sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

Beijos Palestinos: Beijos indígenas e meus beijos


Publico aqui como forma de homenagear as lindas, briosas, honradas guerreiras, mulheres palestinas, especialmente nestes tempos bicudos em que o poder da força nos obriga a lutar "pela paz", como Mulheres  Pela Paz. 

Meu absoluto respeito e apoio. Sei que é pouco, mas o meu pouco com seu pouco farão o muito. A luta e o luto dos povos indígenas é a mesma luta palestina. Vivemos palestinamente e palestinamente resistimos. Beijos gigantes à palestina/beduína Amyra El Khalili.

Se juntos lutamos, juntos venceremos!

Dança, identidade e guerra
A milenar história beduíno-palestina da dança pela água em missão de PAZ!


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Foto: Amyra El Khalili no Projeto fotográfico dirigido por Iatã Cannabrava: Povos de São Paulo.


Eu só poderia acreditar num Deus que soubesse dançar!
F. Nietzsche

Por Amyra El Khalili*

Raks el Chark foi popularmente denominada no Brasil como “dança do ventre” por consequência dos movimentos de dobradura da moeda no abdômen, imagem que impressionou os latino-americanos e os americanos. Em inglês, “belly dance” (dança do ventre), e, pelos franceses, com muito mais distinção, como “bela dança” (belle danse). A “dança do leste”, ou “dança oriental”, tradução do árabe para o português, desenvolveu-se no Brasil muito diferente das autênticas técnicas orientais, misturando samba, bolero, ballet e até lambada, sem a necessária base técnica. Algumas dançarinas, mal-orientadas, chegaram a confundir músicas folclóricas e religiosas com músicas de dança. Para os eufóricos leigos, tudo é lindo!

Levam-se em média quinze anos para formar uma dançarina profissional no Oriente Médio. É um dança milenar, registrada em torno de 5.000 a.C., desde o reino da antiga Mesopotâmia. Tem cerca de 3.000 movimentos possíveis de serem executados pelo corpo feminino. Sua base histórica tem origem nas danças beduínas em rituais de homenagem aos ecossistemas habitados pelos povos nômades. Essa história começa por volta de 11.000 a.C., em Jericó-Palestina, quando as beduínas passaram a desenvolver o cultivo agropastoril e a fixação do ser humano no campo.

Elas observavam com atenção os répteis – jacarés e crocodilos –, pois, sempre que subiam em cardumes o rio Jordão (e, noutras regiões, o Nilo, o Tigre e o Eufrates), traziam as chuvas que, por sua vez, deixavam húmus nas margens dos rios. Observando que nestas margens crescia o trigo, passaram a manejá-lo, plantando sementes em outras áreas, juntando o húmus como adubo.

Foi assim que as beduínas, com seus companheiros, começaram a desenvolver a agricultura. Estes répteis passaram a ser considerados deuses, uma vez que traziam a mensagem de quando poderiam realizar o manejo do trigo em função das cheias dos rios. Neste período, também desenvolveram a armazenagem do cereal por longos períodos de seca; posteriormente, o Ocidente veio a adotar este sistema. Os graneleiros, hoje também conhecidos como silos, representaram a solução com a preocupação conceituada como “segurança alimentar”.

A fertilidade de Gaya – Mãe Terra

Seriam os sete anos de vacas gordas e magras uma preocupação dos nossos ancestrais com a segurança alimentar?

As beduínas podiam, a partir da armazenagem do trigo proporcionada pelo período de semeadura e colheita, realizar o planejamento familiar. Assim sendo, neste período optavam pela gravidez, pois havia a garantia de alimento necessário pelos cinco primeiros anos de vida de suas crianças. Esta decisão, a de ter filhos, de ordem exclusivamente feminina, era compartilhada pelo companheiro em todo ritual de semeadura, plantio e colheita. O planejamento familiar estava intimamente ligado aos ciclos hidrológicos. Água, um bem sagrado que fertiliza a terra e permite que as mulheres decidam sobre sua fertilidade, dando-lhes a opção de terem quantos filhos a terra pudesse alimentar. Água, o sêmen de Allah!

As beduínas, agradecidas, dançavam à beira dos rios de águas doces enquanto realizavam a semeadura e colheita do trigo e cantavam para os deuses. A prosperidade da tribo era determinada pelos ciclos hidrológicos, bem como o equilíbrio entre riquezas naturais e seres humanos. O que ocorreu desde então com a humanidade?

As mulheres perderam a sua relação íntima com os ciclos hidrológicos e, consequentemente, entre tantos outros fatores (guerras, doenças, empoderamento patriarcal), aconteceu o inevitável: desequilíbrio entre riquezas naturais e seres humanos. Hoje, recursos naturais de menos e gente demais.

As danças beduínas aplicadas na oficina “Dança pela água em missão de PAZ” objetivam resgatar a memória ancestral que todas as mulheres possuem das suas relações com o ciclo hidrológico e menstrual por meio dos movimentos executados pelas beduínas quando agradeciam aos deuses pelo presente que lhes traziam de bons ventos, boas águas e boas colheitas.

Estas mulheres construíram mundos riquíssimos como o dos faraós, a matemática, a agricultura, a astrologia, a medicina, a economia, enfim, os valores culturais, políticos e sociais que são os pilares do Ocidente, ao lado dos seus companheiros, peregrinando pelo mundo árabe, na África, no Leste Europeu e na Ásia.

A verdadeira essência desta dança também navega por outros mares. É, especialmente, para a mulher madura, aquela que viveu todas as alegrias e frustrações do amor, transformando suas experiências de vida afetiva em movimentos. Movimentos somente possíveis com a explosão de sentimentos honestos e sinceros. Sentimentos plenamente cantados e visíveis aos olhos do povo de nossa origem: o árabe.

São necessários muitos anos de audição para captar as constantes alterações rítmicas das músicas orientais, apurado senso do significado do que se está dançando e uma boa dose de conhecimento do que representam os sofrimentos das guerras e os preconceitos na vida do povo árabe.

Essencialmente femininas, essas danças podem ser acompanhadas por homens, com movimentos masculinos, destacando-se o tórax, os ombros e os braços. A dançarina deve ser soberana, elegante, manter postura antes, durante e depois da apresentação. Ter simpatia, charme e, principalmente, muita humildade.

Quanto mais experiente a dançarina, mais sucesso faz. A cultura árabe respeita a mulher madura, a exalta e admira. Não discrimina a mulher de idade. Tem preferência pela mais cheinha, do tipo gostosa, matreira e vaidosa. Em casas noturnas, restaurantes e festas árabes é muito comum homens convidarem as mulheres para dançar. É o desafio do homem em provocar a sensualidade da mulher. Um jeito árabe de flerte (paquera), uma vez que os costumes e valores morais da cultura são extremamente rígidos.

O povo árabe é totalmente contra os padrões estéticos do Ocidente, que impõe à mulher ser jovem e magra, tornando a maioria delas infelizes. Isto sim é submissão! Os valores espirituais da cultura abominam a vulgaridade, considerando-a ofensiva. Enaltecem a autoestima feminina. Exaltam a virilidade masculina com suas músicas e danças de muita sensualidade.

Raks el Chark no Brasil

No Brasil, em 1979, as danças étnicas árabes foram introduzidas pela mestra armênio-palestina Shahrazad Shahid Sharkid, que então iniciava um trabalho único no mundo, pela Raks el Chark. A meta de seu trabalho era a pesquisa e o estudo minucioso do corpo feminino pelo registro das mutações ocorridas a partir da aplicação de exercícios de sua criação. Há também, no trabalho de Shahrazad, enorme preocupação com a formação de crianças e adolescentes para a dança do ventre, procurando não confundir o trabalho corporal adulto com o infantil, ao respeitar seus espaços e suas mentes, tendo o cuidado de aplicar cronologicamente exercícios de fisioterapia para não provocar o universo infantil com o estímulo prematuro para a vida sexual.

