Reproduzo aqui um texto da Dra.Deborah Duprat publicado na Folha de São Paulo que deve ser acessado AQUI
Deborah Duprat
A concepção dos povos originários da América como inferiores e a violência do projeto colonial vão alimentar, em larga medida, as teorias raciais do século 19 e a própria formação dos Estados nacionais, com a noção de homogeneidade que lhe é correlata. A combinação desses ingredientes culminou no nazismo e no Holocausto judeu, chamando a atenção da Europa, pela primeira vez, para o fenômeno da eliminação dos "seus outros".
Em 11 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio. Em ambos os casos, parte-se da premissa de que, se os direitos humanos são universais, é fundamental assegurar o pluralismo das sociedades nacionais, com abandono da ideia de superioridade de um grupo sobre os demais.
A convenção diz que o genocídio é crime tanto em tempo de paz como em tempo de guerra e o define como a prática de atos cometidos com a intenção de "destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso". Já o seu artigo 2º, "c", diz que constitui ato de genocídio "submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial".
A Constituição Federal determina a demarcação das terras indígenas porque são espaços essenciais à autodeterminação desses povos. A negativa ou omissão deliberadas da demarcação configura o crime de genocídio na modalidade inscrita no artigo 2º, "c", da convenção —ou seja, mata-se um povo quando lhe são impostas condições de vida capazes de levar à sua destruição física. Seus membros morrem, e os sobreviventes se submetem a um processo de integração à cultura dominante. O povo preexistente deixa de existir. Foi o que aconteceu com vários povos indígenas ao longo do projeto colonial.
Dito isso, é preciso denunciar que está em curso um processo de genocídio dos indígenas no Brasil, capitaneado pelo presidente da República. Discursivamente, ele trata esse segmento da sociedade como inferior e diz que não irá demarcar —como não demarcou— um centímetro de área indígena. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em ação proposta perante o Supremo Tribunal Federal, evidenciou que esses discursos levaram a ondas de invasões de terras indígenas. Dados do Prodes, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), revelam que, em 2019, a taxa anual de desmatamento em toda a Amazônia foi de 34,41%, mas que esse incremento foi de 80% quando consideradas apenas as terras indígenas.
No contexto da Covid-19, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos concedeu medida cautelar em favor dos povos indígenas Yanomami e Ye’kwana, apontando a presença, em seus territórios, de 20 mil garimpeiros. Também assim procedeu em relação aos povos indígenas Munduruku, Guajajara e Awá, todos com seus territórios invadidos e vítimas de ampla disseminação da doença. Relatório de 2021 produzido pelo Conselho Indigenista Missionário aponta que os casos de invasão de terras indígenas em 2020 tiveram um acréscimo de 137% em relação a 2018. Foram atingidas pelo menos 201 terras indígenas, de 145 povos, em 19 estados.
Jair Bolsonaro organizou toda a burocracia para negar direitos territoriais a esses povos e abrir suas terras para atividades que ele considera produtivas. Embutidas nesse aparato, as velhas ideias da supremacia racial e da necessidade de assimilação das culturas dissidentes. Isso tem nome: genocídio.
Deborah Duprat: advogada e subprocuradora-geral da República aposentada, participou do Tribunal do Genocídio, no Tuca (Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), como representante da sociedade na acusação.
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