terça-feira, 21 de maio de 2019

O Mundo da Vida em Habermas


Habermas e o Mundo da Vida
Lindomar Dias Padilha[1]

            Aqui a ideia central é apontar relações nem sempre cordiais muito menos idênticas entre o mundo da vida em Husserl e Habermas. Em Habermas, o mundo da vida, por sua natureza de compreensão mesma, relaciona-se com o direito por interferências entre um e outro. Ainda que o direito, neste caso específico, não seja o tema central, temos que apontar que o direito é tido, ora como um meio de controle e organização dos sistemas do Estado e da economia, ora como instituição. E, a partir do momento que o direito como meio amplia sua função reguladora no mundo da vida, ele exerce a “colonização do mundo da vida”. “[…] invade destrutivamente o mundo da vida, perturbando lhe os processos de reprodução e, assim, ameaçando a manutenção dos seus componentes” (NEVES, 2006, p. 75).

            Foi o filósofo Edmund Husserl que, segundo MIRANDA (2009, p. 102, apud,  Pizzi,p.29), primeiro adotou o termo “mundo da Vida” em contraposição ao positivismo sociológico dos sec. XIX e início do XX. Nota-se em Husserl que o Mundo da Vida é uma tentativa de compreender as situações que norteiam a conduta humana que rompe com uma postura, digamos, natural. Assim, o mundo da vida em Husserl está diretamente ligado à cultura, ao mundo circunstancial e, digamos, independente da ciência ou pré-científica.

            Mas a análise, com enfoque na fenomenologia do mundo da vida em Husserl, seria realmente a mesma base, por assim dizer, em Habermas?

Não vou me deter aqui no método de Husserl, nem no contexto que cerca a introdução de seu conceito “mundo da vida”; eu me aproprio do conteúdo material dessas pesquisas, estribando-me na ideia de que também o agir comunicativo está embutido num mundo da vida, responsável pela absorção dos riscos e pela proteção da retaguarda de um consenso de fundo. (HABERMAS, 2002 p. 86, grifo nosso).

De fato, nos parece neste texto que Habermas, ainda que considerando e sendo intelectualmente honesto com tal conceito, sua preocupação e intenção é, antes, se valer do conceito direto sem considerar o momento e contexto em que Husserl o concebe. Daí falar em apropriação do conceito material. Ou seja, se de um lado, o mundo da vida em Hussel não seja tal e qual o concebe Habermas, é na realidade inserida culturalmente que ele se faz notar em ambos os casos. Por isso, a afirmação de que o agir comunicativo também está embutido “num” mundo da vida, onde “conteúdo material” sejam convicções comuns, familiares e culturais e interações linguísticas.

Entretanto, Habermas, ainda que se valendo do conceito de mundo da vida, se distancia de Husserl. Um ponto importante neste distanciamento é que o autor entende que a posição husserliana ainda se propõe a atuar numa filosofia da consciência em que o sujeito individualmente é responsável pelo conhecimento do mundo da vida e ainda se coloca, como o eu, sendo parte deste mesmo mundo conhecido. Neste caso, Habermas adota a filosofia da linguagem onde os conhecimentos dos indivíduos são construídos intersubjetivamente.

O autor não visualiza como desejável uma completa racionalização do mundo da vida, isto é, uma completa problematização de todos os conteúdos do mundo da vida e sua completa substituição por consensos reflexivos, ele entende que o processo de racionalização não acontece por ato de simples decisão racional.

A teoria do agir comunicativo destranscendentaliza o reino do inteligível a partir do momento em que descobre a força idea-lizadora da antecipação nos pressupostos pragmáticos inevitá-veis dos atos de fala, portanto, no coração da própria prática de entendimento […] A idéia do resgate de pretensões de validez criticáveis impõe idealizações, as quais, caídas do céu transcen-dental para o chão do mundo da vida, desenvolvem seus efeitos no meio da linguagem natural. (HABERMAS, 2002, p. 89)

Se o eu só é conhecido por meio de uma interação intersubjetiva, o mundo da vida só poderá ser conhecido na relação também intersubjetiva dos sujeitos de uma mesma comunidade linguística. Decorre daí, outro distanciamento onde Habermas diz que Husserl utiliza “mundo da vida” como oposto às idealizações feitas nas ciências sociais. Assim, “Husserl conclama o mundo da vida como a esfera imediatamente presente de realizações originárias” (HABERMAS, 2002, p. 88). O agir comunicativamente, então, se apoiaria, segundo o autor, também em pressupostos idealizadores. Ou seja, há por consequência do próprio agir comunicativo e a intersubjetividade no mundo da vida, uma estrutura transcendental.