Estas mutações são parte do cuidadoso trabalho de anatomia da mestra artesã, uma escultora de corpos, sempre com a preocupação de estabelecer limites ao corpo, o que não acontece com algumas danças ocidentais, quando, para alcançar a desenvoltura exigida, é necessário provocar contusões, quebrar ossos, forçar tendões, tensionar músculos além do suportável, o que torna cartesiano (reto, linear, quadrado) o corpo feminino, colocando-o em uma moldura onde todas ficam iguais.

Toda dança tem, evidentemente, um cunho sagrado, apesar de o Ocidente se apropriar indevidamente da técnica e da história para vender sexo, impor padrões estéticos e para a exploração do corpo da mulher e infantil, profanando os arquétipos religiosos. O homem sempre desejou aquilo que era de Deus e tenta adquirir, pelo manto da “mercadoria erotizada”, valores que não lhe pertecem.

Danças folclóricas e de raízes

As “danças folclóricas e de raízes” possuem um poder indiscutível de aglutinação, pois se constituem na manifestação do comportamento cultural, histórico e social dos indivíduos. Refletem em sua construção coreográfica a soberania, o direito a viver dignamente, a cultura e hábitos dos povos das mais diferentes etnias, raças e credos, além de contribuir diretamente, pelo prazer que proporcionam, para a integração e educação de crianças e adolescentes. Estas danças resgatam e elevam a autoestima.

Portanto, devemos ter muito respeito por estas manifestações, que, por sua importância de trabalho em grupo, são verdadeiros alicerces para o desenvolvimento social. São instrumentos necessários para a formação do caráter cultural e intelectual, além de apurar o senso crítico pela observação e audição como formas de sensilibização.

No artigo do semanário Al-Ahram, o coreógrafo Omar Barghouti discute o significado da cultura e educação na preservação da identidade nacional e o espírito humano ao mesmo tempo. A criatividade e o aprendizado são vitais ao projeto de sobrevivência, argumenta Barghouti, descrevendo como, mesmo sob o cessar fogo, o povo da sua vizinhança de Ramallah precisa de livros, música e jogos. Mesmo nos campos de refugiados, os pais, cujas vidas e posses foram dizimadas, estão preocupados em restaurar as escolas para seus filhos. Mesmo com esta cidade ocupada e destruída, Omar Barghouti mantém sua atuação na dança.

Barghouti põe esses valores num contexto histórico. Os palestinos, forçados a fugir de suas casas em 1948, são assombrados por seu fracasso em resistir, ele diz. Ele explica que esse fracasso é atribuído à “consciência limitada” do tempo, “a qual, nesse contexto, entende-se como uma combinação de ignorância, analfabetismo, falta de aptidões essenciais, como também falta de um sentido claro de identidade. Portanto, cultivar uma tradição de educação e a prática da cultura são a chave para a sobrevivência dos palestinos como um povo: “os palestinos não podem se dar ao luxo de não fazer parte da reabilitação cultural na sua batalha ampla de reconstrução e luta pela emancipação,” ele escreve. Neste ensaio comovente, Barghouti nos supre com a imagem da dança como um símbolo da sobrevivência e renovação palestina.

Nossa história sobre as danças étnicas árabes é muito mais longa, mas deixo esta contribuição para a reflexão e conto com todos (as) para acompanharem este resgate da memória ancestral em busca da equidade social, dos valores comunitários e coletivos e da determinação de se construir uma economia justa e equilibrada como foi a dos nossos antepassados, quando a felicidade era pautada por uma “segurança alimentar” ordenada e coordenada pelas forças da natureza, com seus ciclos hidrológicos, ao cultuar a sensualidade como uma dádiva de Deus e exorcizar o erótico profanador e degradador da natureza humana.

Num tempo em que o ser humano fazia parte do ambiente e não o partia ao meio!

Notas:

1.Raks = dança Charq = leste, oriente. Charqi = oriental , portanto, Raqsa Ach-Charq (ou Ash-Sharq) é Dança do Oriente, Dança do Leste; Raqsa Charqyi = Dança Oriental. Raqsa Ash-Sharq é a pronuncia correta sendo Raqsa Al Sharq, para os egípcios e Raqsa Charkyi para os libaneses. Agradecimentos a Carlos Tebecherani Haddad, professor e pesquisador do idioma árabe.
2. Belle Danse em francês = bela dança e Belly Dance em inglês = dança do ventre.
3. São consideradas semitas todas as tribos beduínas, incluindo-se a etnia hebraica, cuja religião é o judaísmo. Com a migração destas tribos nômades entre outras que se miscigenaram, originam-se os ciganos do Ocidente; com a perseguição dos hebreus no Oriente Médio, advém a expressão “judeu errante”, ou seja, refere-se aos judeus que partem em busca de uma terra, uma nação. (Lactho Drom – Michele Ray-Gravas. La Musique des tsiganes du monde de l’Inde a l ‘Espagne).
4. O histórico das tribos beduínas está registrado na cultura oral. Encontram-se narrativas em suas músicas, nas danças, nos contos que passam de pais para filhos, nos livros sagrados como O Alcorão, nas escrituras Baha’i, na Bíblia, no Talmut etc.; encontram-se também nos poemas de Rumi, Gibran Kalil Gibran, entre outros poetas árabes e persas. Os cantos beduínos enaltecem o meio ambiente e a mulher; relatam o amor do povo nômade pelos ecossistemas desérticos e suas paixões. A cantora egípcia Om Kalthoun expressou com toda essência de sua belíssima voz a história desses povos que encantam o mundo por sua passividade, benevolência e profunda sabedoria milenar. Om Kalthoun morreu cultuada como a “Mãe do Egito”. Uma ativista feminina amada e respeitada. Jamais conseguiram fazer-lhe calar a voz!
5.   Documentário que mostra o trabalho de Amyra El Khalili com o Movimento Mulheres pela P@Z!, da série MICRO DOC.
Realização: Micro Mundo, 2009, Brasil. Direção: Buca Dantas. Finalização:  Matyeu Duvignaud. Assista em:https://www.youtube.com/watch?v=E2ZutMOzRPA
6. A oficina já foi ministrada em estados brasileiros como Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Bahia, Santa Catarina, Paraná, Distrito Federal, Acre e Amazonas. Focada na troca de experiências, a oficina é gratuita e aberta às mulheres de todas as idades, principalmente as que trabalham com movimentos populares, artistas e profissionais de cultura. Em Rio Branco foi realizada no pacto indígeno-andino-palestino com a participação de mulheres e homens, com lideranças indígenas e campesinas em “Tributo aos povos da Amazônia”.

Referências:

El KHALILI, Amyra. Commodities ambientais em missão de paz: novo modelo econômico para a América Latina e o Caribe. Editora Nova Consciência. São Paulo. 2009.

VIRGÍLIO, Tiziane. Mulheres na dança pela água em missão de paz na Amazônia. Manauscult.http://port.pravda.ru/sociedade/cultura/25-01-2015/37985-mulheres_amazonia-0/. Acesso em 25 jan.2015. Capturado em 14 dez. 2017.

ORIENTE MÍDIA. A dança que emociona a luta. http://www.orientemidia.org/a-danca-que-emociona-a-luta/. Acesso  em 06 dez.2017. Capturado em 14 dez. 2017.


