Por José Ribamar Bessa Freire*
Introdução
Gostaria de
iniciar a minha fala informando vocês sobre o lugar de onde estou falando. Sou
ex-professor da Universidade do Amazonas, onde trabalhei de 1977 a 1986, inicialmente no
curso de Comunicação Social e depois no curso de História, onde lecionei as
disciplinas Etnohistória e História do Amazonas. Fui fundador e primeiro editor
do Porantim, jornal do CIMI – Conselho Indigenista Missionário, dedicado à
causa indígena. Atualmente, sou professor da UERJ – Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, onde coordeno desde 1992 o Programa de Estudos dos Povos
Indígenas. Na palestra de hoje, vou falar um pouquinho sobre o meu trabalho e,
depois, penso refletir com vocês sobre cinco ideias equivocadas que muita gente
no Brasil ainda tem quando se refere aos índios. É importante discutir essas
ideias equivocadas, porque com elas não é possível entender o Brasil atual. Se
nós não tivermos um conhecimento correto sobre a história indígena, sobre o que
aconteceu na relação com os índios, não poderemos explicar o Brasil
contemporâneo.
As
sociedades indígenas constituem um indicador extremamente sensível da natureza
da sociedade que com elas interage. A sociedade brasileira se desnuda e se
revela no relacionamento com os povos indígenas. É ai que o Brasil mostra a sua
cara. Nesse sentido, tentar compreender as sociedades indígenas não é apenas
procurar conhecer "o outro”, "o diferente”, mas implica conduzir as
indagações e reflexões sobre a própria sociedade em que vivemos. No entanto,
constatamos que muito pouco foi feito para conhecermos a história indígena. A
produção de conhecimentos nesta área não condiz com a importância do tema. As
pesquisas são de uma pobreza franciscana. O resultado disso é a deformação da
imagem do índio na escola, nos jornais, na televisão, enfim na sociedade
brasileira.
Por que nós
não temos história indígena? Porque os próprios cursos universitários de
História não têm a disciplina história indígena nos seus currículos? Durante muito
tempo, a academia justificou a ausência de pesquisas, alegando que não existem
documentos escritos relacionados à história indígena.
A USP tentou
verificar se isso era verdade e, em 1991, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha
elaborou um projeto de âmbito nacional, dirigido pelo historiador John
Monteiro. Coordenei este projeto no Rio de Janeiro, trabalhando com uma equipe
de 12 pesquisadores. Nós passamos dois anos e meio vasculhando 25 grandes
arquivos do Rio de Janeiro, procurando manuscritos sobre a história indígena. O
resultado foi surpreendente. O Rio de Janeiro, como antiga capital, tem
arquivos cujos acervos não se limitam ao local, ao regional, mas cobrem todo o
Brasil. O Arquivo Nacional, por exemplo, com essa denominação, dá uma ideia de sua
abrangência. A Biblioteca também é Nacional. O Instituto Geográfico e Histórico
é Brasileiro, e assim por diante. No Rio estão os arquivos do Itamaraty, do
Ministério do Exército, da Marinha, arquivos religiosos como o do Mosteiro de
São Bento ou o dos Capuchinhos, registrando informações sobre os índios em todo
o país. Num trabalho paciente, a equipe encontrou milhares de documentos sobre
índios. A USP publicou um livro com o resultado geral da situação dos arquivos
nas capitais brasileiras. AUERJ publicou outro livro Os Índios em Arquivos do
Rio de Janeiro, em dois tomos que estão aqui, em minhas mãos. Estamos doando
este exemplar para a biblioteca do CENESCH. Se houver interesse, podemos
conversar mais sobre isso na hora do debate. É um trabalho que serve de guia
para os pesquisadores, porque diz para eles onde estão os documentos. Ele tem
sido consultado por muitos estudiosos de universidades americanas, europeias e
brasileiras, entre os quais alguns professores da Universidade do Amazonas,
como Luis Balkar Sá Peixoto Pinheiro, que defendeu em São Paulo tese de
doutorado sobre a cabanagem, um importante movimento de resistência do século
XIX e Francisco Jorge dos Santos, cuja dissertação de mestrado é sobre as
guerras e rebeliões indígenas na Amazônia do século XIX.
Quando
fizemos essa pesquisa, encontramos documentos sobre índios em todo o território
nacional, desde 1500 até os dias de hoje, mas o que nos interessava mais de
perto era o Rio de Janeiro. Descobrimos que no Estado do Rio de Janeiro, até o
início do século XX, existiam ainda grupos resistindo. No noroeste fluminense,
na serra das Frecheiras, em 1830-40, índios Puri, Coroado e Coropó estavam nas
mesmas condições que os Yanomami há 40 anos: sem maiores contatos com a
sociedade regional. Então, localizamos no mapa do Rio de Janeiro, no século
passado, 15 aldeias. E aí procuramos saber como e porque esses índios foram
varridos do mapa, o que afinal tinha acontecido com eles. Pensamos o seguinte:
ora, se ainda no século passado existiam 15 aldeias indígenas, então é provável
que hoje ainda pudéssemos encontrar documentos nas cidades onde essas aldeias
estavam situadas.
Com esta
probabilidade, organizamos outro projeto de pesquisa. Formamos uma equipe com
alunos da UERJ, percorremos quinze cidades do interior do Rio de Janeiro,
fuçando pequenos arquivos paroquiais, cartoriais e municipais. E aí fomos
gratificados, porque encontramos uma massa expressiva de documentos nos livros
de batismo, de casamento e de óbitos, nos processos judiciais e na documentação
cartorial. Exploramos parte desse material, analisamos a documentação e
publicamos este livro aqui –Os Aldeamentos Indígenas do Rio de Janeiro– que é
um livro paradidático, destinado aos alunos das escolas de 1º e 2º graus.
Também estamos doando este exemplar para a biblioteca do CENESCH. Nos dois
últimos anos, meu trabalho consiste em percorrer os municípios do Rio, fazendo
oficinas com professores de História, que estão usando este livro na sala de
aula. Desta forma, com esse trabalho de formiguinha, pretendemos contribuir
para mudar a imagem preconceituosa dos índios que, de uma forma geral, é
veiculada pela escola. Mas é necessário aprofundar a pesquisa.
