Por : Egydio Schwade
Na minha terra natal, sempre senti muita resistência dos jovens para prestarem Serviço Militar. Ficavam felizes quando eram dispensados. Eu fui dispensado por ser seminarista. Mas tive interessantes contatos com militares neste tempo do Seminário. Os jesuítas tinham no curriculum do seminário, experiências interessantes. Uma delas era uma caminhada a dois, durante um mês, pelo interior do país, sem dinheiro no bolso, obrigados a viverem de esmola. E outra, trabalhar em hospital, nos serviços mais humildes. Fiz as duas experiências em 1959.
A segunda fiz no Hospital Militar de Porto Alegre. Um estágio inesquecível. Uma das cenas que me impactou, foram os últimos momentos de vida de um militar que lutou na Guerra do Contestado. Uma guerra contra pobres sertanejos. Sua participação como militar, nesta guerra suja, lhe doía no coração, naquele final da vida: ter ajudado a massacrar gente pobre e humilde, servindo aos interesses de ricos e poderosos.
Em outro experimento daquele período, servi de garçom num retiro espiritual para a elite de Porto Alegre, onde me tornei amigo de um general aposentado, com quem troquei correspondência até a sua morte, em 1964, quando eu já trabalhava com os índios em Mato Grosso
Entre 1973 e 1980, como Secretário Executivo do Conselho Indigenista Missionário-CIMI, fiz muitas viagens pela Amazônia. E me vali, diversas vezes, dos Serviços da FAB-Força Aérea Brasileira, em seus voos de Catalina e C-47, no controle que faziam das fronteiras e apoio aos indígenas e ribeirinhos da região. Neste serviço aos necessitados, vi, muitas vezes, os olhos dos militares da FAB, brilharem cheios de satisfação. Nos pousos em cidades e vilas, ao longo dos rios: Amazonas, Solimões e Negro, o povo humilde, em troca pelos serviços, compartilhava sua vida pobre, improvisando mesinhas, no chão dos aeroportos, servia-lhes cafezinho com bolachinhas. E voltando do serviço prestado, voando sobre as fronteiras do Cucuí, do Pico da Neblina ou dos sinuosos afluentes do Solimões, comentavam com o coração eufórico, as ações, lembranças inesquecíveis que os confortavam e realizavam suas vidas.
Mas sempre senti, o quanto procuravam manter distância, ocultavam e se envergonhavam de sua participação em feitos necrófilos, como na matança de índios na fronteira do Javari e na construção de rodovias genocidas, como na BR-163, onde destruíram os Krenhakarore, o povo Panará; na Transamazônica e na BR-174, onde cometeram o genocídio dos Diahui, dos Tenharim e dos Waimiri-Atroari. E escondem o alagamento nas águas do lago da Hidrelétrica de Itaparica, no S. Francisco, a Ilha da Viúva, a única terra, ou “ovelhinha” (2Sm. 12,1-15) que restava ao Povo Tuxá. Além do seu cemitério, lembranças fortes do amigo, Antônio Conselheiro que compartilhou sua vida de sofrimento e onde se inspirou para construção de Canudos, uma experiência de fraternidade, arrasada pelos militares.
Entre 1974 e 1975, percorri o Goiás, Maranhão, Pará e Amazonas, visitando remanescentes dos povos originários, onde me ocorreu realizar uma assembleia de lideranças desses povos, na aldeia Cururu, dos índios Munduruku, no Alto Tapajós. Uma ideia louca que levei a D. Tomás Balduíno, bispo na cidade de Goiás, então Presidente do CIMI.
Para minha surpresa, D. Tomás, sem pestanejar um instante, me retrucou: “Egydio, vamos amanhã a Belém, falar com o Camarão, Comandante Militar da Amazônia!” E lá fomos nós, no dia seguinte, voando no aviãozinho de D.Tomás, pilotado por ele mesmo, rumo a Belém.
O Comandante Camarão nos recebeu sem demora. Ouviu em silencio, o relato e o pedido de apoio da FAB para a realização da Assembleia de lideranças indígenas no Alto Tapajós. Ao final, batendo o punho na mesa, quebrou o silencio: “É isto que estes índios ainda precisam! Podem contar com a FAB.” E o Camarão enviou aviões para todos os lados indicados por nós, recolhendo as lideranças do Amapá: Galibi, Karipuna e Palikur; da Serra do Tumucumaque: Tiriyo e Kaxuiana; do Goiás: Xerente e do Mato Grosso: Nanbikuara, Paresi, Rikbaktsa, Manoki, Kayabi, Apiaká, Bororo, Xavante e Tapirapé. E aquela assembleia, realizada em maio de 1975, se transformou, numa das maiores e mais animadas já feitas.
Muitos anos depois, o grande indigenista, Egon D. Heck, mestrando de História, fazendo um estudo sobre a ação dos militares na Amazônia, foi entrevistar o ex-Comandante Camarão, já aposentado que lembrava com muita satisfação o feito daquele apoio à realização da assembleia indígena do Cururu. E eu que tive a graça de presenciar, pessoalmente, este maravilhoso evento, muitas vezes pensei: “È isto que os militares ainda precisam. Esta é a sua missão! E podem contar com os brasileiros mais necessitados!”