Amyra El Khalili é beduína palestino-brasileira, da linhagem do Shayk Muhammad al-Khalili*. É professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras. É autora do e-book Commodities ambientais em missão de paz: novo modelo econômico para a América Latina e o Caribe.

*Shayk Muhammd al-Khalili - Nascido no primeiro mês muçulmano de Shaban do Hijra do ano 1139, que corresponde ao ano A.D. 1724, era o líder da Irmandade Qadiri Sufi e talvez o “homem santo” mais famoso do seu tempo na Palestina.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Nem tudo o que é econômico é financeiro. Lamentavelmente, porém, tudo o que é financeiro é econômico.

Por Amyra El Khalili*
Para entender como e por que o capitalismo verde avança sobre os territórios indígenas e das populações tradicionais, é necessário reconhecer os paradoxos da água; ou seja, a água é vida e morte, liberdade e escravidão, esperança e opressão, guerra e paz. A água é um bem imensurável, insubstituível e indispensável à vida em nosso planeta, considerada pelo Artigo 225 da Constituição Brasileira, bem difuso, de uso comum do povo.
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Nesse sentido, a recente descoberta do que pode ser o maior aquífero de água doce do mundo na região amazônica, o Alter do Chão, que se estende sob as bacias do Marajó (PA), Amazonas, Solimões (AM) e Acre, todas na região amazônica, chegando até as bacias subandinas, exige atenção e cuidado por parte da sociedade brasileira.
Convulsões sociais ocorrerão se não estivermos preparados para novos enfrentamentos geopolíticos, uma vez que o aquífero Alter do Chão, que chega a 162.520 mil quilômetros cúbicos, possui mais que o triplo da capacidade hídrica do Aquífero Guarani com 45 mil quilômetros cúbicos, considerado até então, o maior do mundo. Segundo estimativas de cientistas, o Alter do Chão abasteceria o planeta por pelo menos 250 anos. Sendo assim, ele atrai, inevitavelmente, a cobiça dos países do hemisfério Norte, que já não têm mais água para o consumo. Processo similar acontece no Oriente Médio, com disputas sangrentas pelo petróleo e gás natural.
O controle sobre essa riqueza hídrica depende exclusivamente do controle territorial. As águas são transfronteiriças e avançam sobre os limites entre municípios, estados e países. O recorde histórico da cheia do Rio Madeira em 2014, que inundou cidades na Bolívia, além das trágicas inundações nos estados de Rondônia e no Acre, é um bom exemplo dessa característica das águas.
De modo geral, a água está sendo contaminada com a mineração e com o despejo de efluentes, agrotóxicos e químicos, e poderá ser poluída também com a iminência da exploração de gás de xisto, onde a técnica usada para fraturar a rocha pode contaminar as águas subterrâneas, além de intoxicar o ar.
Segundo estimativas de um relatório do projeto Land Matrix, que reúne uma série de organizações internacionais focadas na questão agrária, mais de 83,2 milhões de hectares de terra em países em desenvolvimento foram vendidos em grandes transações internacionais desde 2000. Os países economicamente mais vulneráveis da África e da Ásia perderam extensas fatias de terras em transações internacionais nos últimos 10 anos. A África é o principal alvo das aquisições, seguida da Ásia e América Latina. Essas compras foram estimuladas pelo aumento nos preços das commodities agrícolas e pela escassez de água em alguns dos países compradores, que o fazem para a exploração da agricultura, mineração, madeira e do turismo.
Outros países são alvos dessa ofensiva fundiária, como a Indonésia, Filipinas, Malásia, Congo, Etiópia, Sudão e o Brasil, que teve mais de 3,8 milhões de hectares vendidos para estrangeiros somente nos últimos 12 anos. E estamos falando de terras que poderiam ser adquiridas legalmente através da compra; porém, as terras indígenas e de populações tradicionais são terras da União e, portanto, não podem ser negociadas e nem alienadas, pois estão protegidas por leis nacionais e internacionais.
São justamente essas terras que estão preservadas e conservadas ambientalmente, além de serem as mais ricas em biodiversidade, água, minério e energia (bens comuns). São nessas áreas que ocorre o avanço desenfreado do capitalismo verde que, na verdade, é o mesmo velho e desgastado modelo colonialista e extrativista. Com uma nova roupagem ecológica e supostamente sustentável, mas imperialista e expansionista neoliberal, visa, prioritariamente, à apropriação dos bens comuns. De uso público e tutelados pelo Estado, esses bens são definidos como “recursos naturais”, assim como os trabalhadores são considerados pelo sistema como “recursos humanos”. Tudo neste modelo “verde” é transformado em “utilitário” com a finalidade de ser usado ilimitadamente e no curto prazo.
Essa concepção utilitarista do capitalismo verde já é confrontada com outros modelos econômicos e outras propostas de vida, como o Bem Viver, dos povos das florestas e campesinos, a economia socioambiental, a economia solidária e a agroecologia, dentre outras que estão florescendo.
Como já dito, esse modelo econômico com purpurina verde pretende apropriar-se dos bens comuns e, para isso, é necessário tomar as terras que estão sob o guarda-chuva da União e que pertencem há milênios aos povos indígenas e demais povos das florestas.
Para que essa guerra seja viabilizada, algumas leis estão sendo aprovadas com o claro propósito de beneficiar o mercado financeiro. Paralelamente, outras leis são desmanteladas para institucionalizar e legitimar a ocupação de estrangeiros, empresários e banqueiros em territórios latino-americanos e caribenhos, como é o caso dos direitos fundamentais dos povos indígenas, o Código Florestal, os direitos trabalhistas, entre outros.
Dessa forma, contratos unilaterais e perversos são assinados por atores com relações de forças totalmente desiguais (assimétricas), em que confunde-se, propositadamente, “financiar” com “financeirizar”.
Aqui cabe uma elucidativa exemplificação: financiar é, por exemplo, permitir que uma costureira compre uma máquina de costura e consiga pagá-la com o fruto de seu trabalho, tornando-se independente de um empregador para que venha a ser empreendedora.
Já, financeirizar é fazer com que a costureira endivide-se para comprar uma máquina de costura e jamais consiga pagá-la, até que o credor possa tomar a máquina da costureira por inadimplência (não cumprimento do acordo mercantil).
A financeirização faz com que uma parte do acordo, a descapitalizada, fique endividada e tenha que entregar o que ainda possui, como as terras indígenas. E, assim, são desenhados contratos financeiros e mercantis com a finalidade de vincular as terras ricas em bens comuns para que essas garantias fiquem alienadas e à disposição da parte mais forte: a capitalizada.
Nesses termos, as populações indígenas e os povos das florestas deixam de poder usar o que lhes mantêm vivos e o que preservam há séculos para as presentes e futuras gerações, as florestas e as águas, para que terceiros possam utilizá-los, além de passarem a controlar também seus territórios.
É essa a lógica perversa do capitalismo verde, sustentado pelo argumento de que as florestas “em pé” somente serão viáveis se tiverem valor econômico. O que é uma falácia, pois valor econômico as florestas “em pé” e as águas sempre tiveram. O que não tinham, até então, era valor financeiro, já que não há preço que pague o valor econômico das florestas, dos bens comuns e dos “serviços” que a natureza nos proporciona gratuitamente.
O capitalismo somente avança nas fronteiras que consegue quantificar; porém, jamais conseguirá se apropriar do que a sociedade puder qualificar.
O bem ambiental, conforme explica o art. 225 da Constituição, é “de uso comum do povo”, ou seja, não é bem de propriedade pública, mas, sim, de natureza difusa, razão pela qual ninguém pode adotar medidas que impliquem gozar, dispor, fruir do bem ambiental, destruí-lo ou fazer com ele, de forma absolutamente livre, tudo aquilo que é da vontade, do desejo da pessoa humana no plano individual ou metaindividual.
Ao bem ambiental, é somente conferido o direito de usá-lo, garantido o direito das presentes e futuras gerações.
Não podemos nos omitir nem deixar de nos posicionar em favor daqueles que são os guardiões das florestas e das águas. Temos muito que aprender com esses povos para também preservar os conhecimentos milenares da origem da humanidade.
Somente qualificando o bem comum, ao dar-lhe importância econômica pela garantia da qualidade de vida que nos proporciona e nos recusando a colocar-lhe preço (financeirizando-o), é que poderemos impedir o avanço desenfreado do capitalismo verde sobre os territórios indígenas e das populações tradicionais.
Se o povo, o proprietário hereditário dos bens comuns decidir que o ouro, o petróleo e o gás de xisto, dentre outros minérios, devem ficar debaixo do solo para que possamos ter água com segurança hídrica e alimentar, que sua vontade soberana seja cumprida.
Notas:
1 “Aquífero na Amazônia pode ser o maior do mundo, dizem geólogos”. Disponível em: <http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/04/aquifero-na-amazonia-pode-ser-o-maior-do-mundo-dizem-geologos.html>. Acesso em: 19 abr. 2010.
2 “Plantando no vizinho. 10 países que estão comprando terras estrangeiras aos montes”. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/economia/mundo/noticias/10-paises-que-estao-comprando-terras-estrangeiras-aos-montes>. Acesso em: 24 mai. 2012.
3 MADEIRO, Carlos. Maior aquífero do mundo fica no Brasil e abasteceria o planeta por 250 anos. Disponível em 21 mar. 2015. Acesso em 21 abr. 2017 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/03/21/maior-aquifero-do-mundo-fica-no-brasil-e-abasteceria-o-planeta-por-250-anos.htm.
Referências:
Financeirização da Natureza: a última fronteira do capital. Jornal Porantim. Publicação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo vinculado à CNBB. Ano XXXVI, nº 368, Brasília, Set 2014. Disponível em 09 dez. 2014. Acesso em 21 mar. 2017. http://cimi.org.br/pub/Porantim%20368%20-%20para%20SITE_1.pdf
EL KHALILI, Amyra. A lógica perversa do capitalismo verde. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 13, n. 78, p. -, nov./dez. 2014.
_____O que está em jogo na “economia verde?. Disponível em 19 mar. 2017 em português:http://operamundi.uol.com.br/dialogosdosul/o-que-esta-em-jogo-na-economia-verde/19032017/ em espanhol:http://operamundi.uol.com.br/dialogosdelsur/que-esta-en-juego-en-la-economia-verde/18032017/. Acesso em 21 de abr. 2017
*Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

