quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

O que são Commodities Ambientais?

Por Amyra El Khalili

As commodities ambientais são mercadorias originárias de recursos naturais, produzidas em condições sustentáveis, e constituem os insumos vitais para a indústria e a agricultura. Estes recursos naturais se dividem em sete matrizes: 1. água; 2. energia, 3. biodiversidade; 4. floresta (madeira); 5. minério; 6. reciclagem; 7. redução de emissões poluentes (no solo, na água e no ar).
As commodities ambientais obedecem a critérios de extração, produtividade, padronização, classificação, comercialização e investimentos e dá um tratamento diferente aos produtos que no jargão do mercado financeiro são chamados de commodities (mercadorias padronizadas para compra e venda). Não são mercadorias que se encontram na prateleira dos supermercados, na lista de negócios agropecuários (soja, milho, café, boi, cana, açúcar, pinus etc.), nem entre os bens de consumo em geral industrializados, mas estão sempre conjugadas a serviços socioambientais – ecoturismo, turismo integrado, cultura e saberes, educação, informação, comunicação, saúde, ciência, pesquisa e história, entre outros.

O modelo das commodities ambientais

Para melhor compreensão, as commodities tradicionais (ou convencionais) são mercadorias padronizadas para compra e venda. Tudo o que está na prateleira do supermercado está padronizado. Por exemplo, encontram-se, dentre os critérios de comoditização convencional, garrafas de água mineral, todas iguais e com a mesma quantidade, mesmo critério de engarrafamento, mesmo tratamento fitossanitário. O consumidor que compra um produto industrializado exige certificado de qualidade, selos que comprovem a fiscalização sanitária e, nos dias de hoje, questiona se se tratam de alimentos convencionais, transgênicos ou orgânicos.

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Para ser uma commodity, o produto passa por uma série de exigências de comercialização, tributação, transporte, entre outros, além de enfrentar negociações com os agentes internacionais na sua colocação no mercado externo. A commodity disputa espaço enfrentando embargos, barreiras tarifárias e não-tarifárias, como se pôde verificar no caso da carne brasileira, embargada por um curto período em decorrência de suspeitas infundadas de contaminação pelo vírus da vaca-louca.
Pelo mesmo crivo passam as commodities ambientais. Assim, comoditizar (padronizar) não é algo tão simples como retirar orquídeas, bromélias, xaxins, entre outras espécies da mata Atlântica e vender em mercados e estradas, tal qual muitos fazem, sem qualquer sustentabilidade.
Justamente por obedecerem a critérios de padronização, as commodities poderiam ser chamadas de moeda, pois rapidamente se transformam em dinheiro em qualquer parte do mundo. Como diriam os economistas, as commodities têm liquidez, pois há vendedores dispostos a oferecer as produções (orquídeas, cacau, maracujá, caju, xaxim, caixeta, goiaba, mate etc.) em condições sustentáveis e compradores dispostos a pagar por esses produtos (agroecológicos, orgânicos, permacultura, biodinâmica), mesmo que por um preço mais alto do que pagariam por aqueles retirados das florestas e/ou produzidos no campo sem sustentabilidade.
No centro do tripé socioeconômico das commodities ambientais há o ‘cidadão’ (legítimo representante do Mercado e do Estado), que unifica o sistema financeiro e o meio ambiente.
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Não são, assim, mercadorias que se encontram na prateleira dos supermercados, na lista de negócios agropecuários, nem, em geral, entre os bens de consumo industrializados.
Diferentemente das commodities tradicionais, as commodities ambientais obedecem a um modelo em cujo topo se encontram os ‘excluídos’ (aqueles que não têm emprego e renda, por exemplo); à direita está o mercado financeiro e, à sua esquerda, o meio ambiente. A diferença está na base monetária deste novo modelo que está sendo construído no Brasil.

