, ao editar a Portaria 303/2012 atendendo as pressões da Confederação Nacional da Agricultura, lança mão de uma estratégia jurídica autoritariamente acionada para restringir direitos dos povos indígenas e tornar suas terras disponíveis para interesses diversos.

Tal medida faz lembrar, por exemplo, um marco da historiografia cearense, o relatório da Província, escrito em 1863, no qual se decretava a extinção dos índios no estado do Ceará e a anexação dos territórios destes às glebas destinadas à colonização. Naquele e em quase todos os estados, a ordem era favorecer os interesses dos setores regionais e nacionais dominantes, exterminando (ou extinguindo oficialmente) os indígenas para, assim, liberar as terras. Um século mais tarde, já não se decretava a inexistência dos povos indígenas e sim a necessidade de promoção de sua “gradativa e harmoniosa integração”, definida através de um aparato jurídico e de ações assistenciais que visavam obter, pela via da integração da população indígena, a liberação das terras por eles ocupadas para os projetos de desenvolvimento nacional.

O que há em comum entre esses diferentes eventos históricos é a utilização de um recurso jurídico para possibilitar a utilização das terras indígenas por empresas colonizadoras de ontem ou por empresas de construção civil e representantes do agronegócio de hoje. Pode-se dizer que os povos indígenas foram e são considerados pouco aderentes aos modelos de desenvolvimento nacional e regional, porque seus estilos de vida e suas lógicas não combinam com um modelo exploratório e concorrencial. Através de discursos como estes se estabelece a supremacia das maneiras de viver baseadas na ciência e na tecnologia como pilares do desenvolvimento e se define como inferiores, desnecessárias, ultr apassadas outras maneiras de organização da vida, postas em prática pelos povos indígenas.

A Portaria editada pela AGU retoma argumentos reacionários em relação aos povos indígenas e contraria os direitos constitucionais destes povos em aspectos cruciais: o primeiro diz respeito ao direito de pleitear ampliação ou revisão de limites de terras já demarcadas. Embora em geral se utilize a expressão “ampliação de terras”, na grande maioria dos casos se trata de uma reivindicação justa de revisão dos limites estabelecidos pela FUNAI em um contexto de conflito, no qual o órgão indigenista aconselhou que os índios aceitassem uma redução da área para possibilitar a sua demarcação sem maiores embates (e tais procedimentos ocorreram em desajuste com o que determina a Constitu ição Federal). São muitas as terras indígenas demarcadas, sobretudo nos estados do Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que demandam revisão de limites, pois tiveram uma drástica redução nas dimensões apontadas pelos grupos técnicos e não correspondem à área de ocupação tradicional de povos e comunidades indígenas. Citando um caso concreto, no estado de Santa Catarina a área indígena Toldo Pinhal, do povo Kaingang, foi identificada pelo grupo técnico e recomendada para demarcação com uma extensão de 9.800 hectares, considerando a ocupação tradicional e as necessidades do grupo em questão. Contudo, a FUNAI demarcou apenas 980 hectares, portanto dez vezes menor. Como este, há dezenas de outros casos.

O segundo aspecto diz respeito à restrição do usufruto exclusivo sobre as terras pelos índios, conforme estabelece o Art. 231 da Constituição Federal. A Portaria pretende impedir que os indígenas usufruam de recursos existentes em suas terras restringindo as possibilidades apresentadas por outras normas legais. Além disso, determina que seja dispensada a consulta prévia às comunidades quando houver interesse da União na implantação de empreendimentos em terras indígenas. Nesse sentido, a expansão da malha viária ou a geração de energia (via construção de hidrelétricas, por exemplo) poderá ser entendida como estratégica, dispensando a prévia consulta às comunidades que vivem nas terras afetadas. Tal aspecto afronta premissas da Declaração da ONU para os Povos Indígenas e da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que foram ratificadas pelo Estado brasileiro e determinam a realização de consulta prévia, livre e informada às populações indígenas sobre qualquer empreendimento que as afetem.

Essa é mais uma manobra utilizada pela AGU para colocar um ponto final ao que o governo parece considerar ser cansativo e prolongado demais, ou seja, o procedimento democrático, que pressupõe consultas, debates, diálogos com a população envolvida. Para que realizar estudos de impacto ambiental ou planejar com responsabilidade e rigor técnico quando estão em foco os projetos desenvolvimentistas que encontram amparo na grande produção, na geração de energia para mover mais empreendimentos e atrair mais investidores, na transposição das águas dos rios para permitir mais plantios, mais lucratividade?

A Portaria vai ao encontro da política indigenista colocada em curso pelo governo nos últimos anos, marcada pelo descaso para com as demandas indígenas e pela negligência em relação à demarcação das terras destes povos (sintomático é o dado de que, até o momento, o governo Dilma homologou apenas três áreas). Na mesma direção, os dados divulgados no Relatório de Violência, organizado pelo Conselho Indigenista Missionário, mostram que a terra é estopim de conflitos em diferentes regiões do Brasil, sendo as comunidades indígenas vítimas de ameaças, agressões à pessoa e ao patrimônio, o que poderá se agravar com esta Portaria. A falta de terras (ou sua inadequada extensão) resp onde pelos escandalosos índices de criminalidade, assassinatos e suicídios em áreas como a dos Guarani-Kaiowá, em Mato Grosso do Sul.

A posição adotada pelo governo – através da AGU – fere disposições constitucionais e convenções internacionais ratificadas pelo país, e deve ser imediatamente revogada para se restabelecer a ordem democrática e a confiança nas instâncias jurídicas constituídas para zelar, em primeiro lugar, pelos preceitos de nossa Carta Magna.

Porto Alegre, RS, 27 de julho de 2012.

Roberto Antonio Liebgott
Cimi Sul - Equipe Porto Alegre