quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Dourados: em Nhu Verá, indígenas Kaiowá enfrentam novo despejo

Ruy Sposati,
de Campo Grande (MS)

 As 79 famílias da comunidade Kaiowá de Nhu Verá, no município de Dourados, tem até meados de novembro para saírem de seu tekoha - o território sagrado. Uma decisão da Justiça Federal em Dourados autoriza a desocupação e reintegração de posse de 26 hectares de terra ocupados pelos indígenas. Foi autorizado o uso de força policial, caso os indígenas resolvam permanecer no território.

Segundo a decisão, os Kaiowá deverão desocupar a área no prazo de trinta dias, a partir da data da intimação dos indígenas, e receberão multa diária no valor de 100 reais no caso de nova ocupação.

Grudados à Reserva Indígena de Dourados, ladeados por plantações de soja e eucalipto e cortados por uma estrada, os Kaiowá tiveram suas terras arrendadas e griladas ao longo do século vinte, conforme relatam. Em maio de 2011, retomaram 26 hectares de seu território tradicional.

"Quando a gente retomou, o fazendeiro chegou e perguntou: o que aconteceu aqui? Algum acidente? Aí explicamos que ali era nosso, que eles já tinham usado muito a terra. Era a retomada", relata a liderança indígena de Nhu Verá, Shatalim Graito.

"Ele ficou me procurando, queria negociar. Eu não negociei. Dinheiro acaba. Eu quero terra pra minha comunidade. A terra não é do fazendeiro, é nossa", expõe. "É nossa, do tempo do meu avó, do meu bisavô. Meus parentes moraram aqui e morreram aqui. Por isso fizemos isso, voltamos pra cá, e vamos ficar aqui", explica.

Sobre a área indígena destes Kaiowá incide a Fazenda Curral de Arame. Seus proprietários, Achilles e Lenita Decian, ajuizaram ação possessória na Justiça Federal. No dia 16 de outubro, o juíz José Luiz Paludetto deferiu o pedido de liminar dos dois fazendeiros e expediu mandado de desocupação e reintegração de posse da área.

FORÇA POLICIAL

Houve audiência de tentativa de conciliação, "a qual restou infrutífera", segundo afirma o despacho.

No caso do descumprimento da desocupação, o mandado deverá ser cumprido "moderadamente, com as cautelas que o caso exige", indica o documento. Mas completa: "em caso de resistência, fica autorizado desde já o uso de força policial".

Para Shatalim, o arrendamento das terras em acordos mal explicados e a sequente grilagem das terras foram responsáveis pela perda do terrítorio original. "Começou assim, no tempo em que alguém alugou para fazendeiro que morava aqui perto. Alugou pra dar de comer. Só que aí depois eles fecharam, fizeram cerca. Deu uma vaca, um porco, e depois disso fizeram documento. Pessoal antigo, que não tem estudo, fez isso assim. Foi enganado. Fazendeiro tirou esse nosso pedaço, essa nossa parte da terra", aponta.

FUNAI

O juíz refuta a alegação dos indígenas de se tratar de terras tradicionais porque, "a despeito do argumento, não trouxeram [os indígenas] nenhum documento que comprovasse" que Nhu Verá é território tradicionalmente ocupado pelos índios. Como a área não foi reconhecida como indígena pela União, a Justiça não teria elementos para assim o fazê-lo.

Toda a decisão do juíz é baseada no trabalho inconcluso do órgão governamental. "Enquanto não iniciado e concluído o trabalho de identificação e demarcação, as terras (...) não podem ser classificadas como (...) indígenas".

Segundo a decisão, a Funai afirmou que "seria constituído Grupo Técnico ainda este ano para o estudo de identificação das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, mas ainda não há nos autos qualquer notícia concreta quanto a este fato".

CONFINAMENTO

No tekoha Nhu Verá, as famílias plantam mandioca, abacaxi, banana, milho, manga, pokã. "Sem veneno. Tudo bonito. Gosto de deixar herança. Todo ano dá muita pokã. A gente não dá nem conta de comer", diz Shatalim. "Nós precisamos de espaço. Hoje já não é assim e por isso os índios brigam demais", referindo-se à vida de confinamento nas reservas indígenas.

"Índio gosta o mato. Quando eu tenho que ir na cidade resolver alguma coisa, eu chego lá, me incomodo. Fico dez minutos e quero ir embora. Eu gosto é do mato. Fico o maior alegre quando tô no mato. Eu chamo tudo bicharada. Por isso quero ficar aqui", aponta.