Políticas públicas e o aspecto socioeconômico

O mercado de commodities ambientais traz conceitos e práticas inovadores, que oferecem alternativas viáveis para contrapor-se ao modelo das commodities convencionais, buscando neutralizar os vícios concentradores e predatórios trazidos pelo sistema, pelos quais as grandes corporações e poucos países desenvolvidos, detentores exclusivos de capital e tecnologia de ponta, usufruem de inúmeras vantagens (que vão da economia de escala, com amplitude global, à internalização dos lucros), aliadas à socialização dos prejuízos, agravada pelo fato de que este modelo acentua a exclusão. Neste modelo, o socioambiental, busca-se a inserção dos excluídos na economia, em condições de igualdade com os trabalhadores.
Os projetos, por esta metodologia, potencializam o mercado de trabalho com a formação de equipes multidisciplinares pelo aumento da procura por profissionais especializados com a visão holística de um novo modelo econômico de inclusão das variáveis social e ambiental. Prevê comprometimento com promoção do desenvolvimento sustentável. Conscientiza sobre a importância da preservação de valores históricos, artísticos, culturais, paisagísticos, antropológicos, socioambientais. Promove a inclusão social com a mudança de paradigmas (inserção dos excluídos, aposentados e minorias em geral numa sociedade digna, ética e participativa). Nesta perspectiva, propõe-se transformar estruturas, analisados os efeitos micro e macroeconômicos.

Efeitos microeconômicos

Propõe-se:
a) viabilizar a geração de ocupação e renda com inclusão social; b) fomentar a geração de novos mercados, produtos e serviços; c) criar novos hábitos de consumo, potencializando-os; d) provocar o desenvolvimento da atividade local com redução da economia informal; e) educar para a conscientização ambiental; f) aumentar a base da integração social com cidadania e qualificação; g) buscar a melhoria da qualidade de vida; h) vislumbrar melhores perspectivas para gerações futuras; i) criar e fortalecer organizações do terceiro setor; j) incentivar a formação de parcerias para micro-organizações autossustentáveis.

Efeitos macroeconômicos:

Propõe-se:
a) criar riquezas com aumento do PIB; b) aumentar a arrecadação fiscal; c) aumentar a mobilidade social; d) melhorar a distribuição de renda; e) incluir o legislativo como regulador, evitando gastos desnecessários; f) melhorar a saúde pública; g) reduzir a violência; f) reduzir os gastos (custo ambiental e social) com políticas públicas compensatórias; h) reorientar a política fiscal, com incentivo e proteção ao meio ambiente; i) reorientar os investimentos públicos com priorização para saúde; j) promover a educação e preservação ambiental; l) reduzir a carga tributária do país; promover a passagem de um país puramente extrativista para um país conservacionista e preservacionista.
Finalmente, commodities ambientais é muito mais do que um modelo alternativo para o desenvolvimento sustentável. É o resgate de princípios e valores universais, em que se busca a inclusão social sem o assistencialismo e a dependência sobejamente conhecidos no modelo tradicional.

Construção participativa do modelo

O desenvolvimento desse novo modelo econômico requer a conscientização de todos os segmentos da sociedade civil organizada e a sensibilização de empresários, sistema financeiro, empreendedores, políticos egovernos sobre a importância de se criarem condições para uma economia justa, socialmente digna, politicamente participativa e integrada.
Assim, é o que produz agricultura sustentável, de preservação e conservação florestal, de proteção a mananciais, que casa a produção agrícola com a utilização de parte das terras para plantio e pecuária e outra parte para reflorestamento, pesquisa de plantas ornamentais e medicinais, piscicultura, apicultura, criação de animais e aves exóticas e em extinção; é o que explora conscientemente o turismo rural/ecológico, com planejamentos de educação e treinamentos agroambientais para o agricultor/campesino, seus filhos e comunidades nos mais diversos níveis, desde a infância até o idoso, estimulando-os e abstraindo-lhes a total produtividade e experiência. Enfim, valorizando a natureza e o ser humano.
Isto se dará por meio de discussões que envolvam princípios filosóficos do desenvolvimento sustentável e debates sobre as interações entre meio ambiente, direitos humanos e mercado financeiro.
Não poderia ser diferente, uma vez que seria praticamente impossível criar mecanismos para gerar emprego, ocupação, trabalho e renda combatendo a degradação ambiental, a exclusão e as desigualdades sociais, financiados pela democratização do capital, sem o envolvimento e o comprometimento daquele que será seu proprietário e maior beneficiário: o povo brasileiro!