Por último,
elaboramos também os Cadernos de Museologia, editado pela UERJ, com artigo de
um antropólogo americano, James Clifford, sobre os museus tribais no Canadá e
outro artigo que escrevi sobre como os índios descobriram o museu aqui no
Brasil. Feita essa apresentação, na palestra de hoje queria destacar cinco
ideias relacionadas à questão indígena, que não são corretas, mas que continuam
presentes na cabeça da maioria dos brasileiros. Depois, então, abrimos para o
debate.
1.
PRIMEIRO EQUÍVOCO: O ÍNDIO GENÉRICO
A primeira
ideia que a maioria dos brasileiros tem sobre os índios é a de que eles constituem
um bloco único, com a mesma cultura, compartilhando as mesmas crenças, a mesma
língua. Ora, essa é uma ideia equivocada, que reduz culturas tão diferenciadas
a uma entidade supraétnica. O Tukano, o Desana, o Munduruku, o Waimiri-Atroari
deixa de ser Tukano, Desana, Munduruku e Waimiri-Atroari para se transformar no
"índio”, isto é, no "índio genérico”. Alguém aí pode objetar: - Ah,
mas existe também "europeu” como uma denominação genérica que engloba
vários povos de línguas e culturas diversas e ninguém questiona isso. É
verdade. No entanto, quando um português ou um francês dizem que são europeus,
essa denominação genérica não apaga a particular. Eles continuam sendo, cada
um, português ou francês. No entanto, no caso do "índio”, o equívoco está
em que o genérico apaga as diferenças. O "índio” deixa de ser Tukano,
Desana etc. para se transformar simplesmente no "índio”.
Hoje, vivem
no Brasil mais de 200 etnias, falando 188 línguas diferentes. Cada povo tem sua
língua, sua religião, sua arte, sua ciência, sua dinâmica histórica própria,
que são diferentes de um povo para outro. Só para dar uma noção para vocês
sobre essa enorme diversidade, quando Frei Gaspar Carvajal desceu o rio
Amazonas em 1540, encontrou aqui povos que falavam dezenas de línguas
diferentes, tão diferentes entre elas como o português é do alemão. O padre
Acuña, um jesuíta que em 1640 acompanhou a expedição de descida de Pedro
Teixeira, escreve que só no baixo Amazonas existiam pelo menos 150 povos,
falando 150 línguas diferentes. Por essa razão, o padre Antônio Vieira
denominou o rio Amazonas de rio Babel.
Recentemente,
um trabalho feito pelo linguista tcheco Cestmir Loukotka, em 1968, sobre a
classificação de línguas, mostrou que na Amazônia brasileira, em 1500, eram
faladas mais de 700 línguas diferentes. No território que é hoje o Brasil, eram
faladas mais de 1.300 línguas. O grau de intercomunicação entre elas é
variável. A diferença que pode haver entre a língua Macuxi e a Ingaricó, ambas
do tronco linguístico Karib, é comparável à diferença existente entre o
português e o espanhol, ou seja, é possível estabelecer um nível mínimo de
comunicação. No entanto, não é o que ocorre, por exemplo, entre a língua Makuxi
(Karib) e a Wapixana (Arauak); entre línguas de troncos diferentes, as
diferenças podem ser comparáveis a existente entre o alemão e o português.
Ninguém se
entende. É o caso, também, da língua Tupinambá, do tronco Tupi, e da língua
Goitaká, do tronco Macro-Jê, eram povos vizinhos no Rio de Janeiro, cujas
línguas não permitiam uma comunicação entre eles.
A dimensão
dessas diferenças linguísticas pode ser mais bem visualizada com um fato que
foi presenciado e filmado por Anete Amâncio, responsável pelo Serviço de
Documentação da Funai, em Manaus. Ela conseguiu organizar uma rica videoteca,
com filmes sobre diferentes grupos indígenas. Um deles é o resultado de uma
filmagem feita numa viagem de Boa Vista, em Roraima, para Santa Helena, na
fronteira com a Venezuela. Ela viu na beira da estrada uma índia. Parou o carro
e se aproximou já com a câmera ligada. A índia estava com uma criança no colo,
cantando uma belíssima canção de ninar. Anete filmou todo o canto, em uma
língua que para nós é incompreensível. Quando a índia terminou de cantar, Anete
pediu-lhe, em português, que traduzisse o significado das palavras. A índia
olhou, olhou, olhou silenciosamente para a câmera e depois falou algumas frases
na língua dela. Anete insistiu: "a senhora pode dizer o que significa em
português?”. Parece que ela achou que a Anete estivesse pedindo que cantasse
outra música, porque voltou a cantar. Quando terminou, a mesma pergunta foi
repetida: - O que significa, em português, a letra da canção? A senhora índia
não respondeu. Nisso, chega um senhor, um índio, e se apresenta. Era o marido
da índia, com quem convivia há 40 anos. Explicou olhando para a câmera que sua
mulher não podia responder, porque não falava nem entendia o português, era uma
índia Wapixana. Acriança no colo dela era sua neta. Então, Anete pediu que ele,
que falava português, traduzisse a letra da música: - Não posso, eu não entendo
a língua dela, o Wapixana. Eu sou Makuxi. - Então pergunte dela o que significa.
- Não adianta, ela não fala makuxi. - Então, como é que vocês, que vivem 40
anos juntos, se comunicam?
O Wapixana é
uma língua do tronco linguístico Aruak e o Makuxi de um outro tronco, o Karib.
São duas línguas muito diferentes. Quando vi o filme, fiquei pensando que esse
podia ser, ironicamente, o segredo de uma união matrimonial duradoura e
estável: falar línguas diferentes para não se comunicar. Mas, o índio Makuxi
informou que o casal se comunicou durante muito tempo através da mãe daquela criança
que estava no colo, a filha de ambos, que falava português, wapixana e makuxi.
Fiz um exercício de humor, imaginando que quando o casal brigava, a filha devia
traduzir outra coisa, para que os seus pais não se ferissem com palavras duras.