''Israel não pode manipular a história e negar os direitos dos palestinos.'' Entrevista com Salim Tamari

A história passada e recente de Jerusalém e a relevância da cidade para judeus, muçulmanos e cristãos estão no centro das atenções após a declaração de Donald Trump voltada a realizar apenas as aspirações de Israel. Sobre essas questões, entrevistamos o professor Salim Tamari, sociólogo e historiador de Jerusalém. Diretor do Institute of Jerusalem Studies e da revista internacional Jerusalem Quarterly, Tamari, após a conferência de Madri em 1991, participou da única negociação oficial – sem qualquer resultado – realizada até hoje por árabes e israelenses sobre o direito ao retorno para os refugiados palestinos da guerra de 1948.

A reportagem é de Michele Giorgio, publicada no jornal Il Manifesto, 06-12-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto e encaminhada a este blog por  Mulheres pela Paz..

Eis a entrevista:

A maioria dos israelenses, quando falam de Jerusalém, enfatizam exclusivamente o vínculo da cidade com o judaísmo, e o primeiro-ministro, Netanyahu, descreveu a declaração de Trump como uma ênfase da identidade histórica e nacional de Israel. Mas Jerusalém tem uma importância igual para os palestinos e os árabes e para os muçulmanos e os cristãos em todo o mundo.

Para os árabes, Jerusalém não é apenas uma identidade. Ela foi e é o lugar da paixão de Cristo e de oração para os palestinos cristãos. E, para os muçulmanos, Jerusalém é a cidade da viagem noturna de Maomé e o lugar da Esplanada da al-Aqsa, o terceiro lugar santo do Islã. Portanto, os sentimentos e o apego dos árabes e dos palestinos, que são muçulmanos e cristãos, por Jerusalém não são menos importantes e significativos do que os que os judeus sentem. A história de Jerusalém fala claramente, Israel não pode manipulá-lo como acredita e, em última análise, não pode se orgulhar de um direito exclusivo sobre a cidade.

Enquanto isso, Trump, contra as resoluções internacionais e com o risco de desencadear uma grave crise, reconheceu-a como capital de Israel, e a embaixada estadunidense, mais cedo ou mais tarde, será transferida de Tel Aviv para Jerusalém. O que muda concretamente a declaração do presidente dos Estados Unidos?

Estamos diante de uma virada da posição estadunidense (sobre Jerusalém) que, em termos práticos, não muda muito em relação à situação que já conhecemos. Localmente, veremos manifestações de cólera de palestinos e árabes contra essa ação de força dos Estados Unidos, mas os maiores reflexos, em minha opinião, serão sobre o status de Washington na mediação entre israelenses e palestinos. O reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel manda pelos ares a posição mantida pelos Estados Unidos por décadas, ou seja, que o status da cidade seria definido por negociações finais entre israelenses e palestinos. Os Estados Unidos, ainda mais do que antes, não têm os títulos e a credibilidade para se apresentarem como mediadores entre as duas partes.

Chegamos ao fim do processo diplomático que justamente os Estados Unidos tinham iniciado em Madri e que, em 1993, havia convergido nos acordos que Israel e a OLP alcançaram secretamente em Oslo.

Essa iniciativa estadunidense, basta olhar ao redor, fracassou há muito tempo. E Trump, há um ano, já se move fora do caminho traçado pelos seus predecessores depois de Oslo. No início do ano, ele aposentou a solução dos dois Estados, Israel e Estado Palestino, que foi o pilar das negociações apoiadas, particularmente, pelos Estados Unidos e pela Europa. O presidente estadunidense trabalha no seu “Grande Acordo” entre Israel e o mundo árabe, e prossegue seguindo linhas diferentes das conhecidas até hoje. Trump visa a alcançar objetivos não perseguidos, pelo menos não tão abertamente, pelos seus antecessores.

No entanto, sem querer, Trump desencadeou um movimento que não é favorável a Israel. Com a sua medida, ele chamou a atenção para Jerusalém, despertou novas paixões nos palestinos. Indiretamente, Trump forçou os países árabes e ocidentais a tomarem novamente posição em apoio dos direitos dos palestinos sobre Jerusalém e sobre o futuro da cidade. E não vão demorar a surgir as graves discriminações que Israel tem contra os árabes em Jerusalém. Eu não acho que sou um otimista, mas esse desprezo internacional não era visto há muito tempo e poderia se voltar contra aqueles que, hoje, em Israel, festejam as palavras de Trump.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Nota Pública: Ataque a indígenas Suruí Paiter mostra que Rondônia é um estado sem lei, onde a impunidade comanda

REGIONAL RONDÔNIA
O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Rondônia repudia novo ato de violência contra os povos indígenas do estado e se solidariza com o povo Suruí Paiter diante da denúncia de ataque a tiros sofrido pelo casal Elisângela Dell-Armelina Suruí e Naraymi Suruí, cacique de uma das aldeias que compõem a terra indígena. O atentado ocorreu no momento em que ambos regressaram à aldeia, na noite de quarta-feira, dia 29 de novembro, na estrada que dá acesso à aldeia Paiter Suruí/Linha 12, no município de Cacoal (RO), sendo abordados por dois homens sobre uma moto. Os indígenas se protegeram atrás da motocicleta em que estavam, e os criminosos acabaram afugentados por outros indígenas que vinham logo atrás.