Nota:
*Matrizes ambientais: nunca dissemos que matrizes ambientais são mercadorias e tampouco propusemos instrumentos econômicos para mercantilizá-las e financeirizá-las, mesmo que o entendimento do senso comum procure resumir a expressão “commodities ambientais” ao conjunto de mercadorias e suas matrizes, já que uma (a commodity) não existirá sem preservar a conservar a outra (matriz). Pelo contrário, a defesa das commodities ambientais  e suas matrizes, consiste justamente no direito de uso dos bens comuns pelas presentes e futuras gerações e no princípio da “dignidade da pessoa humana”.
Referência:

El Khalili, Amyra. Commodities ambientais em missão de paz – novo modelo econômico para a América Latina e o Caribe / Amyra El Khalili.  – Bragança Paulista, SP : Heresis, 2017. 336 p.

*Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental. É fundadora do Movimento Mulheres pela P@Z! e editora da Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras. É autora do e-book “Commodities Ambientais em Missão de Paz: Novo Modelo Econômico para a América Latina e o Caribe”.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Brasil, o país que mais mata pessoas trans no mundo

Na segunda-feira (29) é celebrado o “Dia Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais”, data para fortalecer as lutas, conquistas e desafios da população trans e travesti em todo o mundo.  O dia é celebrado desde 2004, à época o Ministério da Saúde e entidades da sociedade civil lançaram a campanha “Travesti e Respeito”, em reconhecimento à dignidade dessa população.
Apesar de diversas conquistas, a violência contra essa população ainda é muito grande.  A cada 48 horas uma pessoa trans é assassinada no Brasil. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) vem contabilizando os tristes números  de assassinatos de travestis e transexuais no Brasil. O mapa da violência aponta que em 2017 foram 179 assassinatos, sendo  169 contra travestis e 10 contra homens transexuais.  Destes crimes,  85%  são praticados com requintes de crueldade. Outra constatação é de que 60% das vítimas tinham entre 16 e 29 anos,  sendo  adolescentes e jovens.  A expectativa de vida de uma pessoas trans no Brasil é de, aproximadamente, 35 anos.
O estado de Minas Gerais é onde se registra o maior número de assassinatos da população trans, com 20 assassinatos. Em seguida vem a Bahia com 17; São Paulo e Ceará com 16 assassinatos;  Rio de Janeiro e Pernambuco com 14; Paraná com 8, Alagoas, Espírito Santo e Palmas com 7; Mato Grosso 6; Amazonas, Goiás, Rio Grande do Sul e Santa Catarina  com 5; Tocantins com 3. O Distrito Federal, Maranhão, Mato Grosso do Sul e Sergipe somam duas mortes cada. Acre, Amapá, Piauí, Rio Grande do Norte e Roraima registraram uma em cada. As informações estão no Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil em 2017, lançado nesta quinta-feira (25), pela Antra, em Brasília. Para a secretária de Articulação Política da Antra e autora do estudo, Bruna Benevides, o Brasil é o pais que mais mata travesti no mundo. Ela ressalta que todos os dados são coletados de forma voluntária por ativistas LGBTs ligados à ANTRA e  à Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT). Bruna relata que fazer o mapeamento não é tarefa fácil “Durmo pensando nas vítimas, imaginando o próximo nome, ou qual o estado fará a próxima vítima”, destaca.
Deborah Sabará,  secretária nacional de Direitos Humanos  da ABGLT, diz que a violência contra as pessoas trans acontece desde muito cedo, geralmente, por familiares, na escola e outros ambientes sociais que impõem  padrões culturais relacionados à masculinidade e feminilidade. “Quando uma criança ou adolescente sai deste padrão, ela começa a apanhar,  sofrendo  agressões físicas e morais.  Quando iniciam a transição, as travestis, em sua maioria, são expulsas de casa e vão viver na rua,  em sua maioria, como trabalhadora do sexo”, explica Deborah.
Ela destaca que, é perceptível, nas grande cidades, um alto índice de pessoas da população travesti e trans em situação de rua, e essa vulnerabilidade leva, muitas vezes, essa população ao sistema prisional. Os  serviços públicos  não estão preparados, a inserção no mercado de trabalho se torna impossível depois que assumem sua identidade de gênero. Uma realidade de negação de direitos.
“É preciso, antes de criticar e segregar,  entender,  incluir e sensibilizar  a população. Principalmente, o  poder público para a adoção de medidas urgentes, visando  minimizar  a transfobia e  dando  um tratamento digno às irmãs travestis e transexuais”, lembra.

