Os relatos apresentados ontem, 22 de maio de 2013, em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado Federal (ouça o audio completo aqui) a respeito da forma como a Ditadura Militar montou uma verdadeira máquina de guerra contra os povos indígenas das diversas regiões do país para viabilizar a implementação de seu projeto de desenvolvimento a qualquer custo ecoa fortemente a política indigenista defendida hoje pela cúpula do Executivo Federal, cada vez mais rendida à bancada ruralista. Quanto aos últimos, são os mesmos algozes do passado, aqueles que representam os que se beneficiaram diretamente do esbulho das terras indígenas e do genocídio, sua posição não surpreende a ninguém. Quanto ao Executivo Federal, entretanto, nada poderia ser mais sintomático de uma verdadeira Síndrome de Estocolmo do que ver a presidenta Dilma Rousseff, que foi perseguida, presa e torturada pela Ditadura Militar, reeditando medidas análogas àquelas do regime para impor a todo o custo seu projeto desenvolvimentista goela abaixo dos povos indígenas.
O recém descoberto Relatório Figueiredo (veja aqui o seu resumo) é um documento oficial produzido pelo Estado brasileiro entre novembro de 1967 e março de 1968, como resultado de uma Comissão de Investigação do Ministério do Interior, que foi presidida pelo procurador federal Jader de Figueiredo Correia. Ele apresenta preciosas informações sobre as violações de direitos indígenas no Brasil tanto em relação aos direitos humanos quanto às usurpações patrimoniais e territoriais. Se a expropriação territorial era conhecida de todos, agora apresentam-se provas de atos bárbaros que apenas poucos conheciam a partir dos relatos dos indígenas que foram vítimas deles: regimes de trabalho forçado nos Postos do antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI); torturas realizadas com instrumentos como o “tronco” (“consistia na trituração do tornozelo da vítima, colocado entre duas estacas enterradas juntas em ângulo agudo. As extremidades, ligadas por roldanas, eram aproximadas lenta e continuamente”, nas palavras do próprio Figueiredo); celas clandestinas instaladas em diversos desses Postos; prisões oficiais que funcionavam como verdadeiros campos de concentração, para os quais eram levados indígenas de diversas etnias e regiões do país visando sua suposta “correção” (Veja mais sobre o presídio Krenak ); envio de alimentos envenenados que dizimaram aldeias inteiras, para liberação de suas áreas para aberturas de estradas e para colonização; enfim, toda uma variedade de práticas e instrumentos bárbaros contra os povos indígenas ...ecos do passado no presente?
Compare-se isso com o assassinato de mais de 300 lideranças no Mato Grosso do Sul nos últimos anos, de que falava Cléber Buzzato (CIMI) durante a referida Audiência, realizado por aqueles que se opõem à luta desses indígenas para recuperar as terras que perderam justamente por força do aparato de Estado aludido acima. O Presidente Lula, aparentemente sensibilizado com a situação dos Guarani e Kaiowá anunciou diversas vezes que a solução para esse problema seria dada em seu Governo. Tardou, mas ele permitiu em 2007 que a FUNAI criasse 6 grupos de estudo para a Identificação e Delimitação das Terras Indígenas da região. Em meio a uma série de disputas judiciais, foi apenas no início de 2013 que o resultado de um primeiro desses estudos foi publicado no DOU, delimitando a Terra Indígena Iguatemi Pegua I com cerca de 41.500 hectares. O Relatório de Identificação desta Terra Indígena apresenta uma análise minuciosa da situação histórica que resultou no esbulho das terras delimitadas, justificando com bases constitucionais e legais claras porque essas áreas são imprescindíveis à reprodução física e cultural desses indígenas, como determina o artigo 231 da CF 1988. Os outros estudos da região estão em fase avançada, e caso Dilma tiver alguma sensibilidade, em algum tempo