A COBRA

Shatalim e os Kaiowá tem certeza de que ficarão na terra, e conta a história da cobra para nos explicar o porquê. "Depois da retomada, uma cobra chegou na minha barraca. Uma jaracara amarela, grossa. De noitezinha. Eu tomando chimarrão e ela apareceu no fundo. Apontei o fogo e vi que era muito grande". Shatalim conta que matou a cobra a pancadas - e que isto significou não só eliminar a ameaça do animal peçonhento, mas também a vitória na reconquista da terra. "O sinal era muito brabo, muito feio. Depois, eu nunca mais vi cobra aqui depois, nem minhoca. A cobra representa que eu venci ele. Porque eu peguei ele. Se ela [a cobra] me pagasse, ele [o fazendeiro] ia me vencer. Se ela pegasse no meu pé, na minha mão, ele ia me vencer. Aí eu já ia saber que o fazendeiro ia me vencer. Mas como eu bati, eu matei eu venci dele". E termina: "aqui eles não entram. Minha reza é forte. Aqui quem manda é o maracá".

Porantim, Cimi DF

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Relatório americano diz que Puccinelli, governador do Estado, ‘zomba’ da devolução de terras indígenas em MS

Republica, EC

Documentos vazados pelo WikiLeaks mostram que autoridades do Mato Grosso do Sul desdenharam da demanda dos indígenas; para EUA, situação é um “desastre”

O drama dos Guarani-Kaiowá, de Mato Grosso do Sul, chamou a atenção das redes sociais nas últimas semanas, mas não tem comovido as autoridades do estado, conforme demonstram documentos divulgados pelo Wikileaks.

Um comunicado diplomático de março de 2009 relata uma visita do então cônsul norte-americano no Brasil, Thomas White, ao estado. Sua comitiva manteve conversas com o governador André Puccinelli (PMDB) e outras figuras de peso, como o então presidente do Tribunal de Justiça do estado, Elpídio Helvécio Chaves Martins.

O telegrama, de 21 de maio de 2009 e endereçado ao Departamento de Estado dos Estados Unidos pelo Consulado de São Paulo, relata a visita do cônsul-geral e sua equipe ao Mato Grosso do Sul. Segundo o documento, durante os quatro dias de visita, houve reuniões com membros do governo federal e estadual, do setor privado e também com lideranças indígenas.

O telegrama revela que a ideia de que os Guarani-Kaiowá poderão ter mais terras demarcadas é vista com desdém pelas autoridades locais.

“O governador Puccinelli zombou da ideia de que a terra, num estado como o Mato Grosso do Sul, cuja principal atividade econômica é a agricultura, poderia seja retirada das mãos dos produtores que cultivam a terra há décadas para devolvê-la aos grupos indígenas”, lê-se.

Além de Puccinelli, entre os entrevistados estavam o então presidente do TJ-MS, Elpidio Helvecio Chaves Martins e o presidente da Federação das Indústrias de Mato Grosso do Sul, Sergio Marcolino Longen. Do outro lado da disputa, além de lideranças indígenas (os guarani Otoniel Ricardo, Teodora de Souza, Edil Benites e Norvaldo Mendes) foram ouvidos representantes de grupos que fazem a defesa dos direitos indígenas, como o procurador Federal Marco Antonio Delfino e o advogado do Conselho Indigenista Missionário Rogerio Battaglia, entre outros.

O desembargador Chaves Martins, por sua vez, ponderou, na conversa com a delegação norte-americana, que a demarcação de novas terras para os indígenas poderia ter efeitos negativos – ao contrário do que reivindica o movimento indígena.

“Chaves advertiu que as tendências ao separatismo nas comunidades indígenas – concentrando os índios em reservas expandidas – só iriam agravar os seus problemas. Dourados tem uma reserva vizinha, que Chaves previu que se tornará a ‘primeira favela indígena do Brasil’ se persistir a tendência a isolar e dar tratamento separado aos povos indígenas”, relata o cônsul.

Segundo defensores dos direitos indígenas, a reserva de Dourados tem péssimas condições de vida em função da sobrepopulação ocasionada pela falta de terras: são 11,3 mil pessoas vivendo em 3,5 mil hectares.

O então presidente do Tribunal de Justiça também reclamou de “calúnias” que as autoridades locais sofrem dos ativistas, sendo acusadas de “tortura e racismo”, quando estão simplesmente “tentando cumprir a lei”.