Colaboração: Antra e ABGLT

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Lei de pagamentos por serviços ambientais do Acre beneficia mercado financeiro

Por Amyra El Khalili e Arthur Soffiati

A Lei nº 2.308, de 22 de outubro de 2010, do Estado do Acre, que cria o Sistema Estadual de Incentivos a Serviços Ambientais (SISA), o Programa de Incentivos por Serviços Ambientais (ISA), Carbono e demais Programas de Serviços Ambientais e Produtos Ecossistêmicos parece já manifestação da economia verde, antes que este conceito fosse badalado na Rio+20. Se o trabalho dos polinizadores pode ser valorado e precificado, quem receberá o dinheiro por eles, já que a natureza trabalha sem ter noção do que é trabalho e do que é remuneração? Alguém pode receber por eles. Quem será? Isto facilita muito a entrada de grandes empresários e grupos para receber por aquilo que a natureza faz de graça, queiramos ou não queiramos. O urubu trabalha diariamente durante o dia, seja sábado, domingo ou feriado. Ele age assim porque é da sua natureza, não porque precisa de dinheiro. Contudo, alguém pode querer receber por este serviço gratuito, valorando-o e precificando-o.

A formação de preços (precificação) nos mercados de capitais, especificamente nos mercados bursáteis (bolsas de valores e de mercadorias), é determinado por três fatores: a análise fundamentalista, que é o estudo da conjuntura econômica; a análise matemática, que compreende os cálculos de taxas de juros, prazos e custos; e a análise gráfica, que registra as oscilações de oferta e demanda do objeto (ativo ou commodity). Portanto, a complexidade para a formação de preços exige profundo conhecimento do objeto.

Na escola neoliberal, para encurtar o caminho para a precificação, criaram-se os “índices” produzidos por universidades de grife e institutos de pesquisa, pagando régias mesadas a essas instituições para, com estes indicadores, viabilizar as decisões dos players (comprar e vender) e, assim, girar cada vez mais e mais rapidamente contratos nos mercados de futuros.

A indústria de futuros, chamada de derivativos (derivado de ativos), tornou-se muito lucrativa no curto prazo, principalmente para corretoras e bancos, uma vez que os agentes intermediários ganham no volume negociado a despeito do resultado, ou seja, ganham corretagem quando o cliente está ganhando e também quando o cliente está perdendo.

Com o tempo, já não interessava mais ganhar “corretagem” sobre operações de compra e venda para cada contrato negociado. O apetite pela especulação e a ganância sobre as vantagens de comprar e vender rápido, muitas vezes em segundos, criou oportunidades para que os agentes intermediários (brokers e traders) ganhassem também no jogo financeiro. Entenda-se: jogando com o trabalho produtivo e o dinheiro dos outros. Jamais com seu próprio dinheiro.