seus resultados poderão ser publicados, e toda a sociedade terá uma noção exata da extensão das terras a que os Guarani e Kaiowa têm direito no Mato Grosso do Sul, condição mínima para que o impasse seja solucionado. Entretanto bastou uma pressão de ruralistas, com medo de que essa justiça histórica seja feita, para que a Ministra da Casa Civil fosse à público desautorizar o trabalho da FUNAI, dizendo que esse órgão não tem “critérios claros” para demarcar as terras indígenas e “mediar conflitos”, e que ela vai colocar a Embrapa e o Ministério da Agricultura para opinar sobre o assunto (veja aqui). Não é à toa que o Paraná, para onde a Ministra dirige inicialmente sua ofensiva, é um dos estados mais presentes nas denúncias do Relatório Figueiredo em razão da atuação criminosa do SPI e do governo de Moisés Lupion, que grilaram terras guarani e kaingang num processo que vinha desde a criação do Parque Nacional do Iguaçú e que culminou na construção, pelos militares, da Usina Hidrelétrica de Itaipú, que inundou terras Guarani. Apesar do esforço do Estado brasileiro em calar essa história, ela permanece viva na memória dos Guarani, à espera de reparação. Como dizem os Guarani do oeste do Paraná: “As Cataratas são nosso cemitério”. Continuará o Governo praticando os mesmo expedientes para construção de hidrelétricas na Amazônia, como no rio Tapajós, onde um Munduruku foi assassinado pela Polícia Federal?
O Relatório Figueiredo é, assim, apenas ponta do Iceberg, que mostra que o SPI atuou ativamente para retirar indígenas de seus territórios por meio da violência praticada enquanto política de Estado. Infelizmente, principalmente nas regiões Centro-Oeste, Sul, Sudeste e Nordeste a FUNAI perpetuou essas práticas até pelo menos 1991 (as últimas TIs Guarani-Kaiowa forma reconhecidas em 1991/1993, nos Governos Collor e Itamar Franco). Nos últimos anos, iniciou-se um rompimento com essa política e a FUNAI parou de responder aos chamados de fazendeiros para que retirassem à força grupos indígenas das suas áreas tradicionais, mas que eles nunca cansaram de tentar retomar por meio de um movimento de resistência cultural pacífico, o que o órgão enquanto ainda esteve orientado pelo espírito integracionista do SPI fazia mesmo sem mandato judicial, como todos os que acompanham de perto a questão sabem.
Agora, os ruralistas apressam-se a criar uma CPI para investigar a FUNAI. Como apontou o deputado Ivan Valente (PSOL) (Ver mais), estão querendo punir a FUNAI é pelos seus méritos, por ter rompido com essa política. O que querem os eminentes deputados da Frente Parlamentar Agropecuária é investigar por que escritórios locais da FUNAI, os antigos postos, pararam de servir aos seus interesses; por que não fazem como sempre fez o SPI e a FUNAI da Ditadura Militar e do Governo Sarney, por que não querem mais enriquecer ilicitamente à custa do esbulho do território e do patrimônio indígena. É isso que incomoda os ruralistas.
E a cúpula do Executivo Federal, cada vez mais alinhada com aqueles parlamentares em nome de uma suposta “governabilidade”, corre para dar legitimidade a esses disparates. Já é passada a hora da presidenta Dilma aprender as lições do Relatório Figueiredo e perceber que os indígenas estavam do mesmo lado dos perseguidos políticos que lutaram contra o regime militar e por isso também foram mortos, torturados, tiveram seus parentes desaparecidos, seus cadáveres ocultados e merecem justiça e reparação. No momento em que o país esforça-se em abrir os porões de sua memória para construir um país mais justo e igualitário, trazendo à luz do dia verdades e violências caladas pelos militares, os poderes da República repetem as condutas daqueles que foram algozes da própria presidenta e de alguns hoje no governo, revivem velhos fantasmas, condenando os povos indígenas ao silêncio, ao esquecimento e ao extermínio.
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