Segundo recentes relatórios do Conselho Indigenista Missionário, há mais assassinatos entre indígenas no Mato Grosso do Sul, e particularmente entre os Guarani-Kaiowá, do que em todo o resto do Brasil: entre 2003 e 2011, foram 279 em MS, e 224 no restante do Brasil. O estado também se destaca pelo número de suicídios entre indígenas e outras mazelas, como desnutrição infantil.

Índios deviam “aprender a trabalhar”

De modo geral, avalia o comunicado diplomático, as autoridades locais acreditam que as demandas indígenas pelas demarcações e o retorno ao estilo de vida tradicional “não têm base”.

“Autoridades municipais e estaduais perguntaram como os índios dali reivindicavam ser índios, se eles ‘usam carros, tênis, drogas’. Eles reclamaram dos subsídios públicos dados aos índios, afirmando que eles deveriam ‘aprender a trabalhar como qualquer um’”, relata ainda o telegrama.

O telegrama expressa a conclusão de que não há “solução fácil” para o conflito em Mato Grosso do Sul. Para os norte-americanos, apesar de estarem na posse das terras há décadas, somente 30 a 40% dos agricultores devem ter títulos legais no estado – a conclusão é baseada em uma estimativa do geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, da Universidade de São Paulo.

“Era difícil ver um meio termo potencial no conflito entre índios e agronegócio em Dourados. Apesar de os índios parecerem menos radicais do que, por exemplo, o não étnico Movimento dos Sem-Terra (MST), eles parecem não menos dedicados à sua meta de recuperar suas terras ancestrais, e a oposição dos proprietários parece igualmente arraigada”, avalia o telegrama.

Para os americanos, a situação das terras indígenas em MS e outras partes continuará apresentando desafios à democracia brasileira nos próximos anos. “A única coisa que fica clara é que, sem uma postura mais proativa do governo brasileiro, o assunto não vai se resolver por si mesmo”, conclui outro comunicado de 2008 sobre o tema – intitulado significativamente de “o desastre guarani-kaiowá”.

Nas últimas semanas, uma carta da comunidade guarani-kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay (Iguatemi-MS) deflagrou uma ampla campanha de solidariedade com esse povo indígena com base especialmente na internet. A demanda básica dos Guarani-Kaiowá é pela demarcação de terras: atualmente esse povo, o segundo maior do país, soma 43,4 mil pessoas, vivendo em pouco mais de 42 mil hectares.

Na carta, os indígenas afirmam não acreditar mais na Justiça brasileira e, diante do abandono do Estado e das constantes ameaças de pistoleiros, fazem, em tom dramático, o pedido para que seja decretada a “morte coletiva” dos 170 Guarani-Kaiowá da comunidade.



Deixo aqui dois links que me foram encaminhados pelo leitor ROX, a quem agradeço muito, e que nos remetem a triste situação vivida pelos povos indígenas. 
http://www.youtube.com/watch?v=h8HBMhNNHaw
http://www.youtube.com/watch?v=pu7VNsbdhPY

Guarani-Kaiowa, sem meias palavras.


A advogada Luana Ruiz Silva, contratada pelo Sindicato Rural de Tacuru, que atua no caso contra os Guarani-Kaiowa, apareceu esta semana com um argumento no mínimo anacrônico: "Os produtores rurais estão em Mato Grosso do Sul há mais de um século", disse a douta e imparcial intérprete da lei. Se os fazendeiros (de soja) estão por lá há mais de um século, isso quer significar que os indios são posterior? Só faltava essa!

Não satisfeita a advogada vai além: " Vamos processar a Funai e o Cimi no caso da ocupação de áreas de fazendas da região por índios Guarani-Kaiowa.".Uma total inversão dos fatos. No MS, assim como em todo o Brasil, as terras indígenas é que são objeto de invasão. Invadem as terras indígenas para retirar a madeira, depois para criar boi, depois para plantar alguma monocultura ou explorar riquezas ligadas ao espaço físico, como os planos de manejo e "pagamentos" por serviços ambientais, especialmente o REDD. No Acre merece ainda uma atenção especial a exploração de petróleo e gás que fatalmente acontecerá e afetará as terras indígenas, mesmo que o governo omita essa verdade.