A indústria financeira especulou com o aumento desproporcional (virtual) da produção de bens e serviços e avançou com a desregulamentação, dando chances para se realizar lucros ou prejuízos sem que o próprio sistema de garantias pudesse suportar as liquidações com a concentração de poder nas mãos de apenas meia dúzia de bancos também avalistas de garantias para os negócios que os mesmos bancos ofertavam para seus clientes.

Em dezembro de 2007, o Banco de Compensação Internacional (conhecido pela sigla BIS, em inglês) estimou em US$681 trilhões os negócios com derivativos - dez vezes mais o PIB de todos os países do mundo combinados. É a raposa tomando conta do galinheiro.

Se os autores da Lei SISA do Acre conhecem o funcionamento do mercado financeiro, não sabemos. O que sabemos é que o aparato conceitual utilizado por eles é antigo e pode nos levar a conclusões equivocadas. E exatamente eles, que sugerem ocupar postura pioneira. Usar o conceito de preservação de modo generalizado faz tábula rasa da natureza não humana. Parece irrelevante nossa observação. No entanto, se os autores recorrerem ao artigo “Duas filosofias de proteção à natureza”, de Catherine Larrière, incluído no livro Filosofia e natureza: debates, embates e conexões, organizado por Antônio Carlos dos Santos (Aracaju: Ed. Universidade Federal de Sergipe, 2008), verificarão que os conceitos de conservação e de preservação são antigos e de fundamental importância para compreender as relações entre sociedades humanas (antropossociedades) e natureza não humana.

Preservação significa manter íntegra a natureza não humana. Conservação indica o uso da natureza não humana respeitando seus limites. Em que sentido eles usam o conceito de preservação? Pelo visto, empregam-no como sinônimo de proteção, conceito que envolve preservação e conservação. Sugerimos sempre a nossos alunos e colegas: na dúvida, usar o conceito de proteção.

Entre os defensores da natureza não humana mais simplórios e dos críticos do movimento ecologista e ambientalista, os conceitos de conservação e de preservação são entendidos como opostos e excludentes. Trata-se de uma falsa questão, pois preservação e conservação se complementam. Não se pode ser preservacionista numa cidade, tampouco conservacionista numa reserva biológica.

Eles também atribuem à Cúpula dos Povos, movimento paralelo à Rio+20, o uso inadequado da artilharia ideológica, chamando a atenção para a sua ideologia desinformada. Aqui, eles entram num terreno minado e muito perigoso, pois, por uma vertente de pensamento (Mannheim e Althusser, por exemplo), todo ser humano pensa de forma ideológica, enquanto que o marxismo clássico entende como ideologia o pensamento conservador. Daí dizer-se que a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. A qual dos dois sentidos de ideologia se referem? Do jeito que a expressão é usada, parece que eles estão fora das ideologias, enquanto que a Cúpula dos Povos é prisioneira de uma.

Os autores da Lei sustentam que o SISA busca a “compatibilização do desenvolvimento econômico e social com as melhores práticas de preservação ambiental”. Já examinamos o conceito de preservação.  Compatibilização é uma postura que, segundo os ecologistas de boa estirpe, tenta conciliar desenvolvimento predatório, ou seja, crescimento econômico convencional com a proteção do ambiente. Historicamente, desde a década de 1970, os pensadores mais lúcidos sabem que tal conciliação é possível provisoriamente. Quando a corda a unir proteção do ambiente e desenvolvimento se rompe, o beneficiado é sempre o desenvolvimento. Mas existem concepções distintas de desenvolvimento. A qual delas seus autores se referem? A resposta a esta pergunta vem logo em todo o texto da Lei: desenvolvimento sustentável.