Suspeito que deve ter havido exagero no relato do índio, porque não é possível
que em 40anos de convivência, não tenham encontrado formas mínimas de se
compreender. De qualquer forma, o relato é uma bela metáfora para a situação
brasileira: nós precisamos funcionar como elo de comunicação, como ponte entre
as culturas tão diferentes que nos pariram, criando um exemplo vivo de diálogo
entre culturas, de interculturalidade. Exagerado ou não, o relato nos dá uma
ideia das diferenças culturais, que devem ser reconhecidas e respeitadas. Se
existem línguas tão diferentes e culturas tão diversas, não é correto
colocá-las todas no mesmo saco.
2.
O SEGUNDO EQUÍVOCO: CULTURAS ATRASADAS
A segunda
ideia equivocada é considerar as culturas indígenas como atrasadas e
primitivas. Os povos indígenas produziram saberes, ciências, arte refinada,
literatura, poesia, música, religião. Suas culturas não são atrasadas como
durante muito tempo pensaram os colonizadores e como ainda pensa muita gente
ignorante.
As línguas
indígenas, por exemplo, foram consideradas pelo colonizador, equivocadamente,
como línguas "inferiores”, "pobres”, "atrasadas”. Ora, os
linguistas sustentam que qualquer língua é capaz de expressar qualquer ideia,
pensamento, sentimento e que, portanto, não existe uma língua melhor que a
outra, nem língua inferior ou mais pobre que outra. As pessoas, no entanto,
confundem muitas vezes as línguas com os seus falantes. O que existe são
falantes que, na estrutura social, ocupam posições privilegiadas em relação aos
falantes de outras línguas, dando a falsa impressão de que suas línguas são
superiores, quando do ponto de vista estritamente linguístico, não existe
língua rica e língua pobre. Os proprietários de terra falam uma língua, os
sem-terra falam outra. Aí, os primeiros determinam que sua língua é superior a
dos segundos, o que não se sustenta cientificamente.
As religiões
indígenas também foram consideradas pelo catolicismo guerreiro, no passado,
como um conjunto de superstições, o que é uma estupidez siderúrgica. Basta
entrar em contato com as formas de expressão religiosa de qualquer grupo
indígena, para verificar que essa visão é etnocêntrica e preconceituosa. Desde
1992, tenho realizado visitas às aldeias dos índios Guarani Mbyá no Rio de
Janeiro. São três aldeias, lá na serra da Bocaina: uma no município de Angra
dos Reis e duas em Parati. Os Guarani foram considerados por alguns estudiosos
como "os teólogos da América”, devido à sua profunda religiosidade, que se
manifesta em todo momento, no cotidiano, penetrando nas diversas esferas da
vida. As próprias atividades econômicas aparecem muitas vezes como simples
pretexto para a realização de cerimônias. A colheita de produtos da roça pode
ser motivo para rezas e danças rituais. O ciclo econômico anual é, antes de
tudo, um ciclo de vida religiosa, que acompanha as diversas atividades de
subsistência. A religião é, assim, um dos mais importantes fatores de
identidade para os Mbyá. Em qualquer aldeia Guarani, a maior construção é
sempre a Opy - a Casa de Reza. Não possui janelas, apenas duas portas, uma
voltada para oeste, de frente para o pátio central e a outra para leste, na
direção do mar. O chão é de terra batida e o teto de folha de pindó. O
mobiliário é constituído por alguns bancos, uma rede e uma fogueira. Nas atuais
aldeias do Rio de Janeiro, a reza ou porahêi é realizada diariamente, todas as
noites, durante os 365 dias do ano, de forma comunitária, contando com a
participação de quase toda a aldeia. Começa por volta das 19 horas e vai até a
meia-noite, podendo algumas vezes estender-se até a manhã. O cacique toca
mbaracáe dirige as rezas, acompanhadas de cantos e danças. Não conheço nenhum
grupo dentro da população brasileira que reze mais do que os Guarani. Acho que
eles rezam mais do que todos os bispos reunidos numa assembleia geral da CNBB –
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil.
Os Guarani
Mbyá mantém fidelidade à religião tradicional, resistindo às investidas de
grupos evangélicos e de outras religiões. O cacique Verá Mirim, em depoimento
ao antropólogo Aldo Littaif, declarou, apontando para a Casa de Rezas:
"aqui é pra nossa reza, é pra se lembrar de Deus. Nós rezamos diretos com
nosso Deus, Ñanderú; católico já tem santo. Esse é o nome de nosso Deus,
Ñanderú”.
A
importância da religião Guarani pode ser avaliada através das palavras do
vicecacique, Luis Eusébio, que eu gostaria de ler para vocês. Ele disse:
"Se o Mbyá deixar a religião dele, a língua, vai começar a beber, faz
baile, tem briga com parente, casa com branco e desaparece a nação, morre o
índio”.
Segundo a
antropóloga francesa Hélène Clastres, a religião Guarani significa para os
índios a sua própria condição de sobrevivência, num mundo superpovoado pelos
brancos, uma vez que é a religião que ensina como conviver com os outros,
ensina a tolerância, a generosidade, a solidariedade e as estratégias de vida.
Quanto mais diminuem as diferenças de hábitos entre índios e brancos, no
cotidiano, maior força tem a religião, que passa a ser um fator decisivo de
diferenciação étnica.
O processo
colonial e a catequese fizeram tudo para acabar com as línguas e as religiões
indígenas. Não conseguiram. O padre João Daniel, um jesuíta que viveu na
Amazônia no século XVIII, faz um balanço desse processo num livro bonito que
ele escreveu: "Tesouro Descoberto no rio Amazonas”. Lá, ele conta que por
volta de 1750 um missionário espancou uma índia do Marajó com ‘bolos’ de
palmatória, dizendo: "Só paro de bater quando você disser ‘basta’, mas não
na tua língua”. Ela calou. Suas mãos sangraram, mas ela não traiu a língua-mãe.
Ele conta também o que os índios de uma aldeia do Pará faziam com os
escapulários distribuídos pelos missionários: colocavam nos pescoços dos
macacos domésticos para enfeitá-los. "A religião católica está pouco
‘intrinsicada’ no coração dos índios” – escreveu João Daniel. Hoje, no Brasil,
existem mais de 220 etnias, falando cerca de 188 línguas e praticando, muitos
deles, suas próprias religiões.