Mas voltemos ao argumento da advogada. Se os fazendeiros invasores e a sua soja "nativa" fossem mesmo anteriores aos povos indígenas alguém duvida se já não teriam exterminado todos os indígenas? Usaram as armas de fogo para roubarem as terras aos índios e agora as usam novamente para eliminar alguns focos de resistência. Assim, estes tais fazendeiros invasores são antes, assassinos confessos que, por confiarem na ausência de justiça, continuam matando e roubando (latrocínio) os povos indígenas com a arrogância dos coronéis de antes e de hoje.

Luana Ruiz Silva é membro da comissão para assuntos indígenas da OAB/MS mas diz o seguinte: “A garantia ao direito de propriedade é a defesa do principal pilar do estado democrático de direito que beneficia todos os cidadãos”. Demonstra não entender nada de índio ou ser maldosa o suficiente para defender que a vida está abaixo da propriedade roubada, por ela chamada de "privada". Privada é para onde deveríamos mandar esse tipo de argumento fajuto e fazendeiros inescrupulosos que mancham ainda mais a nossa trágica e genocida história.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

“As reservas são confinamentos de índios”, acusa Egon Heck

Samir Oliveira

Um dos fundadores do CIMI, Egon Heck trabalha há mais de 40 anos junto a comunidades indígenas | Foto: Valter Campanato/ABr
O indigenista e cientista político Egon Heck trabalha há mais de 40 anos ao lado de comunidades indígenas em todo o país. Militante do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Egon é ex-padre e um dos fundadores dessa entidade. Formado em Teologia e em Filosofia, com pós-graduação em Ciência Política, ele sempre acompanhou de perto a situação dos índios Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul.

Atualmente, a luta dessa tribo pelo retorno ao seu território original ganhou repercussão após um manifesto em que, diante do frequente descaso em relação às suas reivindicações, pediam que fosse decretada sua “extinção coletiva” pelo governo federal e pela Justiça. Nesta entrevista ao Sul21, Egon Heck faz um resgate histórico da situação dos Guarani-Kaiwoá na região e conta como são as condições de vida desse povo.

“Na área de Dourados, existe em torno de 15 mil indígenas confinados em 3,5 mil hectares. Foram levados para lá de 40 regiões diferentes. É uma área totalmente sem mata, sem condições propícias para a reprodução física e cultural dos Guarani-Kaiowá. É impossível, nessas condições, perpetuar a economia e a visão cosmológica de mundo deles”, comenta.

Para o especialista, as reservas indígenas se configuram, na prática, como prisões – pois não representam territórios sagrados para os índios e misturam diferentes tribos num espaço muitas vezes pequeno. “Os índios se locomoviam por toda uma região e acabaram confinados em pequenas áreas. As reservas são, na verdade, confinamentos de índios. São depósitos onde eles são colocados para serem disponibilizados como mão-de-obra agrícola”, acusa.
“Mais de 90% das famílias Guarani-Kaiowá depende diretamente da cesta básica. Isso gera um problema psicológico e cria uma cultura de dependência”


Sul21 – Como vivem os Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul?
 
Egon Heck –
A realidade vivida pelos Guarani-Kaiowá no Mato Grosso do Sul é de uma gravidade que eu nunca havia visto nos 40 anos em que trabalho com povos indígenas. A violência que eles sofrem é decorrente da falta de terra, que é decorrente de um processo histórico e atual de preconceito e discriminação. Essa conjunção de fatores faz com que eles se encontrem hoje numa das piores situações no Brasil e no mundo. Os números são alarmantes, seja em termos de mortes por conflitos violentos na luta da terra, seja por mortes decorrentes da falta de condições de vida. Isso faz com que praticamente não seja mais possível se reproduzir o tecido social dos Guarani-Kaiowá. Nessas condições, a cultura deles não tem como enfrentar as diversas situações de confronto, que são agravadas pela fome, pelo alcoolismo e por outros elementos que vão se introjetando nas comunidades indígenas. Temos um quadro de extrema gravidade e o que mais preocupa é que não há decisões políticas para que se enfrente positivamente essa situação. É preciso remover esses obstáculos: a falta de terra e a falta de condições de sobrevivência.

Sul21 – Sem terras e condições de vida adequadas, como eles se sustentam?
 
Egon -
Hoje, mais de 90% das famílias Guarani-Kaiowá depende diretamente da cesta básica. Isso gera um problema psicológico muito forte e cria uma cultura de dependência e desestímulo ao próprio trabalho de produção dos alimentos. Eles praticamente não conseguem encontrar trabalho. Os empregos fora da aldeia eram nos fundos de fazendas e deixaram de existir com a mecanização da agricultura. Hoje, cerca de 10 mil índios trabalham nas usinas de cana de açúcar. Podemos imaginar que a situação tende a se agravar, ao invés de melhorar. Isso só reforça um processo de genocídio.