Mas no mesmo mês daquele ano de 1975, outro General, Ismarth de A. Oliveira, Pres. da Funai, nos enviou ofício, proibindo aos membros do CIMI, Presidência e Secretariado, a entrada em todas as áreas indígenas do país. Uma das razoes alegadas foi a nossa participação na organização da citada Assembleia. Proibição mantida até o final da Ditadura Militar.
Durante os 20 anos de Ditadura Militar, os povos indígenas e as populações ribeirinhas e seringueiras, sofreram muito: perda da terra, perda da sua autonomia e muitas vidas. A missão preponderante exercida pelos militares na Amazônia, foi esmagar os povos indígenas, com rodovias e hidrelétricas e despojar as populações ribeirinhas e seringueiras de seus direitos à terra, à saúde e à educação em seu ambiente local, forçando-as à conquistar espaço nas periferias urbanas, onde foram recebidas como ‘invasores’.
Esta foi, é, e continua sendo a principal e vergonhosa missão das Forças Armadas, assumida desde 1500: prestar um serviço equivocado às elites gananciosas que se apossam, insaciavelmente, do território brasileiro, reprimindo e massacrando a quem resiste e defende o seu direito. Assim agiram nas lutas populares: na Revolta de Frei Caneca e na Confederação do Equador, no Pernambuco; na Balaiada no Maranhão; na Revolução Farroupilha, no Rio Grande do Sul; e na Guerra do Paraguai. E à frente de todas estas ações militares estava a família Lima e Silva, com o pai ou o filho, o Duque de Caxias, patrono do Exército Brasileiro.
Em novembro de 1974, o Comando Militar da Amazônia-CMA, com assinatura do Gal. Gentil Paes, então Comandante do 6º BEC que construía a BR-174, assinou treze medidas repressivas do CMA e da FUNAI, contra os Waimiri-Atroari, entre as quais uma diz: “Esse Comando, caso haja visita dos índios, realize pequenas demonstrações de força, mostrando aos mesmos os efeitos de uma rajada de metralhadora, de granadas defensivas e da destruição pelo uso de dinamite.” (Of. 042-E2- 21-11-1974).
Tive oportunidade de conhecer a trajetória de outro oficial que atuou na construção da mesma rodovia BR-174, o Gal. Altino Berthier Brasil. recebi de suas mãos, os originais do livro de suas memórias na construção daquela estrada: “O Pajé da Beira da Estrada”/1986 que dedica, “Ao anônimo irmão Waimiri-Atroari, cujo cadáver mal enterrado deparamos, muitas vezes, pela frente”. Onde faz seu “confiteor”: “...o índio não chora. Mas os códigos que regulam a altivez de sua raça não o impedem de gemer, como qualquer ser humano. E na hora do ângelus e mesmo depois, em plena cegueira daquelas noites equatoriais, comovido, eu cansei de ouvir gemidos pungentes e soluços anônimos, verdadeiros clamores de misericórdia daquela gente, que me parecia condenada a um triste e melancólico fim...”. E não se pode afirmar que hoje vemos pela primeira vez os garimpeiros sendo expulsos da Terra Yanomami pelas Forças Armadas. Lembram-se do Secretário do Meio Ambiente, José Lutzenberger? Seu assessor imediato, foi o General aposentado, Altino Berthier Brasil. Quando ambos foram os dirigentes da Secretaria do Meio Ambiente do Governo Federal, no início dos anos 90, os aeroportos dos garimpeiros na área Yanomami foram bombardeados por ordem desses dois dirigentes do IBAMA e os garimpeiros retirados.
Em 2014, um mês antes de completar 79 anos de idade, fui convidado a acompanhar uma ação de destruição de dois garimpos ilegais na Terra Yanomami, instalados em um afluente do rio Couto de Magalhães, próximo à fronteira da Venezuela. Só tive condições de colaborar, carregando algumas cartelas de ovos, espólio da prisão dos garimpeiros. Por isso, durante a longa viagem, navegando pelos rios Mucajaí e Conto de Magalhães e caminhando pela floresta, me perguntava: por que me convidaram a mim e não as Forças Armadas?
Canudos, Cabanos, Balaiada...é hora de um governo ir ao encontro dos militares, ocupar seus centros de formação por quem lhes ensinem uma nova lição. Os faça seres novos. Após tanta participação em ações iniquas, contra o povo oprimido, em luta por justiça, já é hora de acordarem e, como o Rei Davi, pedirem um coração de carne que transforme o serviço de ódio contra os fracos, em ações de solidariedade que encham os seus corações de alegria e real orgulho.
Se o governo do PT não conseguir levar aos centros de formação das Forças Armadas, o estudo e a revisão da sua História, sempre voltará o perigo da direita fascista retornar ao poder, com toda a força do seu coração de pedra. É preciso que apareçam militares com a coragem daqueles 3 indicados pelo pai do patrono do Exército para serem carrascos e enforcarem o Frei Caneca, mas se negaram a cumprir a ordem.
Não sou favorável que os militares sejam máquinas de guerra, tutoras das elites e nem sejam meros cumpridores de ordens do Presidente da República. Infelizmente, desde 1500, o foram e são, de governos dessa gente que faz e comanda as leis escritas. Cada pessoa humana tem o direito de cumprir a Lei da Liberdade (Tg. 1.25), a ciência congênita, inscrita desde sua concepção em seu coração e que a chama à solidariedade. Soldados e generais também são sujeitos desta Lei da Liberdade.
Casa da Cultura do Urubuí, 12 de fevereiro de 2023,
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