Considerar
essas religiões e línguas como "atrasadas” é produto, portanto, de extrema
ignorância, de quem não estudou o problema.
As ciências
indígenas também foram tratadas de forma preconceituosa pela sociedade
brasileira.
Os
conhecimentos indígenas foram desprezados e ridicularizados, como se fossem a
negação da ciência e da objetividade. Para combater esse equívoco, o Museu
Goeldi, em 1992, realizou uma exposição sobre a ciência dos Kayapó, mostrando a
importância dos saberes indígenas para a humanidade. Esta exposição documentou
o conhecimento sofisticado que os Kayapó produziram acerca de plantas
medicinais, agricultura, classificação e uso do solo, sistema de reciclagem de
nutrientes, métodos de reflorestamento, pesticidas e fertilizantes naturais,
comportamento animal, melhoramento genético de plantas cultivadas e
semi-domesticadas, manejo da pesca e da vida selvagem e astronomia. Um dos
organizadores da exposição, o antropólogo Darell Posey, explicou que existem
índios especialistas em solos, plantas, animais, colheitas, remédios e rituais.
Mas tal especialização não impede, no entanto, que qualquer Kayapó, seja homem
ou mulher, tenha absoluta convicção de que detém os conhecimentos e as
habilidades necessárias para sobreviver sozinho na floresta, indefinidamente, o
que lhe dá uma grande segurança. Vou pedir permissão a vocês para ler a
mensagem principal dessa Exposição, resumida na seguinte frase de Posey:
"Se o conhecimento do índio for levado a sério pela ciência moderna e
incorporado aos programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão
valorizados pelo que são: povos engenhosos, inteligentes e práticos, que
sobreviveram com sucesso por milhares de anos na Amazônia. Essa posição cria
uma ‘ponte ideológica’ entre culturas, que poderia permitir a participação dos
povos indígenas, com o respeito e a estima que merecem, na construção de um
Brasil moderno”.
Muitos
grupos indígenas realizaram experimentação genética com plantas, diversificando
e enriquecendo as espécies. Só aqui na região do rio Uaupés, afluente do rio
Negro (AM), uma pesquisadora americana, Janette Chernella, em 1986 identificou
137 cultivares diferentes de mandioca entre os índios Tukano.
Esses
conhecimentos, no entanto, não foram apropriados pela atual sociedade
brasileira, por causa da nossa ignorância, do nosso despreparo e do nosso
desprezo em relação aos saberes indígenas, os quais nós desconhecemos. O
preconceito não nos tem permitido usufruir desse legado cultural acumulado
durante milênios. Um especialista em biologia, citado pelo antropólogo francês
Lévi-Strauss, no seu livro "O Pensamento Selvagem” chama a atenção para o
fato de que muitos erros e confusões poderiam ter sido evitados, se o
colonizador tivesse confiado nas taxonomias indígenas, em lugar de improvisar
outras não tão adequadas.
Um desses
erros foi percebido no início de 1985, durante o sério acidente sofrido pela
usina nuclear de Angra dos Reis, construída num lugar que os índios Tupinambá
haviam denominado de Itaorna e que até hoje é conhecido por este nome. Nesta
área, na década de 1970, a
ditadura militar começou a construir a Central Nuclear Almirante Álvaro
Alberto. Os engenheiros responsáveis pela sua construção não sabiam que o nome
dado pelos índios podia conter informação sobre a estrutura do solo, minado por
águas pluviais, que provocavam deslizamentos de terra das encostas da Serra do
Mar. Só descobriram que Itaorna quer dizer "pedra podre”, em fevereiro de
1985, quando fortes chuvas destruíram o Laboratório de Radioecologia que mede a
contaminação do ar na região. O prejuízo, calculado na época em 8 bilhões de
cruzeiros, talvez pudesse ter sido evitado se não fossemos tão burros e
preconceituosos. O preconceito contra as línguas, as religiões e as ciências
produzidas pelos índios alcançou também as artes indígenas, sobretudo a
literatura. Os diferentes povos indígenas produziram uma literatura
sofisticada, que foi menosprezada porque as línguas indígenas eram ágrafas, não
possuíam escrita; e essa literatura foi passada de geração em geração através
da tradição oral. As várias formas de narrativa e de poesia indígena, por isso,
não são consideradas como parte da história da literatura nacional, não são
ensinadas nas escolas, não são reconhecidas e valorizadas pela mídia.
No século
passado e no início deste século, vários estudiosos recolheram no Pará e aqui
no Amazonas, uma literatura oral de primeiríssima qualidade. Um deles foi o
general Couto de Magalhães, que não era militar, era advogado e político,
nascido em Minas Gerais; acontece que ele recebeu a patente de general, porque
quando era presidente da província do Mato Grosso, comandou as tropas
brasileiras na guerra do Paraguai. Como vocês sabem, no Império, o Brasil
estava dividido em Províncias e não em Estados e quem governava as províncias
tinha o cargo de presidente e não de governador. Pois bem, Couto de Magalhães
foi presidente de três províncias: Mato Grosso, São Paulo e Pará. Ele não
tinha, em princípio, qualquer motivo para simpatizar com os índios e
compartilhava todos os preconceitos dos quais já falamos. No entanto, quando
viajou ao Pará, no barco ouviu um índio contando histórias, durante horas, para
uma plateia atenta de tripulantes, que ria e participava ativamente. Curioso,
Couto de Magalhães se aproximou e ouviu que falavam uma língua que ele não
entendia: o Nheengatu. Ele decidiu então aprender essa língua, só para conhecer
as histórias. Ficou apaixonado com a beleza da literatura indígena, ele diz que
é literatura de primeiríssima qualidade, equiparando-a à literatura grega.
Recolheu e registrou muitas histórias, como aquelas que têm por personagem o
jabuti. Essas narrativas tinham na verdade uma função educativa, de transmitir
valores, formas de comportamento. Couto de Magalhães comentou, em uma
observação muito inteligente, que um povo cuja literatura tem um personagem
como o jabuti, lento e feio, que consegue vencer outros animais belos e fortes
como a onça e o jacaré, só usando a astúcia, é um povo que tem civilização para
dar e vender. "Um povo que ensina que a inteligência vence a força, é um
povo altamente civilizado é um povo altamente sofisticado”, ele reconhece.