Sul21 – Como se originou o processo de expulsão desses índios das suas terras?
 
Egon -
Os índios já participaram na Guerra do Paraguai, no século XIX, e tiveram vários mortos. Mas eles conseguiram se manter na floresta, porque aquela região foi mantida com a atividade econômica do plantio de erva mate, que não afetava profundamente o meio-ambiente. Os Guarani-Kaiowá conseguiram se manter nas florestas, complementando sua sobrevivência com o trabalho na colheita de erva mate. De 1915 a 1928, o Serviço de Proteção ao Índio (SIP) demarcou oito pequenas áreas indígenas, sendo quatro delas com uma dimensão de 3,5 mil hectares e as outras com 2,4 mil hectares. Com isso, foi acontecendo um processo de implantação lenta da pecuária e de derrubada da mata para plantações de capim. Os índios foram, inclusive, utilizados nesse trabalho de desmatamento. Mas, ainda nesse período, continuavam vivendo nos fundos das fazendas, no pequeno pedaço de mato que sobrava. Durante todo o século passado até 1943, puderam viver relativamente bem. Com o plano do governo de Getúlio Vargas de ocupação da fronteira Oeste através da colonização e da implantação massiva da agricultura, estabeleceu-se a colônia agrícola de Dourados, com mil famílias em mil lotes de 30 hectares. Isso afetou profundamente os índios, que tinham locomoção por toda a região e acabaram confinados em pequenas áreas. As reservas são, na verdade, confinamentos de índios. São depósitos onde eles são colocados para serem disponibilizados como mão-de-obra agrícola.

Sul21 – A partir de que momento os índios começaram a despertar para a reivindicação dos seus territórios originais?
 
Egon -
A partir do inicio dos anos 1980, os índios iniciam um processo de retomada de suas terras tradicionais. A primeira delas foi o Rancho Jacaré, na antiga Fazenda Campanário, que era uma fazenda sede na produção da erva mate na região. Os índios desse território haviam sido colocados num caminhão pela FUNAI e levados ao Paraguai. Depois eles retornaram para lá e foram novamente levados para longe. Eles então caminharam mais de 100 quilômetros e voltaram ao seu espaço tradicional. Foi nesse momento que começaram a ter apoio do CIMI e de outras entidades da sociedade civil. A partir daí, até o início dos anos 1990, houve mais de 10 marchas indígenas de retorno aos seus territórios. Essas terras são inerentes à cultura dos Guarani-Kaiwoá, lá estão os seus antepassados. Além disso, eles têm o direito constitucional de viver lá. Só que, ao retornarem às suas terras, os índios são recebidos por jagunços e pistoleiros fortemente armados, que os colocam para fora. Por isso eles ficam acampados nas beiras das estradas. Existe mais de 30 acampamentos no Mato Grosso do Sul.
“Ao exigirem direito de constituir grupos familiares menores em seus espaços tradicionais, os Guarani-Kaiowá enfrentam uma situação desesperadora de violência e discriminação”
Sul21 – Como são as condições de vida dos índios nas reservas do Mato Grosso do Sul?
 
Egon -
Na área de Dourados existe em torno de 15 mil indígenas confinados em 3,5 mil hectares. Foram levados para lá de 40 regiões diferentes. É uma área totalmente sem mata, sem condições propícias para a reprodução física e cultural dos Guarani-Kaiowá. É impossível, nessas condições, perpetuar a economia e a visão cosmológica de mundo deles. Imagine o tensionamento que isso não produz. Quando, tradicionalmente, havia tensões entre um mesmo grupo indígena, os responsáveis pelo conflito migravam para outro lugar. Agora isso é impossível. Os 40 grupos dessa reserva não têm para onde sair. Há uma situação absolutamente insustentável, os índios têm medo de sair de casa à noite. E isso se repete em outras reservas. A única alternativa que eles encontram é o retorno à constituição de grupos familiares menores em seus espaços tradicionais. Isso é, por direito, o que os Guarani-Kaiwoá desejam. Mas, ao exigirem esse direito, enfrentam uma situação desesperadora de violência e de discriminação.

Sul21 – Os fazendeiros contratam pistoleiros para expulsar os índios de suas terras. E o Estado disponibiliza contingentes armados para executar ordens de despejo. É possível dizer que os índios enfrentam dois inimigos: os grandes proprietários de terra e o próprio Estado?
 
