sábado, 9 de novembro de 2019

A LEI 13.445/17 E OS LIMITES À MOBILIDADE DOS POVOS ORIGINÁRIOS EM REGIÃO DE FRONTEIRA.


Lindomar Dias Padilha[1]
Professora Drª Denise Salles[2]
Évelin[3]


            Neste trabalho apresentaremos alguns aspectos da Lei 13.445 de 24 de maio de 2017, notadamente sobre vetos a esta em especial faremos uma análise dos prejuízos que o veto relacionado aos povos indígenas, aqui denominados por nós de povos originários[4] e das populações tradicionais, em especial o direito à livre circulação em terras tradicionalmente ocupadas, que constava no § 2º do art. 1º do o Projeto de Lei nº 288, de 2013 (nº 2.516/15 na Câmara dos Deputados), que institui a Lei de Migração. (DUPAS, 2017).

            A simples constatação e o reconhecimento de que estes povos originários são anteriores ao Estado Nacional, nos leva a admitir que o Estado Nacional se funda sobre territórios pertencentes a estes povos. Portanto, toda fronteira estabelecida a-posteriori são resultantes de autoritarismo e espoliação. O estado nacional, como tal e suas respectivas fronteiras são uma ficção. Não se pode esquecer que esta formação do estado nacional foi pautada na violência e violações de todos os direitos destes povos.

            Não obstante essas violências perpetradas contra os povos originários, obrigamo-nos também a reconhecer que a Constituição Nacional de 1998 tenta minimizar os danos, não só por meio dos artigos 231 e 232, mas na própria formulação de princípios, como observa Dupas:

A República Federativa do Brasil tem como um de seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana (inciso III, Art. 1º, da Constituição Federal); "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação", constitui um de seus objetivos fundamentais (inciso IV, Art. 3º, da Constituição Federal); e, nas suas relações internacionais, rege-se o princípio da "prevalência dos direitos humanos" (inciso II, Art. 4º, da Constituição Federal). (DUPAS, 2017, p. 74).

            Ora, neste mesmo espírito a Lei 13.445/17, em seu artigo 1º dizia: “§ 2º São plenamente garantidos os direitos originários dos povos indígenas e das populações tradicionais, em especial o direito à livre circulação em terras tradicionalmente ocupadas.” (BRASIL, 2017), num claro reconhecimento ao direito a livre circulação dos povos originários e comunidades tradicionais. Este artigo porém foi vetado criando assim, para falar o mínimo, um completo descompasso entre o espírito da Constituição Federal e da própria lei da Migração.

            Vejamos, pois, os argumentos utilizados para justificar, em tese, o veto:

O dispositivo afronta os artigos 1º, I; 2º, § 2º; e 231 da Constituição da República, que impõem a defesa do território nacional como elemento de soberania, pela via da atuação das instituições brasileiras nos pontos de fronteira, no controle da entrada e saída de índios e não índios e a competência da União de demarcar as terras tradicionalmente ocupadas, proteger e fazer respeitar os bens dos índios brasileiros. (BRASIL, Presidência da República, 2017)

            Pois é justamente este o ponto de partida de nossa crítica ao veto, baseado no inciso III, Art. 1º, da Constituição Federal, de onde se conclui que o fundamento basilar de nossa carta magna que consagra a dignidade da pessoa humana regerá os demais atos normativos. Opor o conceito de soberania ao conceito de “dignidade humana” ou considerar a soberania em grau mais elevado que a dignidade da pessoa pertencente ao estado nacional equivale a negar ao cidadão sua própria cidadania. Isso pode nos parecer contraditório, mas é justamente o que fez a presidência da república ao vetar o artigo 1º § 2º da lei 13.445/17.

            Voltemos então ao ponto nevrálgico de nossa problematização. Por serem estes povos originários anteriores ao estado nacional, seus territórios não correspondem ao conceito de Estado Nacional. Entretanto e talvez por isso mesmo, a lei entende que estes povos possuem direitos, digamos, originários, decorrentes desta primazia. Um desses direitos essenciais consagrados é o direito à livre circulação em seus territórios. Este é, pois, o ponto central: garantir os direitos desses povos contra a arbitrariedade estatal. Uma espécie de garantismo aplicado como salvaguarda dos Direitos Humanos e, no neste caso, direitos dos povos originários.

                                                   (...) o projeto da Lei de Migração, a princípio, mostrava-se um avanço, ao falar em “livre circulação em terras tradicionalmente ocupadas”, pressupondo o movimento dentro de um mesmo território. A menção à mobilidade de populações indígenas em uma proposta legislativa sobre migração, contudo, reafirma a superioridade jurídica das fronteiras nacionais. A Mensagem de Veto, utilizando-se do argumento da defesa da segurança nacional para justificar as restrições promovidas pelo Estado brasileiro às populações indígenas, é apenas uma consequência de tal pensamento. (SILVA, 2018, p. 5).