O mundo da vida ocupa uma posição de destaque na obra do autor por se constituir como pano de fundo do agir comunicativo. A função mesma do mundo da vida é, ao mesmo tempo permitir que se formem consensos mas, se manter aberta às problematizações e ao risco de dissensos profundos. Tais dissensos, quando houver, o próprio mundo da vida e seu agir comunicativo, se incumbirá de, democraticamente recompor as possibilidades de novos consensos.

A introdução do agir comunicativo em contextos do mundo da vida e a regulamentação do comportamento através de instituições originárias podem explicar como é possível a integração social em grupos pequenos e relativamente indiferenciados, na base improvável de processos de entendimento em geral. É certo que os espaços para o risco do dissenso embutido em tomadas de posição em termos de sim/não em relação a pretensões de validade criticáveis crescem no decorrer da evolução social. Quanto maior for a complexidade da sociedade e quanto mais se ampliar a perspectiva restringida etnocentricamente, tanto maior será a pluralização de formas de vida, as quais inibem as zonas de sobreposição ou de convergência de convicções que se encontram na base do mundo da vida […] Este esboço é suficiente para levantar o problema típico de sociedades modernas: como estabilizar, na perspectiva própria dos atores, a validade de uma ordem social, na qual ações comunicativas tornam-se autônomas e claramente distintas de interações estratégicas? (HABERMAS, 2003, v. 1, p. 44-45)

            A resposta a esta pergunta de Habermas, de forma simples e objetiva, seria o Direito. Na teoria discursiva, o papel que restaria ao mundo da vida é o de prover temas e argumentos para problematização em discursos de justificação, pelo devido processo legislativo. A linguagem coloquial, típica do mundo da vida e circulante na esfera pública, deve ser problematizada e transformada em direito legítimo. O mundo da vida, ao passar da subjetividade a intersubjetividade, teria que necessariamente contar com a existência de um sistema regulador, legislativo, o que não seria, para Habermas, demérito algum do “mundo da vida” uma vez que, na esfera pública, ainda que de forma regulamentada, o mundo da vida segue sendo sensos e dissensos da intersubjetividades.

Entretanto, como dissemos a análise do direito e mesmo da teoria do direito em Habermas, demandaria algo mais que um artigo. Podemos falar desta “regulamentação do comportamento através de instituições originárias” em termos mais propriamente relacionados com o agir comunicativo onde a intersubjetividade entre os sujeitos, em constante construção crítica de consensos, teria posição na regulamentação, ainda que não fosse em termos sistematicamente e abrangentes.

Poderíamos então dizer que na Teoria da Ação Comunicativa, Habermas quer, antes, convencer-nos de que o mundo simbólico em comum é na verdade um mundo da vida na medida em que o construímos e descontruímos, criticamente, e sempre em construção de consensos e dissensos que brotam das “intersubjetividades” dos sujeitos.


Referências:
ALMEIDA, A. A. de. Processualidade jurídica e legitimidade normativa.
Belo Horizonte: Editora Fórum, 2005.

HABERMAS, J. Pensamento pós-metafísico. Estudos filosóficos. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

HABERMAS,J. Direito e democracia. Entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro:Tempo Brasileiro, 2003.

NEVES, M. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. O Estado Democrático de
Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

MIRANDA, M. da S. O mundo da vida e o Direito na obra de Jürgen Habermas.
Prisma Jurídico, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 97-119, jan./jun. 2009.


[1] Lindomar Dias Padilha é bacharel em filosofia pelo instituto Paulo VI, licenciado em filosofia pela UECE, especialista em desenvolvimento social no campo povos indígenas, quilombolas e comunidade tradicionais, Pela UnB, e mestrando em  Direito pela Universidade Católica de Petrópolis - UCP.

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