Egon -
Na verdade, de formas diferentes, os condutores do agronegócio e o Estado são negadores dos direitos dos índios. Os fazendeiros não reconhecem o direito dos índios e agem com a violência que é inerente a um processo que sequer espera pela Justiça. Um dia depois do retorno dos índios ao território, os pistoleiros já estão no local. O segundo fator é a Justiça local, que, em geral, tem se posicionado rapidamente em favor dos fazendeiros, com ordens de reintegração de posse. Esse posicionamento contrário e imediato por parte da Justiça ao direito dos índios simula o que o Estado acaba efetuando em seguida, que é a disponibilização de suas forças de repressão para a remoção das comunidades. São procedimentos distintos, mas têm as mesmas consequências.

Sul21 – Como o senhor avalia esse manifesto dos Guarani-Kaiowá, no qual afirmam que preferem morrer a sair de suas terras?
 
Egon -
É difícil termos ideia do tamanho do desespero que eles vivem para que tenham chegado ao ponto de fazer essa declaração. Eu tenho acompanhado de perto esse grupo por vários anos. São 16 anos de reiteradas violências e negações. Eles são espancados, sofrem, têm familiares desaparecidos, passam fome, mas continuam lá no seu canto. Chega um momento em que eles perdem a esperança. Todo sofrimento já impingido durante essa década os leva a uma descrença total em uma possibilidade de continuarem vivendo com um mínimo de liberdade e dignidade em sua terra tradicional. A revolta no espírito e no coração é tanta que eles preferem a morte a esse tipo de dor e sofrimento. Eles não temem a morte. A morte passa a ser um subterfúgio para superar o sentimento maior que eles sentem nessa situação.
“Somos participantes e, de certa forma, responsáveis por um sistema que nega a vida a esses povos. Precisamos mostrar ao mundo que não somos coniventes com o genocídio indígena”
Sul21 – Que tipo de reação positiva pode surgir na sociedade a partir desse desabafo dos Guarani-Kaiowá?
 
Egon -
Precisamos dosar a consequência dessa conclamação, que nos leva a uma possível situação de genocídio. Se isso acontecer, seremos cobrados pela História. Somos participantes e, de certa forma, responsáveis por um sistema que nega a vida a esses povos. Precisamos mostrar ao mundo, de uma vez por todas, que não somos mais coniventes com o genocídio indígena. Essa carta precisa mobilizar a consciência nacional para que se exija atitudes positivas dos poderes responsáveis.

Sul21 – Há, por parte do governo federal e boa parte da sociedade, a visão de que os índios representam um entrave ao desenvolvimento do país.
Wilson Dias/ABr 
Egon -
Os índios não têm nenhuma pretensão de inviabilizar nada. Querem apenas continuar vivendo com seus valores tradicionais e seu sistema de vida. Infelizmente, esse pensamento persiste nas opções políticas do governo federal, que prioriza, em todos os aspectos, um sistema de favorecimento do capital em detrimento dos direitos e da vida de populações indígenas. As obras do PAC afetam mais de 500 áreas indígenas. Infelizmente, a prática do governo federal continua sendo contrária aos direitos constitucionais e aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário. Essa carta dos Guarani-Kaiowá traz à tona uma realidade gravíssima. Continuamos com estruturas de Estado e opções políticas que não dão espaço a convivência com esses diferentes povos indígenas. É preciso haver mudanças profundas na relação do estado brasileiro com as minorias.

Sul21 – Qual o papel da FUNAI no atendimento das demandas indígenas?
 
Egon -
Faz cinco anos, em novembro de 2007, que foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público Federal para que a FUNAI dê a titulação de 36 terras indígenas. Em junho de 2009 deveriam estar entregues os trabalhos de identificação das terras originais dos Guarani-Kaiowá. Passaram-se cinco anos e infelizmente nenhum relatório foi publicado. A maioria sequer foi concluída. É uma demonstração absoluta da ineficácia – quando não da omissão – do governo em relação a esse problema. A FUNAI acaba, em ultima instância, sendo obrigada a adotar uma política de acomodação de interesses que faz com que ela, sucateada, tenha apenas o mínimo de possibilidade de dar alguma resposta a esses problemas. A FUNAI não consegue fazer as coisas avançarem e, em alguns casos, até promove retrocessos. Infelizmente, a FUNAI, assim como foi o SPI, acaba sendo um mecanismo de acomodação em função dos interesses prioritários para o governo.