Outros
estudiosos ficaram também apaixonados pela literatura indígena no final do
século passado e no início desse século, como um nobre italiano, o conde
Stradelli. Ele veio para o Amazonas, morou aqui quase 40 anos, aprendeu o
Nheengatu – a língua geral falada no rio Negro e na época também no Alto
Solimões. Ficou apaixonado com os mitos, os contos, as poesias indígenas, e
recolheu e levou para publicar na Itália. Acabou morrendo leproso aqui em
Manaus e foi enterrado no cemitério de Paricatuba.
Outro que
andou encantado com a literatura indígena foi o Brandão Amorim, filho do
comerciante português Alexandre Amorim, que hoje é nome de rua no bairro de
Aparecida. Todo esse pessoal recolheu muitas narrativas, que infelizmente não
fazem parte ainda do nosso currículo escolar, o que faz com que os estudantes e
a população brasileira ignorem esse patrimônio cultural da humanidade, que é a
literatura indígena.
3.
TERCEIRO EQUÍVOCO: CULTURAS CONGELADAS
O terceiro
equívoco é o congelamento das culturas indígenas. Enfiaram na cabeça da maioria
dos brasileiros uma imagem de como deve ser o índio: nu ou de tanga, no meio da
floresta, de arco e flecha, tal como foi descrito por Pero Vaz de Caminha. E
essa imagem foi congelada. Qualquer mudança nela provoca estranhamento. Quando
o índio não se enquadra nessa imagem, vem logo a reação: "Ah! Não é mais
índio”. Na cabeça dessas pessoas, o "índio autêntico” é o índio de papel
da carta do Caminha, não aquele índio de carne e osso que convive conosco, que
está hoje no meio de nós.
O governador
Gilberto Mestrinho, por exemplo, para impedir a demarcação das terras
indígenas, veio com esse papo mole, que reforça preconceitos. Ele disse:
"esses aí não são mais índios, já estão de calça e camisa, já estão usando
óculos e relógios, já estão falando português, não são mais índios”. Ele criou
uma nova categoria, desconhecida pela etnologia: os ex-índios. Aí, se essa
lógica funciona, eu fico me perguntando se o Mestrinho não é, então, um
ex-brasileiro, porque o cotidiano dele está marcado por elementos tomados
emprestados de outras culturas.
Aliás, isto
acontece com todos nós. Você, por exemplo, está vestido com jeans, aliás muita
gente aqui está com um tipo de roupa que não foi inventada por nenhum
brasileiro. Estes móveis aqui também não são objetos "autênticos” da nossa
cultura. A mesa e a cadeira têm uma história que vem lá da Mesopotâmia, onde
foram projetadas no século VII a.C., passaram pelo Mediterrâneo sofrendo várias
modificações antes de chegarem a Portugal e depois ao Brasil. A forma de
construir em concreto também não é técnica brasileira. O computador não é
brasileiro, o telefone não é brasileiro, enfim toda essa parafernália que a
gente usa –os milhares de itens culturais presentes no nosso cotidiano- não tem
suas raízes em solo brasileiro. Então, o brasileiro pode usar coisas produzidas
por outros povos -computador, telefone, televisão, relógio, rádio, aparelho de
som, luz elétrica, água encanada- e nem por isso deixa de ser brasileiro. Mas,
o índio, se desejar fazer o mesmo, deixa de ser índio? É isso? Quer dizer, nós
não concedemos às culturas indígenas aquilo que queremos para a nossa: o
direito de entrarem em contato com outras culturas e de, como consequência
desse contato, mudar.
O escritor
mexicano Octávio Paz escreveu com muita propriedade que "as civilizações
não são fortalezas, mas encruzilhadas”. Ninguém vive isolado absolutamente,
fechado entre muros de uma fortaleza. Historicamente, cada povo mantém contato
com outros povos. Às vezes essas formas de contato são conflituosas, violentas.
Às vezes, são cooperativas, se estabelece o diálogo, a troca. Em qualquer caso,
os povos se influenciam mutuamente. O conceito que nos permite pensar e
entender esse processo é o conceito de interculturalidade.
E o que é a
interculturalidade? É justamente o resultado da relação entre culturas, da
troca que se dá entre elas. Tudo aquilo que o homem produz em qualquer cultura
e em qualquer parte do mundo - no campo da arte, da técnica, da ciência – tudo
o que ele produz de belo merece ser usufruído por outro homem de qualquer outra
parte do planeta. Os índios, aliás, estão abertos para esse diálogo. O problema
é que historicamente eles não escolheram o que queriam tomar emprestado, isto
lhes foi imposto a ferro e fogo. Então, historicamente, essa relação não tem
sido simétrica, não tem tido mão dupla, tanto na Amazônia, como no resto do
Brasil e da América. Ou seja, os índios não puderam ter liberdade de escolha,
de olhar o leque de opções e dizer: "nós queremos isso, nós queremos
trocar aquilo”. As relações foram assimétricas em termos de poder. Não houve
diálogo. Houve imposição do colonizador. Aquilo pelo qual nós brigamos hoje é
por uma interculturalidade, entendida como um diálogo respeitoso entre
culturas, de tal forma que cada uma delas tenha a liberdade de dizer:
"Olha! Isso nós queremos, isso nós não queremos”, ou então, "nós não
queremos nada disso”. É essa liberdade de transitar em outras culturas que não
concedemos aos índios, quando congelamos suas culturas.
Em novembro
do ano passado, a COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia
Brasileira - me convidou para assessorar uma assembleia de líderes indígenas
aqui em Manaus. Eu vim e encontrei um grande amigo meu, o Idjarruri, um índio
Karajá com quem eu havia convivido em 1992. Na hora de me despedir, eu disse:
"Olha só, a gente passou tantos anos sem ter notícias, não podemos mais
perder o contato. Como é que eu faço para te encontrar?” Eu pensava que ele
fosse me dar um número de um posto telefônico para deixar recado. Mas, ele
disse: "Anota aí: Idjarruri@karajá.com.br, ou coisa
semelhante, mas era o endereço na internet. Depois me deu seu celular. Nesse
caso, o computador e o celular são usados como armas defensivas para preservar
elementos de sua cultura.