Para os indígenas não há dúvidas dos autores do ataque. Há poucas semanas, os Suruí expulsaram do interior da terra indígena madeireiros que carregavam um caminhão com árvores derrubadas horas antes. A promessa foi clara: o cacique Naraymi Suruí seria morto, entre outras ameaças. Não tardou para que experimentassem a ira criminosa e genocida de indivíduos que costumam agir com a certeza da impunidade, e seguem invadindo terras indígenas de Rondônia. Elisângela Suruí é professora e educadora, reconhecida nacionalmente pelo trabalho que desempenha, e esposa de Naraymi Suruí. Os dois acabaram tendo que retornar para a cidade de Ji-Paraná, logo após o ataque, por orientação da Polícia Militar.    

Os invasores das terras indígenas transitam com liberdade e fazem de Rondônia um estado sem lei; vale mais o dinheiro do que a dignidade humana. Já não é novidade as notícias que saem pelas mídias e redes sociais acerca da violação de direitos e a violência contra os povos indígenas. Os grupos econômicos continuam a especular e a negociar os territórios indígenas, com a conivência e aprovação do Estado brasileiro. Estas invasões têm uma relação estreita com a política indigenista e ambiental do governo federal, que promove cada vez mais a desconstrução da Constituição Federal, com as inúmeras medidas, decretos, portarias, PL e PECs, que tramitam nas três esferas: Executivo, Legislativo e Judiciário, ameaçando a integridade cultural dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Se trata de uma política indigenista que aposta no genocídio, na devastação de terras protegidas e na violência generalizada contra populações que ousam discordar na construção de um outro projeto de futuro.   

No estado de Rondônia todas as terras indígenas estão invadidas. É uma invasão promovida por quem tem o dever de proteger, fiscalizar e coibir tais ações: quem permite que tal quadro ocorra deve ser considerado cúmplice. O Estado é cúmplice destes criminosos: madeireiros, grileiros e toda sorte de invasores. Os Planos de Manejos Florestais são concedidos pela Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam) no entorno das terras indígenas. São essas as brechas encontradas para alimentar a ação destes grupos econômicos inescrupulosos. Vive-se uma situação de completo abandono das forças estatais, que devido a morosidade das instituições responsáveis, somando aí a falta de efetivo para a fiscalização e vontade política para dar um ponto final a toda esta violação de direitos, faz do estado de Rondônia uma terra onde reina a violência e a impunidade, uma terra onde a lei serve para uns e inexiste para a maioria.

Os povos indígenas têm sua liberdade cerceada no direito de ir e vir, dentro e fora de seu território: são muitas as ameaças dos invasores. O relato de Elisângela Suruí para a imprensa regional elucida bem a morosidade e a ineficiência do estado em coibir estas ações ilícitas: “A comunidade pediu para eles (madeireiros) se retirarem, falaram que iriam sair, mas na semana passada, quando os indígenas retornaram para colher castanha, encontraram quatro caminhões carregados com castanheiras e também tratores arrastando os caminhões pela mata. Meu sogro ficou revoltado e danificou um dos caminhões com facão. Depois disso, eles (madeireiros) passaram a ameaçar a comunidade. Falaram que iria matar principalmente meu marido, pois acham que ele que está à frente do movimento por ser o cacique”.

Nem os inúmeros documentos de denúncias protocolados na Fundação Nacional do Índio (funai), Ibama, Polícia Federal e ao Ministério Público Federal (MPF), exigindo providências para a fiscalização e retirada dos invasores, foram suficientemente eficazes para coibir a ação de grupos políticos e econômicos, com destaque para a indústria ilegal da madeira, do garimpo e da grilagem de terra.

Até quando os povos indígenas terão que esperar uma ação do estado para ter garantida a sua integridade física, cultural e territorial?

Chega de impunidade!!!

Porto Velho, 1 de dezembro de 2017

Cimi Regional Rondônia

sábado, 25 de novembro de 2017

COP23 - As commodities ambientais e a métrica do carbono

“ A China e a Califórnia planejam utilizar os arrozais como fonte para créditos de carbono, o que provocou uma reação da comunidade ambiental com o movimento No-Redd Rice.
O REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) é a compra de um título em créditos de carbono sobre uma área de floresta que deve ser preservada. Trata-se de mais um exemplo de financeirização da natureza, pois vincula a comunidade local a um contrato financeiro em que ela fica impedida de manejar a área por muitos anos, enquanto a outra parte do contrato continua produzindo e emitindo poluição do outro lado do mundo. Há também projetos de REDD que aliam a conservação com a preservação ambiental, mas com complexas e polêmicas condicionantes que têm culminado em mais degradação e violação dos direitos humanos, conforme denúncias apuradas com o Dossiê ACRE...”
Por Amyra El Khalili*