O conceito de desenvolvimento sustentável se afirmou nos anos 1980, principalmente com o livro Nosso futuro comum, oriundo da Comissão Brundtland. Progressivamente, ele substituiu o conceito de ecodesenvolvimento, bem mais claro, e tornou-se  central na Conferência Rio 92. Com o tempo, seu uso foi tão generalizado que perdeu o sentido. Hoje, fala-se de juros sustentáveis, lucro sustentável, renda sustentável, crescimento sustentável, práticas sustentáveis e até corpo sustentável sem o mínimo rigor conceitual. E seus autores rebatendo opiniões críticas à Lei SISA fazem o mesmo. As consequências de tal uso é o emprego de crescimento de renda e de PIB. Ora, a produção de armas de guerra e os serviços ligados a ela geram renda e contribuem para o aumento do PIB. Onde o pioneirismo destes autores em uso tão acrítico?

Falar em meio ambiente é redundância. Meio significa ambiente e ambiente significa meio. Ou falamos em meio ou em ambiente. Da mesma forma, discutir créditos de carbono é voltar ao passado ou não sair dele. O mercado de carbono não ataca a crise ambiental antrópica de frente, mas procura transformá-la em fonte de lucros. Mas o passado está também embutido no presente, assim como no futuro. Basta examinar o conceito de economia verde, tão propalado antes, durante de depois da Rio+20. Qual o seu conteúdo? Não se sabe ao certo. Só se sabe que ele já está sendo usado para que negociantes ganhem dinheiro com a natureza. Basta ver o livro A economia verde: descubra as oportunidades e os desafios de uma nova era dos negócios, de Joel Makower (São Paulo: Gente, 2009). O conceito de economia verde abre caminho para a valoração do ar e da fotossíntese, por exemplo. Produtor e produto, prestador e serviço são colocados no mesmo saco.

Parece que caminhamos para uma nova escravidão, esta bem mais sutil. No sistema escravista, o escravo e os bens e serviços por ele gerados podiam ser valorados. Um escravo, mesmo de braços cruzados, tinha preço. Podia ser comprado e vendido, independentemente dos bens e serviços que produzisse. A nova escravidão se assemelha mais com o que o filósofo francês Étienne de La Boétie chamava de servidão voluntária. As plantas realizam a fotossíntese voluntariamente para existirem, não porque as obrigamos. Mas alguém pode se arvorar em cobrar por ela ou ganhar alguma concessão governamental para explorá-la. Paremos por aqui, pois a lista de explorações indevidas é longa.

Portanto a Lei SISA abre um precedente perigoso para a raposa tomar conta, recebendo muita grana para cuidar do galinheiro, pois permite a captação dos recursos e a administração pelo sistema financeiro através do mercado de carbono. Está na mídia sendo apregoada como modelo de lei para o mundo. Enquanto o mercado de carbono vinagra na Europa contaminada pela crise financeira de 2008, aqui, nestas paragens, prega-se o mercado de carbono como a salvação da lavoura.

Causa estranheza que os idealizadores Lei de Pagamento por Serviços Ambientais do Acre desconheçam os impactos da precificação de produtos agropecuários nos mercados de commodities internacionais, como o caso do cacau, açúcar, café, soja, milho e boi, entre outros. Fica a impressão de que não foram estudadas as regras básicas de precificação, constituídas das análises fundamentalistas (conjuntura econômica), matemática (juros, prazos e custos) e da análise gráfica (oferta e demanda).

Não se faz mercado artificialmente com leis e marketing ambiental. As experiências que tivemos nos mercados de commodities e derivativos nos ensinaram que a participação do Estado diretamente na regulação para fomentar a comercialização criou distorções e estimulou a especulação.

Quando o Banco Central regulava o câmbio no mercado de ouro, havia liquidez porque a autoridade monetária alimentava o mercado comprando e vendendo ouro. Quando o Banco Central saiu do ouro, o mercado de ouro evaporou. Não existia o mercado de câmbio futuro porque simplesmente não havia vendedores futuros de câmbio. Quando o banco estabeleceu o controle da moeda pela banda cambial, o mercado futuro de câmbio na antiga BM&F emergiu do zero e hoje é o mercado que sustenta, juntamente com o de taxa de juros, o impressionante movimento financeiro da BovespaBM&F.