Vocês devem
ter lido, em novembro do ano passado, uma excelente matéria sobre a escola
Waimiri Atroari, que saiu no jornal A Crítica, escrita pela Ana Célia Ossame,
com belíssimas fotos do Euzivaldo Queiroz, que mostram os índios, seminus,
usando um computador em uma escola –uma construção coberta de palha- combinando
o novo com o tradicional. A Ana Célia contou nessa reportagem, uma coisa que me
emocionou muito. Quando ela passou lá, no dia 30 de novembro, os índios estavam
em sala de aula, numa atividade escolar. Os índios Waimiri Atroari, há 40 anos
atrás, não falavam português e nem sabiam o que era escola. Eles tinham outras
instituições encarregadas de transmitir saber, ciências, artes e literatura,
que era a tradição oral. No contato com a sociedade brasileira, eles decidiram
criar uma escola, para aprender português como segunda língua, da mesma forma
que a gente aprende o inglês, para poder sobreviver e entrar em contato com o
mundo. O brasileiro aprende o inglês, não para substituir o português, mas para
desempenhar outras funções. Assim também os índios aprendem o português, não
com o objetivo de eliminar suas próprias línguas, que continuam com a função de
comunicação interna, mas para se comunicar para fora.
Bom! Para
aprender o português e ser alfabetizado, as instituições tradicionais indígenas
não dão conta do recado. É preciso pedir emprestado uma instituição da
sociedade brasileira: a escola que, aliás, não foi inventada por nenhum
brasileiro, foi também importada. Os Waimiri Atroari construíram, então, uma
escola, um enorme malocão de forma circular, sem portas, onde você pode entrar
e sair na hora em que quiser. Não sei se vocês viram, se alguém viu, as fotos
daquela construção Waimiri Atroari. Parece uma catedral, toda de palha, com um
poste central subindo,subindo bem alto. As fotos mostram ainda as carteiras
dispostas uma atrás da outra, como nas nossas escolas, o que é discutível do
ponto de vista pedagógico. Os alunos, seminus, estão sentados com cadernos,
livros, lápis e caneta para escrever. Eles estavam lá, sem camisa, sem
uniforme: uma escola sem farda, sem horário fixo, sem currículo rígido. Olha só
que coisa maravilhosa! Quando os jornalistas passaram por lá, o professor
estava no quadro, dando aula de alfabetização em Waimiri Atroari. De repente,
alguém gritou: "Olha a paca!” Aí o professor deu um assobio e -vamos lá
moçada– aí ele saiu com os alunos, e naquele momento a aula deixou de ser de
alfabetização para se transformar em aula de caça tradicional.
Diante desse
fato, fiquei pensando o seguinte: como professor -eu sou professor normalista
formado pelo Instituto de Educação do Amazonas, professor de primeiro e segundo
grau e professor universitário- quantas e quantas vezes, eu fiquei com vontade de
sair atrás da caça. Lembro um dia em que senti isso muito forte. Eu estava
dando uma aula na UERJ, na mesma hora em que estava havendo uma palestra do
João Saldanha. Não sei se vocês conheceram o Saldanha, um comentarista
esportivo, que foi técnico da Seleção Brasileira e militante do Partido
Comunista. Tinha um papo muito agradável e sedutor, conhecia muito a cultura
popular e era um excelente contador de histórias. Eu estava dando aula no 10º
andar e ele com sua palestra no 9º andar. Eu estava querendo ouvi-lo, mas tinha
que dar a minha aula e não tive coragem de chegar para os alunos e dizer:
"vamos todo mundo para lá, que está muito mais interessante”. O Saldanha
era a caça que estava passando lá fora. Meses depois, ele morreu. Os alunos e
eu não podemos mais ouvi-lo. Por isso, aprendi com os índios. Agora, corro
atrás da paca.
O
interessante, porém, a ressaltar aqui é que quando os índios tomam uma
instituição emprestada, como a escola, eles dão outro significado, criam outras
formas de usar essa instituição, fazendo com que repensemos a prática escolar
na nossa sociedade. Este exemplo da escola Waimiri-Atroari é bem ilustrativo de
como a interculturalidade não é apenas uma mera transferência de conteúdo de
uma cultura para outra. A interculturalidade é uma construção conjunta de novos
significados, onde novas realidades são construídas sem que isso implique
abandono das próprias tradições.
Concluindo
esse tópico, podemos dizer que a cultura brasileira muda, a chinesa muda, a
americana muda, todas as culturas mudam. As culturas indígenas também mudam, e
isto por si só não é ruim, não é algo necessariamente negativo. Não é ruim que
mudem, o ruim é quando a mudança é imposta, sem deixar margem para a escolha.
4. QUARTO
EQUÍVOCO: OS ÍNDIOS PERTENCEM AO PASSADO
O quarto
equívoco consiste em achar que os índios fazem parte apenas do passado do
Brasil.
Num texto de
1997 sobre a biodiversidade vista do ponto de vista de um índio, Jorge Terena
escreveu que uma das consequências mais graves do colonialismo foi justamente
taxar de "primitivas” as culturas indígenas, considerando-as como
obstáculo à modernidade e ao progresso. Vou ler para vocês que ele escreveu:
"(Eles) vêem a tradição viva como primitiva, porque não segue o paradigma
ocidental. Assim, os costumes e as tradições, mesmo sendo adequados para a
sobrevivência, deixam de ser considerados como estratégia de futuro, porque são
ou estão no passado. Tudo aquilo que não é do âmbito do Ocidente é considerado
do passado, desenvolvendo uma noção equivocada em relação aos povos
tradicionais, sobre o seu espaço na história”.
Os índios, é
verdade, estão encravados no nosso passado, mas integram o Brasil moderno, de
hoje, e não é possível a gente imaginar o Brasil no futuro sem a riqueza das
culturas indígenas. Se isto por acaso ocorresse, o país ficaria pobre, muito
pobre, e feio, muito feio, igual ao bairro Amarelo. Para ilustrar este tópico,
pode ser interessante contar para vocês o que aconteceu com o bairro Amarelo,
um grande conjunto habitacional localizado em Hellesdorf, no norte da ex-Berlim
Oriental, na Alemanha.