De acordo com o Ministério da Agricultura, em 2013 o agronegócio brasileiro atingiu a cifra recorde de 99,9 bilhões de dólares em exportações. Soja, milho, cana ou carne ganham os mercados externos na forma de commodities: padronizadas, certificadas e atendendo a determinados critérios e valores regulados internacionalmente.
No entanto, as monoculturas extensivas não deveriam ser a única alternativa de produção brasileira. A movimentação econômica envolvendo as commodities convencionais exclui do processo de produção e das decisões os pequenos e médios produtores, campesinos, extrativistas, ribeirinhos, as populações indígenas e as populações tradicionais. Sem grandes incentivos governamentais, sem investimento para atingir os elevados padrões de qualidade nacionais e internacionais ou sem capacidade produtiva para atingir os mercados, estes permanecem sempre à margem do sistema (COSTA, Andriolli. IHU On Line 2014).
O conceito commodity ambiental está em permanente construção, mas, atualmente, representa o produto manufaturado pela comunidade de forma artesanal; integrada ao ecossistema, não promove impacto ambiental. Já a commodity convencional privilegia a monocultura, a transgenia, a biologia sintética, a geoengenharia e a mecanização, com seus lucros concentrados nos grandes proprietários e corporações. A ambiental é pautada pela diversificação de produção, pela produção agroecológica e integrada, e privilegia o associativismo e o cooperativismo.Uma commodity tradicional/convencional é a matéria-prima extraída do ecossistema que é manufaturada e ajustada de acordo com um critério internacional de exportação adotado entre transnacionais e governos. Por outro lado, a commodity ambiental também terá critérios de padronização, mas adotando valores socioambientais e um modelo econômico totalmente diferente.
Comoditização e financeirização da natureza
A comoditização da natureza é transformar o bem comum em mercadoria. Ou seja, a água, que na linguagem jurídica (art. 225 da Constituição brasileira), é chamada de bem difuso, de uso comum do povo, deixa de ser bem de uso público para ser privatizada, para se tornar mercadoria. A financeirização é diferente; é a ação de tornar financeiro o que deveria ser apenas econômico e socioambiental.
Isto porque a melhora da qualidade de vida também é uma questão econômica. Uma região em que as pessoas conseguem conviver com a natureza e têm acesso à água limpa, por exemplo, oferece um custo financeiro menor. É onde se vive melhor e se gasta menos. Isto também tem fundamento econômico.
No caso da financeirização da natureza, por exemplo, seria nossa obrigação de pagar por serviços que a natureza faz de graça para todo mundo e que nunca foram contabilizados na economia, como, entre outros "serviços", sequestrar o carbono da natureza.
Commodity convencional versus Commodity ambiental
Uma commodity convencional é a matéria-prima extraída do ecossistema, que é manufaturada e padronizada de acordo com um critério internacional de exportação adotado por transnacionais e governos. Excluem-se, desse processo e respectivas decisões, os pequenos e médios produtores, os extrativistas e ribeirinhos, entre outros. O ouro, por ser minério, não é uma commodity; enquanto está na terra, é um bem comum. Ele se torna quando transformado em barras, registrado em bancos, devidamente certificado com padrão de qualidade avaliado e adequado a normas de comercialização internacional.
A commodity ambiental também terá critérios de padronização, mas adotando valores socioambientais e um modelo econômico totalmente diferente. O conceito está em construção e debate permanente, mas hoje chegamos à seguinte conclusão: a commodity ambiental é o produto manufaturado pela comunidade de forma artesanal; integrada ao ecossistema, não provoca o impacto ambiental como ocorre na produção de commodities convencionais.
A convencional (soja, milho, café, boi, pinus etc.) é produzida como monocultura; já a ambiental exige a diversificação da produção, respeitando os ciclos da natureza de acordo com as características de cada bioma. A convencional caminha para a transgenia, para a biologia sintética e geoengenharia; a outra, caminha para a agroecologia, a permacultura, a agricultura alternativa e de subsistência, estimulando e valorizando as formas tradicionais de produção que herdamos de nossos antepassados. A convencional tende a concentrar o lucro nos grandes produtores; já a ambiental o divide em um modelo associativista e cooperativistas para atender à maior parte da população que foi excluída do outro modelo de produção e financiamento.
O Brasil concentra sua política agropecuária em alguns poucos produtos da pauta de exportação (soja, cana, boi, pinus, eucaliptos, café, algodão, entre outros). A comoditização convencional promove o desmatamento, que elimina a biodiversidade, com a abertura das novas fronteiras agrícolas. Nós somos produtores de grãos, mas não existe apenas essa forma de geração de emprego e renda no campo.
Pense-se na capacidade da riqueza da nossa biodiversidade e o que poderíamos produzir com a diversificação no Brasil: doces, frutas, sucos, polpas, bolos, remédios naturais, chás, condimentos, temperos, licores, bebidas, farinhas, cascas reprocessadas e vários produtos oriundos de pesquisas gastronômicas. Sem falar em artesanato, reaproveitamento de resíduos e reciclagem. O meio ambiente não é entrave para produzir; muito pelo contrário.
Na commodity ambiental, utilizamos critérios de padronização reavaliando os critérios adotados nas commodities convencionais. Por isso, cunhei o termo para explicar a "descomoditização". No entanto, diferentemente dos convencionais, os critérios de padronização podem ser discutidos; necessitam de intervenções de quem produz e podem ser modificados. Nas commodities ambientais, o excluído deve estar no topo deste triângulo, pois os povos das florestas, as minorias, os campesinos e as comunidades que vivem desde sempre nesses ecossistemas é que devem decidir sobre contratos, critérios e gestão destes recursos, uma vez que a maior parte dos territórios lhes pertence por herança ancestral.
Tomemos, como exemplo, as produções alternativas com as riquezas do Cerrado, que vem sendo ameaçado por monocultivos e pastagens:
- frutas regionais: - araticum, cagaita, baru, jatobá, mangaba, murici, cajuí, araçá, faveira, pequi, gabiroba, gueiroba, buriti, oiti-tucum, bacuri, ingá, muta, sapucaia, genipapo, mutamba.
- plantas medicinais: arnica, ipê, barbatimão, faveira, copaíba, aroeira, andiroba, mangabeira, açapeixe, favaca, favadanta jatobá, timbó, pára-tudo, cipó milhones, sucupira, sangra d´água.
- comestíveis - pequi, gabiroba, imbé, bacaba;
- óleos essenciais:- óleo de pequi, copaíba, babaçú, macaúba;
- madeira do cerrado:- aroeira, angico, jatobá, braúna, cedro do cerrado, landim, ipê, ata menjú, angelim;
- corantes: cedro do cerrado para cor vermelha;
- condimentos;
- biocidas,
- plantas e sementes ornamentais: bromélias, orquídeas etc.;
- minérios: pedras semipreciosas, pigmentos minerais a exemplo dos usados pelos artesãos da Serra Dourada-GO;
- animal silvestre criado em cativeiro: capivara, cutia, paca, aves, jaó, juriti, ema...
- produtos orgânicos: hortaliças, frutas, legumes e temperos;
- ervas medicinais convencionais;
- artesanato: usando pedras semipreciosas, folhas e flores secas, madeira ou cerâmica;
- produtos da culinária regional: arroz com pequi, galinha com gueiroba, galinha com pequi, pupunha.
Merecem destaque, no Cerrado, processos produtivos como a agricultura orgânica - processo em expansão na região -, e o manejo sustentável de recursos e áreas nativas; os processos de reaproveitamento e reciclagem de resíduos; os processos de gestão, como o zoneamento econômico ecológico, feito com participação comunitária e políticas públicas; a energia renovável - solar e eólica. O turismo (ecoturismo, turismo rural, de aventura), que usa os atrativos locais (paisagem, águas, cachoeiras, cavernas) e a cultura e folclore regional (culinária, festivais, etc.), que, na verdade, constituem alternativas de geração de emprego e renda para a população local.
Comercialização das Commodities Ambientais
Com o objetivo de estimular a organização social, cito um exemplo de comercialização associativista e cooperativista bem-sucedida. É o caso dos produtores de flores de Holambra (SP). Além de produzirem com controle e gestão adequados às suas necessidades, a força da produção coletiva e o padrão de qualidade fizeram com que seu produto ganhasse espaço e reconhecimento nacional.
Hoje veem-se flores de Holambra até na novela da Globo. Esta produção, porém, ainda está no padrão das commodities convencionais, pois envolve o uso de agrotóxicos. Mesmo assim, conseguiu adotar outro critério para decidir sobre padronização, comercialização e precificação, libertando-se do sistema de monocultura. A produção de flores é diversificada, o que faz com que o preço se mantenha acima do custo de produção, auferindo uma margem de lucro para seus produtores associados e cooperativados.