Que o Estado faça seu papel de agente regulador e fiscalizador do sistema financeiro, que seja agente de fomento, mas que não se meta a fazer “mercado”. Se o Estado não consegue sequer fiscalizar a degradação e a devastação ambiental, como pode o mesmo Estado virar agente financeiro ou, na melhor das intenções, repassar para terceiros (a raposa) essa função?

Perguntem à BovespaBM&F: por que os mercados de commodities agropecuárias não avançam? Ou: por que os produtores rurais deste continente não operam na Bolsa de Futuros para se protegerem contra oscilações bruscas de preços das commodities agropecuárias? Perguntem aos players: por que o preço de soja nacional é definido pela Bolsa de Chicago e não por um preço formado com custo Brasil?

Façam mais perguntas antes de fazer leis para dar “valor” e/ou “valorar” os bens ambientais. Perguntem aos árabes e africanos: por que a água (bem escasso no Oriente Médio e África) nunca foi cotada em Bolsas de Valores? Ou: por que os árabes e nordestinos não inventaram, ainda, o mercado futuro de água?

Também perguntem aos membros da Aliança RECOs (Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras), que constroem um novo modelo econômico para América Latina e o Caribe, cujos relatórios e consultas públicas são assinados por mais de 5000 profissionais multidisciplinares e centenas de comunidades e instituições ao longo de duas décadas: por que não propusemos (ou melhor, pensamos) nessa Lei SISA antes?

Talvez porque não sejamos tão inteligentes quanto os idealizadores da Lei SISA a ponto de mobilizar o urubu.

O urubu mobilizado
de João Cabral de Melo Neto:

Durante as secas do sertão, o urubu
de urubu livre, passa a funcionário.
Ele nunca retira, pois prevendo cedo
que lhe mobilizarão a técnica e o tacto,
cala os serviços prestados e diplomas,
que o enquadrariam num melhor salário,
e vai acolitar os empreiteiros da seca,
veterano, mas ainda com zelos de novato:
aviando com eutanásia o morto incerto,
ele, que no civil que o morto claro.
Embora mobilizado, nesse urubu em ação
reponta logo o perfeito profissional.
No ar compenetrado, curvo e secretário,
no todo de guarda-chuva, na unção clerical,
Com que age, embora em posto subalterno:
ele, um convicto profissional liberal.

Referências:

EL KHALILI, Amyra; SOFFIATI, Arthur. Lei de pagamentos por serviços ambientais do Acre beneficia mercado financeiro. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 12, n. 68, p.9-12, mar./abr. 2013.

EL KHALILI, Amyra. As commodities ambientais e a métrica do carbono. Fórum de Direito Urbano e Ambiental – FDUA, Belo Horizonte, ano 16, n. 93, p.26-31, maio./jun. 2017.
Amyra El Khalili é professora de economia socioambiental e editora das redes Movimento Mulheres pela P@Z! e Aliança RECOs – Redes de Cooperação Comunitária Sem Fronteiras.

Arthur Soffiati é Doutor em História Social com concentração em História Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor aposentado da Universidade Federal Fluminense, integra o Núcleo de Estudos Socioambientais da mesma universidade. Publicou dez livros, além de vários capítulos de livros, de artigos em revistas especializadas e de artigos jornalísticos semanais.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