Em 1985, o
Governo alemão construiu um conjunto habitacional tipo BNH, em Berlim. Eram
blocos pré-moldados de 5 a
6 andares, uns caixotões de concreto pré-fabricados, com uma fachada pintada de
um amarelo duvidoso de diarreia. Era muito pior que o conjunto Eldorado, ali no
Parque Dez. Cerca de dez mil pessoas de baixa classe média moravam lá, em 3.200
apartamentos. Os moradores reclamavam muito, depois do trabalho não tinham
vontade de voltar para casa, porque achavam o bairro feio, o lugar horrível,
pesado e triste. Quando caiu o muro de Berlim, em 1989, a cidade passou por
um processo de reforma urbana sem precedentes. O Instituto de Urbanismo de
Berlim colocou 50 milhões de dólares para dar uma melhorada, uma
"guaribada” no bairro. Chegaram com os moradores e disseram: "a gente
quer mudar o bairro de vocês, mas a gente quer saber com que cara vocês querem
que ele fique”. Os moradores se reuniram, discutiram e concluíram: "nós
queremos que nosso bairro tenha a cara da América Latina que é bonita e
alegre”. Foi feita a licitação e se apresentaram mais de 50 escritórios de
arquitetura da América Latina. Ganhou um escritório brasileiro de São Paulo –
Brasil Arquitetura. Aí os arquitetos foram lá, conversar com o pessoal do
bairro. O bairro tinha várias entradas diferentes. A primeira proposta deles
foi construir jardins e colocar algumas esculturas de artistas plásticos
brasileiros nessas entradas de acesso. Depois discutiram sobre a reforma nas
fachadas dos edifícios, com a qual os moradores implicavam. Os moradores
pediram: "nós queremos que sejam colocados azulejos com arte indígena, com
desenhos dos índios”. Bom, se os arquitetos andassem 5 km, iam chegar no Museu Etnográfico
de Berlim, onde existem milhares de obras de arte indígena, com desenhos em
todo tipo de suporte: em cerâmica, tecido, palha e até em papel. No entanto, o
que se queria não era arte indígena do passado, mas arte indígena de hoje,
contemporânea. Os arquitetos decidiram sair atrás de desenhos novos, atuais,
com uma série de dúvidas: será possível encontrá-los, depois de 500 anos de
contato, do saqueio colonial, do trabalho compulsório, dos massacres, das
missões, das invasões de terras, das estradas, dos colonos, dos garimpos, das
frentes extrativistas, das hidrelétricas, dos grandes projetos? Os índios não
teriam perdido suas fontes de inspiração? Em muitas sociedades indígenas, as
tigelas e potes de cerâmicas foram substituídos por peças de alumínio e
plástica, as indumentárias e adornos tradicionais foram trocados pelo vestuário
ocidental: em que medida este fato afetou a expressão artística tradicional?
Hoje, no
Brasil, existem mais de 200 povos indígenas, quase todos eles produzindo artes
gráficas. Os arquitetos Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz, responsáveis pelo
projeto de remodelação das fachadas, acabaram optando pelos Kadiweu, cujos
desenhos consistem em figuras geométricas abstratas. Como a pintura Kadiweu é
tarefa exclusiva da mulher, os dois arquitetos realizaram concurso entre as
índias da aldeia Bodoquena, no Mato Grosso do Sul. Mandaram para a aldeia um
lote de papel cortado no tamanho estabelecido, as instruções sobre as cores e
canetas hidrográficas. Noventa e três índias, de 15 a 92 anos de idade,
realizaram três propostas cada uma. O resultado agradou a todo mundo. Os
arquitetos selecionaram, num primeiro momento, 300 estampas coloridas,
exclusivas, criadas pelas índias, e depois escolheram seis delas como
vencedoras do concurso. No dia 19 de junho de 1998, essas estampas,
transformadas em azulejos, foram inauguradas nas fachadas dos blocos do Bairro
Amarelo, alegrando-o, humanizando-o, tornando-o mais belo, habitável e
civilizado, facilitando a convivência e a comunicação entre os seus moradores.
A aldeia Bodoquena ganhou, por esse trabalho civilizatório, 20 mil marcos
alemães e mais passagens e estadias de dez dias para as seis índias, artistas
Kadiweu, que estiveram presentes na festa de inauguração.
A reforma
urbana de um conjunto habitacional de Berlim com desenhos Kadiweu mostra os
equívocos da concepção evolucionista ultrapassada que considera as experiências
das sociedades indígenas no campo da arte e da ciência como primitivas,
pertencentes à infância da humanidade, sem lugar no tempo presente. Ele serve
também para exemplificar como um bem cultural pode adquirir novos usos e novas
significações, se nele é investido um novo trabalho cultural. Serve ainda para
formularmos algumas perguntas inquietantes: Por que um povo, como o alemão,
possuidor de um expressivo patrimônio artístico próprio, busca melhorar sua
qualidade de vida, lançando mão de elementos atuais das culturas indígenas?
Será que moradores de bairros de qualquer capital brasileira tomariam decisão
semelhante? Por que não? Os portugueses, primeiro, e depois os brasileiros,
durante cinco séculos acreditaram que os índios eram atrasados e que
portugueses e brasileiros representavam a civilização. Portanto, a nossa
obrigação era civilizá-los, ou seja, fazer com que eles deixassem de ser índios
e passassem a ser como nós. Ocorreu um verdadeiro massacre durante esses 500
anos, com o extermínio de muitas etnias. Os índios ficaram relegados, como
pertencentes a um passado incômodo e distante do Brasil.
Esta
situação, do ponto de vista legal, foi modificada, com a Constituição
brasileira de 1988, graças às organizações dos índios, a um trabalho importante
do CIMI, ao apoio dos aliados dos índios –antropólogos, historiadores,
professores- que conseguiram impor o reconhecimento por parte do estado
brasileiro da existência hoje dos índios e desses dois pontos básicos: 1º - que
os índios são diferentes; 2º - que não se trata apenas de tolerar essa
diferença; mas de estimulá-la. Essa diferença, considerada no passado como
atentatória à segurança nacional, hoje está sendo percebida como um elemento
altamente enriquecedor da cultura brasileira.