Inspirados no exemplo de comercialização da Cooperativa Agrícola de Holambra com o sistema de Leilão de Flores (Veiling) - uma bolsa que forma preço com estrutura e organização bem diferente das Bolsas de Valores, de Mercadorias e de Futuros cujos proprietários são banqueiros e corretores -, desenvolvemos um projeto de comercialização das commodities ambientais, além de novos critérios integrados e participativos de padronização com associativismo.
No entanto, o governo também precisa incentivar mais esse tipo de produção alternativa e comunitária. A Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), por exemplo, exige normas de vigilância sanitária e padrões de industrialização que tornam inacessível às mulheres de Campos dos Goytacazes colocar suas goiabadas nos supermercados brasileiros (além de sua cidade). Quem consegue chegar aos supermercados para vender um doce? Com raras exceções, só as grandes empresas de alimentos industrializados.
E o questionamento que está sendo feito é justamente este. Abrir espaço para que pessoas como as produtoras de doces saiam da margem do sistema econômico. Que elas também possam colocar o seu doce na prateleira e este concorra com um doce industrializado, com um preço que seja compatível com sua capacidade de produção. Não é industrializar o doce de goiaba, mas manter um padrão artesanal de tradição da goiabada cascão. Se não tivermos critérios fitossanitários, entre outros critérios, para trazer para dentro essa produção que é feita à margem do sistema, elas vão ser sempre espoliadas e não terão poder de decisão. O que se pretende é que se crie um mercado alternativo e que esse mercado tenha as mesmas condições, e possa, sobretudo, decidir sobre como, quando e o que produzir.
O termo commodities ambientais é, por vezes, utilizado de maneira distorcida, como que fazendo referência às commodities convencionais, mas aplicada a assuntos ambientais, como os créditos de carbono, ou classificando as matrizes ambientais, que são bens comuns e/ou processos (água, energia, biodiversidade, florestas, minério, reciclagem e redução de poluentes - água, solo e ar), à commoditização e financeirização da natureza, quando as commodities ambientais são as mercadorias originadas destas matrizes.
Nunca dissemos que matrizes ambientais são mercadorias e tampouco propusemos instrumentos econômicos para mercantilizá-las e financeirizá-las, mesmo que o entendimento do senso comum procure resumir a expressão "commodities ambientais" ao conjunto de mercadorias e suas matrizes, já que uma (a commodity) não existirá sem preservar a conservar a outra (matriz).
Pelo contrário, a defesa das commodities ambientais, e suas matrizes, consiste justamente no direito de uso dos bens comuns pelas presentes e futuras gerações e no princípio da "dignidade da pessoa humana". Tal proposta seria inconstitucional e contrária ao que está sendo discutido há 20 anos. A estratégia "commodities ambientais" foi adotada, há 20 anos, para construir coletivamente uma cultura de resistência, exatamente para combater a degradação ambiental, a exclusão social com suas desigualdades e, principalmente, o poder autofágico do sistema financeiro.
Esta apropriação indevida foi feita pelos negociantes do mercado de carbono. Eles buscavam um termo diferente da expressão "créditos de carbono", uma palavra que já denuncia um erro operacional. Afinal, se se pretende reduzir a emissão, por que creditar permissões para emitir? Contadores, administradores de empresa e profissionais do setor financeiro não entendiam como se reduz emitindo um crédito que entra no balanço financeiro como ativo e não como passivo.
Como o nome créditos de carbono não estava caindo na graça de gente que entende de mercado, adotaram a expressão commodities ambientais para tentar justificar créditos de carbono. Na verdade, porém, estavam comoditizando a poluição, com a devida financeirização. É o que consideramos prática de assédio conceitual sub-reptício: quando se apropriam de ideias alheias, esvaziam-nas em seu conteúdo original e as preenchem com conteúdo espúrio. É importante salientar que esse "modus operandi" está ocorrendo também com outras iniciativas e temas, como as questões de gênero e etnia, bandeiras tão duramente conquistadas por anos de trabalho, e que nos são tão caras.
Mercado de Ativos Ambientais
Depois de muita crítica e de várias intervenções no meio especializado em finanças, trocaram a nomenclatura para reduções certificadas de emissão (RCEs); mesmo assim, a confusão persistiu, exigindo um longo e complexo debate sobre qual seria a natureza jurídica e tributária dos "créditos de carbono", uma vez que a tal mercadoria não existe.
De acordo com o "Projeto de Fortalecimento das Instituições e Infraestrutura do Mercado de Carbono no Brasil", de autoria dos escritórios Leoni Siqueira Advogados e ASM Asset Management, financiado pelo Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Banco Mundial), com recursos do Programa de Assistência Técnica do Fundo Fiduciário para o Desenvolvimento de Políticas e Recursos Humanos (PHRD) do governo japonês, para o Banco Mundial, Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros (BM&FBOVESPA) e Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), como proposta para a "Regulamentação dos Ativos Ambientais no Brasil", os créditos de carbono, ou RCE (Redução Certificada de Emissão), são um ativo financeiro com natureza jurídica de título mobiliário impróprio de legitimação.
Segundo o parecer jurídico e tributário publicado na Revista da Receita Federal - Estudos Tributários e Aduaneiros (2015), " A natureza jurídica e a incidência de tributos federais sobre os negócios jurídicos envolvendo as Reduções Certificadas de Emissão (RCE) (Créditos de Carbono)", do auditor-fiscal e julgador da Sétima Turma da Delegacia da Receita Federal de Julgamento de São Paulo, Mauro José Silva, no qual foi analisada a definição da expressão "commodity ambiental" (EL KHALILI, 2009):
O artigo trata da incidência de tributos federais nos negócios jurídicos que envolvem RCEs, abordando a natureza jurídica de tais certificados e apontando a nossa conclusão sobre a carga tributária aplicável, bem como traz a posição oficial do fisco federal sobre a tributação. A discussão sobre a natureza jurídica analisa as seguintes alternativas: bem incorpóreo, commodity ambiental, título ou valor mobiliário e derivativo, concluindo ser adequado compreender as RCEs como bem incorpóreo [...]
[...] Assim sendo, Gabriel Sister concluiu, acertadamente, que a commodity pressupõe a existência material de um bem que se sujeitará à distribuição para consumo. Como as RCEs representam bens intangíveis, fica afastada a possibilidade de enquadrá-las na definição de commodity. Como não admitimos que as RCEs são commodities, como gênero, não há espaço para que sejam admitidas na espécie das commodities ambientais, em sentido jurídico.
REDD e Risco Sistêmico
Os defensores da REDD (Redução de Emissão por Desmatamento e Degradação) promovida pelos créditos de compensação (Carbono) afirmam que, apesar de esse recurso oferecer aos países industrializados uma permissão para poluir, com a compensação, o governo estabelece um limite para estas transações. Tal afirmação não encontra respaldo na realidade. Esse controle tanto não é feito de maneira adequada que, em 2012, foi levantada uma polêmica no parlamento europeu de grupos que exigiam que a Comunidade Europeia retivesse 900 milhões de permissões de emissão autorizadas após o mercado ter sido inundado por estas permissões (cap and trade). São permissões auferidas pelos órgãos governamentais que as venderam quando a cotação dos créditos de carbono estava em alta, e que caíram para quase zero.
Então, na teoria, pode ser muito bonito, mas entre a teoria e a prática há uma distância oceânica. Há também o seguinte: ainda que se tenha o controle regional, a partir do momento em que um título desses vai ao mercado financeiro e pode ser trocado entre países e Estados em um sistema globalizado, fica a questão: quem controla um sistema desses? Se internamente, com nossos títulos, às vezes ocorrem fraudes e perda de controle, tanto com a emissão quanto com as garantias, como se vai controlar algo que está migrando de um canto para outro? É praticamente impossível controlar volumes vultosos de um mercado intangível e de difícil mensuração.
Movimento No-Redd Rice
A China e a Califórnia planejam utilizar os arrozais como fonte para créditos de carbono, o que provocou uma reação da comunidade ambiental com o movimento No-Redd Rice.
O REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação) é a compra de um título em créditos de carbono sobre uma área de floresta que deve ser preservada. Trata-se de mais um exemplo de financeirização da natureza, pois vincula a comunidade local a um contrato financeiro em que ela fica impedida de manejar a área por muitos anos, enquanto a outra parte do contrato continua produzindo e emitindo poluição do outro lado do mundo. Há também projetos de REDD que aliam a conservação com a preservação ambiental, mas com complexas e polêmicas condicionantes que têm culminado em mais degradação e violação dos direitos humanos, conforme denúncias apuradas com o Dossiê ACRE.
No caso do arroz com REDD, acontece o seguinte: com o entendimento de que uma floresta sequestra carbono, e que é possível emitir créditos de carbono sobre uma área preservada de floresta, o argumento é que a plantação também sequestra. O transgênico, inclusive, sequestra mais carbono do que a agricultura convencional, porque a transgenia promove o crescimento mais rápido da planta e acelera o ciclo do carbono. Então, qualquer coisa que se plante na monocultura intensiva, como a cana ou a soja, também vai sequestrar carbono. Por isso é que o agronegócio deseja emitir créditos de carbono também para a agricultura. Podemos dizer que não sequestra? Não; realmente sequestra! Mas, e quanto aos impactos socioambientais?
O movimento internacional contra o REDD com arroz está se posicionando, por se entender que isso pressionará toda a produção agropecuária mundial, tornando os médios e pequenos produtores, os campesinos, as populações tradicionais, as populações indígenas novamente reféns das transnacionais e dos impactos socioambientais que este modelo econômico, comprovadamente excludente, está causando, além de afetar diretamente o direito à soberania alimentar dos povos, vinculando o modelo de produção à biotecnologia e com novos experimentos bio-geo-químicos.
O problema é que, se o crédito de carbono foi criado com o objetivo de diminuir os impactos ambientais, não se pode submeter a possibilidade de solução do problema a uma monocultura que gera impactos da mesma forma.
Outra coisa importante é que, mesmo que o conceito commodity ambiental continue em construção coletiva e em permanente discussão, hoje nós temos a certeza do que não é uma commodity ambiental. As commodities ambientais não são transgênicas, nem podem ser produzidas com derivados da biotecnologia - como biologia sintética e nem geoengenharia. Não são monocultura; não podem se concentrar em grandes produtores, não causam doenças pelo uso de minerais cancerígenos (amianto), não usam produtos químicos, nem envolvem a poluição ou fatores que possam criar problemas de saúde pública, pois estes elementos geram enormes impactos ambientais e socioeconômicos.
A produção agrícola, como é feita hoje, incentiva o produtor a mudar sua produção conforme o valor pago pelo mercado. Então, se a demanda for de goiaba, só se planta goiaba. Nas commodities ambientais, não. Não é o mercado, mas o ecossistema que tem o poder de determinar os limites da produção. Com a diversificação da produção, quando não é temporada de goiaba é a de caqui; se não for caqui, na próxima safra tem pequi e na seguinte, melancia. Se começarmos a interferir no ecossistema para manter a mesma monocultura durante os 365 dias do ano, vamos gerar um impacto gravíssimo.
Binômio Água e Energia
Água virtual é a quantidade necessária para a produção das commodities destinadas à exportação. No Oriente Médio, ou em outros países em crise de abastecimento, como não há água para a produção agrícola extensa, a alternativa é importar alimento de outros países. Quando se está importando alimento, também se importa, com a água, o que este país investiu para tê-la ou mantê-la, e que o outro deixou de gastar.
O que se defende, na nossa linha de raciocínio, é que, quando exportamos commodities convencionais (soja, milho, boi etc.), se pague também por esta água. No entanto, não se paga nem a água, nem a energia ou o solo gasto para a produção daquela monocultura extensiva. A comoditização convencional, no modelo seguido no Brasil desde sua descoberta, é altamente consumidora de energia, de solo, de água e biodiversidade, e esse custo não está agregado ao preço da commodity. O produtor não recebe este valor, pois vende a soja pelo preço formado na Bolsa de Chicago. Quem compra commodity quer pagar barato; sempre vai pressionar para que este preço seja baixo.
Crise Hídrica
Ainda sobre a água, se é na escassez dos recursos que estes passam a ser valorizados como mercadoria, pode-se afirmar com segurança que é iminente uma crise mundial no abastecimento hídrico.
Consideremos esta questão a mais grave e mais emergencial no mundo. Sem água não há vida; ela é essencial para a sobrevivência do ser humano e de todos os seres vivos. A falta de água é morte imediata em qualquer circunstância. No Brasil, não estamos livres do problema da água, como, aliás, o provou, em 2014-2016, a crise hídrica do Sul e Sudeste do País.
Muita da água está sendo contaminada com despejo de efluentes, agrotóxicos, químicos e poderá ser também com a exploração de gás de xisto, por exemplo, que, para fraturar a rocha, utiliza uma técnica que pode contaminar as águas subterrâneas e o ar com emissão de gás.
Os pesquisadores e a mídia dão ênfase muito grande às mudanças climáticas, que, sem aprofundar a discussão sobre as causas, é consequência. Dá-se destaque ao mercado de carbono como "a solução", sem dar prioridade à causa, que é o binômio água e energia. O modelo energético adotado no mundo colabora para esses desequilíbrios climáticos, provavelmente o maior responsável entre todos os fatores. Nossa civilização é totalmente dependente de energia fóssil. No Brasil temos um duplo uso da água: para produzir energia (hidrelétricas), e para produção agropecuária e industrial, além do consumo humano e dos demais seres vivos.
É necessário produzir tanta energia porque nosso padrão de consumo é altamente consumidor de recursos naturais. Seguimos barrando rios e fazendo hidrelétricas. Quando barramos rios, matamos todo o ecossistema que é dependente do ciclo hidrológico. Caso o binômio água e energia seja resolvido, também será resolvido o problema da emissão de carbono. Quando se resolve a questão hídrica, recompõem-se as florestas, as matas ciliares, a biodiversidade. O fluxo de oxigênio no ambiente e a própria natureza trabalharão para reduzir a emissão de carbono. Se não atacarmos as causas, ficaremos circulando em torno das consequências, sem encontrarmos uma solução real e eficiente para as presentes e futuras gerações.
Referências:
COSTA, Andriolli. As commodities ambientais e a financeirização da natureza. Entrevista especial com Amyra El Khalili - Acesso: 22 janeiro de 2014. Capturado em: 16 fev. 2017.
ÁVILA, Fabiano. " Permissões para poluir não são commodities", afirma Amyra El Khalili. Entrevista Instituto Carbono Brasil. Acesso em: 11 mai. 2012. Capturado em: 16 fev. 2017.
BM&F Bovespa e Santander fecham parceria no setor de mercado de carbono. Acesso em: 17 mai. 2012. Capturado em: 16 fev. 2017.
SIQUEIRA, Leoni Advogados e ASM Asset Management. Projeto de Fortalecimento das Instituições e Infraestrutura do Mercado de Carbono no Brasil. Proposta para a "Regulamentação dos Ativos Ambientais no Brasil". Edição Banco Mundial, BM&FBOVESPA e Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), 2010.
SILVA, Mauro José. "A natureza jurídica e a incidência de tributos federais sobre os negócios jurídicos envolvendo as Reduções Certificadas de Emissão (RCE) (Créditos de Carbono)", Revista da Receita Federal - Estudos Tributários e Aduaneiros, 2015. v. 2 nº 1, 2015. Acesso em: 16 fev. 2017. Publicado em 26 fev. 2016. Acesso em: 16 fev. 2017
Evento na Bolsa discute o Mercado de Ativos Ambientais. Acesso 11.08.2015. Capturado em 16.02.2017.
EL KHALILI, Amyra. Carbono na COP22: um eficiente indexador para combustíveis fósseis. Acesso em: 21 nov. 2016. Capturado em: 16 fev. 2017. http://port.pravda.ru/news/sociedade/23-11-2016/42176-cop_indexador-0/
______. A construção de outro modelo de finanças depende de uma estratégia socioambiental. Capturado em: 8 fev. 2017. Publicado em: 8 fev. 2017.
DOSSIÊ ACRE - Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Regional Amazônia. Documento Especial para a Cúpula dos Povos - O Acre que os mercadores da natureza escondem. 2012. Acesso em: 24 jul. 2016. Capturado em 8 fev,2017.
*Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental. Foi economista com mais de duas décadas de experiência nos mercados futuros e de capitais. É fundadora do Movimento Mulheres pela P@Z! e editora da Aliança RECOs - Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras. É autora do e-book "Commodities Ambientais em Missão de Paz: Novo Modelo Econômico para a América Latina e o Caribe".+