CNDH manifesta preocupação quanto a aumento da violência em conflitos no campo

O crescimento da violência que vitima povos, comunidades e trabalhadores e trabalhadoras do campo também foi visto com preocupação pelo Plenário do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), reunido em Brasília nos dias 31 de janeiro e 1° de fevereiro em Brasília,  em sua 34ª Reunião Ordinária.
Em nota aprovada pelo Plenário nesta quarta-feira (31 de janeiro), o colegiado alerta sobre o crescimento da violência contra defensores e defensoras de direitos humanos, especialmente vinculada a conflitos fundiários; contra povos indígenas, e para a quantidade de chacinas ocorridas em 2017. “As execuções em Colniza/MT (nove trabalhadores), Pau D’arco/PA (nove trabalhadores e uma trabalhadora) e Vilhena/RO (três trabalhadores), demonstram um ataque indiscriminado à luta pelos direitos humanos, especialmente vinculados às questões agrárias no Brasil”, diz a nota.
“O ano de 2018 começa com o assassinato de dois defensores de direitos humanos (execuções ocorridas em Anapu/PA e Iramaia/BA), o assassinato de dois professores indígenas (mortos a pauladas, em Penha/SC, e por apedrejamento, em Confresa/MT) além de um atentado por arma de fogo contra um indígena Munduruku em Itaituba/PA. São casos que apontam para um quadro gravíssimo de violência que requer urgente e necessária proteção e garantia dos direitos humanos”, destaca o documento do CNDH.
O colegiado também destaca que, “paralelo a este crescimento nos dados sobre a violência no campo, o Estado brasileiro tem tomado medidas que, na contramão dos direitos humanos, podem agravar um quadro que já é extremamente grave”, citando a Medida Provisória 759/2016 (altera a política de reforma agrária), a redução orçamentária para políticas públicas voltadas para a agricultura familiar, a paralisação das demarcações dos territórios indígenas e quilombolas, dentre outras questões.
Assessoria de Comunicação do CNDH
+55 61 2027-3348 / cndh@mdh.gov.br

Morto a pedradas

A notícia no site do Cimi passou quase em branco. No dia 29 de janeiro, o professor Daniel Kabixana, da etnia Tapirapé, foi encontrado morto a pedradas no município de Confresa, no Mato Grosso. Foi o segundo professor indígena assassinado este ano – no dia 1o de janeiro Xokleng Marcondes Namblá, da TI Naklãnõ, no Vale do Itajaí, foi morto a pauladas na praia da Penha, no litoral de Santa Catarina. 

Aparentemente são crimes diferentes. Dois dos três homens que atacaram o professor Daniel disseram à polícia que queriam roubar 20 reais da vítima que encontraram em um bar. Em relação ao outro professor, há imagens do agressor – que aparentemente espancou o indígena até a morte sem motivo – gravadas por câmeras do comércio, mas a polícia ainda não identificou o culpado. 

Os missionários do Cimi, porém, que vivem nas regiões onde a violência eclode, veem mais que coincidência entre os episódios. As áreas onde vivem as vítimas são valorizadas – uma pela soja outra pelo turismo – e as invasões são constantes. Eunice Dias de Paula, que vive junto aos Tapirapé, por exemplo, conta que, a partir de 2016, quando a área se tornou ponto de escoamento da soja para o porto de Itaqui (Maranhão) houve uma explosão de prostituição, drogas e violência em Confresa. “Dormem na cidade de 80 a 100 carretas, esperando vaga para o descarregamento no porto”, explica a missionária.  

Ela também fala do racismo na região, alimentado pela mentira de que os índios receberiam dinheiro do governo sem trabalhar (o que é mentira) e que ocupam terras que trariam mais riqueza à população se destinadas ao agronegócio (outra mentira).

O silêncio sobre o racismo já trouxe sofrimento demais ao brasileiros. Como se diz, a luz do sol é o melhor desinfetante. Vamos encarar que somos um país violento e racista e nos educar.

Aprender com os indígenas, ouvir suas vozes e ideias. E desmascarar as mentiras que semeiam o ódio. Afinal, sabemos todos que não será nas aldeias que encontraremos os privilegiados e os parasitas desse país. Mais fácil procurar na cúpula do Judiciário.
Marina Amaral, co-diretora da Agência Pública