            Vejamos que o grande argumento do veto repousa na ideia de que a defesa do “território” se impõe para “garantir” a soberania. É clara a inversão nessas proposições. Só se garante o território garantindo os direitos das populações vivem nesse território e não o contrário. Esses povos não figuram como ameaças, mas sim como “garantidores”  desses territórios, tanto mais por terem sido estes povos e seus territórios, a única base territorial para o surgimento do estado nacional. Os territórios reivindicados para livre circulação dos povos originários são antes territórios desses povos que do estado nacional. Dito de outra forma: acreditamos que só tem sido possível a garantia da soberania nacional em região fronteiriça graças a existência desses povos. A observação de Dupas corrobora o que estamos analisando criticamente:

Os povos indígenas e as populações tradicionais não foram contemplados como sujeitos de direitos, o que demonstra que ainda há a permanência do princípio de defesa do território nacional como elemento de soberania e o controle da entrada e saída de indígenas e não indígenas, além da competência da União de demarcar as terras tradicionalmente ocupadas, proteger e fazer respeitar os bens dos indígenas brasileiros, sendo estas as justificativas dos vetos (...). (DUPAS, 2017, p. 75).

            A Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 231 confere aos povos originários o direito aos territórios e sua forma de se organizar nestes mesmos territórios segundo seus costumes e tradições (BRASIL, 1998) e cabendo a união demarcar respeitar e fazer respeitar estes territórios e os bens ali existentes. Demarcar e respeitar os territórios e formas tradicionais de organização implica, entre outras, garantir a livre circulação destes povos em seus territórios. Recorrer ao conceito de soberania para estorvar, limitar e mesmo impedir essa livre circulação caracteriza uma gravíssima violação de direitos.

            Note-se que não falamos em “livre circulação” em território considerado brasileiro. Falamos antes, de livre circulação em territórios indígenas, ou como preferimos dizer, em territórios dos povos originários. Limitar a circulação desses povos em seus territórios não se justifica se retomarmos a ideia central da Constituição que é o respeito aos territórios e às formas de lidar com esses territórios por parte dos povos originários.
            Desde sempre estes povos circulam livremente em seus territórios limitando-se apenas em momentos de conflitos com outro povo igualmente originário e sempre compreendendo de onde até onde se poderia circular sem as determinações do estado nacional e muito menos sob o argumento da “soberania nacional”. Talvez esteja aí a crescente tese de estados plurinacionais.
            A lei que se apresentava como um verdadeiro avanço em nossa legislação, por meio do veto, torna-se um verdadeiro desrespeito à legislação e ao espírito do qual o legislador se valeu. Portanto, o veto não é apenas uma violação de direitos dos povos originários, mas uma afronta ao legislador brasileiro e desrespeito aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

A menção de populações indígenas em uma legislação sobre migração, bem como seu posterior veto, revela a marginalização institucional que os povos indígenas enfrentam na jurisdição brasileira (...). (SILVA, 2018, p. 1).

            Com muita propriedade se pode mesmo falar em “marginalização Institucional” no caso da menção dos povos indígenas, povos originários, na legislação sobre migração como se estes fossem “estrangeiros” em seus próprios territórios. Ainda mais explícito fica esta marginalização quando da argumentação que sustentou o veto.

            Ao vetar o artigo que garantia proteção aos povos originários, o Estado viola sua própria legislação e espírito desta, mas também desrespeita a forma de viver desses povos estabelecendo e aprofundando o preconceito contra estes povos historicamente marginalizados. Assim assinala Sprandel:

O direito à livre circulação de povos indígenas e populações tradicionais também encontra respaldo em tratados internacionais dos quais o Brasil é parte, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), internalizada pelo Decreto n. 5.051, de 19 de abril de 2004 e o Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul e Países Associados35, que contempla os indígenas da região. (SPRANDEL, 2017, p. 53).

            O Brasil que vinha numa ascendente reflexão sobre direitos humanos perante diversos organismos inclusive internacionais, com o veto, demonstra retrocesso e desrespeito às normas, acordos e posições consagradas mundialmente o que nos coloca em uma posição descendente em relação aos direitos humanos. Mais que lamentar tais retrocessos, devemos sempre denunciar toda e qualquer violação de direitos.


Referências:
BRASIL, Constituição Federal, Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 16 de agosto 2.019.
_______. Presidência da República. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Brasília, 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/Msg/VEP-163.htm. Acesso em: 15 de agosto 2019.
DUPAS, Elaine. BOTELHO, Tiago Rezende. A NOVA LEI DE MIGRAÇÃO E A BIOPOLÍTICA: O veto à livre circulação de povos indígenas e populações tradicionais transfronteiriças. Arquivo Jurídico, v. 4, n 2, 2017, Teresina, PI
SILVA, Leonardo Matheus - Fragmentados: mobilidade guarani e a Lei de Migração. Memória Patrimônio Democracia, 2018. UNVLLE, Joinville, SC.
SPRANDEL, Maria Anita. Leis migratórias e conservadorismo parlamentar no Brasil: o caso da Lei 13.445, de 2017. Cadernos de Debates Refúgio, Migrações e Cidadania, v.13, n.13 (2018). Brasília: Instituto Migrações e Direitos Humanos.


[1] Mestrando em Direito, pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP, no programa Processo e Efetivação da Justiça.

[2] Professora no programa Processo e Efetivação da Justiça, do mestrado em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP.

[3] Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP, no programa Processo e Efetivação da Justiça.

[4] Distinguimos povos originários tanto dos até então chamados de “indígenas”, “aborígenes” ou simplesmente índios, por várias razões. Uma dessas razões é o fato de esses povos habitarem originalmente estas terras antes dos colonizadores. São pois, povos pré-colombianos e pré-cabralinos.

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