Em 1980,
entrevistei um índio Shuar para o jornal Porantim. O Shuar é um povo que vive
uma parte no Equador e outra parte no Peru. Eles decidiram criar uma Rádio
Shuar. É um rádio bilíngue, que transmite uma parte da programação em espanhol,
e a outra em língua shuar: literatura, música, poesia, tudo em língua Shuar.
Pois bem, entrevistei o líder Ampam Krakas e perguntei dele em portunhol: -
"Cuál es tu Patria?” Ele me respondeu: - "Mi pátria grande es el
Ecuador y mi patria chica es el Shuar”. Nesta resposta está a síntese do que os
índios representam em termos de presente e de futuro: essa relação com o Estado
brasileiro e com a identidade nacional, com a pátria grande, não deve anular a
pátria pequena, pequena em termos numéricos, mas não em termo de qualidade.
Para o Brasil, para o futuro de nossos filhos e netos, é importante que essas
"pátrias pequenas” continuem existindo. Elas representam a riqueza da
diversidade cultural de nosso país.
5.
O QUINTO EQUÍVOCO: O BRASILEIRO NÃO É ÍNDIO
Por último,
o quinto equívoco é o brasileiro não considerar a existência do índio na
formação de sua identidade. Há 500 anos não existia no planeta terra um povo
com o nome de povo brasileiro. Esse povo é novo, foi formado nos últimos cinco
séculos com a contribuição, entre outras, de três grandes matrizes:
1. As
matrizes europeias, assim no plural, representadas basicamente pelos
portugueses, mas também pelos espanhóis, italianos, alemães, poloneses, etc.;
2. As
matrizes africanas, também no plural, da qual participaram diferentes povos
como os sudaneses, yorubás, nagôs, gegês, ewes, haussá, bantos e tantos outros;
3.
Finalmente, as matrizes indígenas, formadas por povos de variadas famílias
linguísticas como o tupi, o karib, o aruak, o jê, o tukano e muitos outros.
Depois, as
migrações de outros povos como os japoneses, os sírio-libaneses, os turcos,
vieram diversificar e engrandecer ainda mais a nossa cultura. No entanto, como
os europeus dominaram política e militarmente os demais povos, a tendência do
brasileiro, hoje, é se identificar apenas como vencedor – a matriz europeia –
ignorando as culturas africanas e indígenas. Isso reduz e empobrece o Brasil,
porque você acaba apresentando aquilo que é apenas uma parte, como se fosse o
todo.
Foi o que
fizeram na comemoração dos 400 anos do Brasil. Essas comemorações são
importantes, porque revelam aquilo que o país quer lembrar e aquilo que o país
quer esquecer. Então, no dia 4 de maio de 1900, ocorreu a Sessão Magna do
Quarto Centenário do Brasil. A abertura do evento foi feita por Paulo de
Frontin (1860-1933), engenheiro e político carioca, que ficou conhecido em todo
o Brasil, por haver ampliado o potencial de abastecimento de água do Rio de
Janeiro, que era a capital do Brasil. Anos depois, ele se tornou prefeito do
Rio de Janeiro. Foi duas vezes senador e se tornou patrono da Engenharia
Brasileira. Ouçam o que ele disse no discurso de abertura do Quarto Centenário
do Brasil. Vou ler as palavras dele, que estão entre aspas, escritas aqui com a
ortografia da época: "O Brasil não é o índio; este, onde a civilização
ainda não se extendeu, perdura com os seus costumes primitivos, sem
adeantamento nem progresso. Descoberto em 1500 pela frota portugueza ao mando
de Pedro Alvares Cabral, o Brasil é a resultante directa da civilização
occidental, trazida pela immigração, que lenta, mas continuadamente, foi
povoando o sólo”.."A religião, a mais poderosa fôrça civilizadora da
epocha, internou-se pelos longínquos e ínvios sertões brasileiros e, sob o
influxo de Nóbrega e Anchieta, conseguiu assimilar número considerável de
aborígenes, que assim se incorporaram à nação Brasileira. Os selvícolas,
esparsos, ainda abundam nas nossas magestosas florestas e em nada differem dos
seus ascendentes de 400 anos atrás; não são nem podem ser considerados parte
integrante da nossa nacionalidade; a esta cabe assimilá-los e, não o
conseguindo, eliminá-los”.
Foi isso
mesmo que você ouviu. Tirei do "Livro do Centenário (1500-1900): Sessão
Magna do Centenário no dia 4 de Maio de 1900. Associação do Quarto Centenário
do Descobrimento do Brasil” (Rio de Janeiro. Imprensa Nacional. 1910. Pg. 187).
Que horror! Nos quatrocentos anos do nosso país, na abertura da comemoração
oficial, uma autoridade diz que os índios "não podem ser considerados
parte integrante da nossa nacionalidade”, e propõe que se o Brasil "não
conseguir assimilá-los deve ELIMINÁ-LOS”.
O índio, no
entanto, não foi "eliminado” nem "assimilado”. Suas culturas se
modificaram da mesma forma que a brasileira, a portuguesa ou qualquer outra
cultura. No entanto, hoje, além de mais
de 220 povos viverem falando suas línguas, mantendo organizações sócio-politicas
próprias, o índio permanece vivo dentro de cada um de nós, mesmo que a gente
não saiba disso. Não é só dentro do amazonense, cujas raízes indígenas são
muito recentes. Olha a Vera Fischer, loura, de olhos azuis, filha de uma
migração recente. Não seria exagerado afirmar que a Vera Fischer é tão negona
quanto uma passista da escola de samba ou tão índia quando uma caboca vendedora
de tacacá, e isso porque a negritude e a indianidade não é marcada pela cor da
pele, pelo tipo de cabelo, pela forma do nariz. Não é uma questão genética, é
uma questão cultural, histórica. Na hora em que aquele descendente de um alemão
lá de Santa Catarina, louro e do olho azul, começar a rir - como é que ele vai
rir? Do que é que ele vai rir? Na hora de sentir medo – ele vai sentir medo de
quê? De onde saem seus fantasmas? Com quem ele sonha? Quando tiver que fazer
suas opções culinárias, de música, de dança, de poesia, de onde é que saem os
critérios de seleção? Quando fala uma variedade regional do português, de onde
veio essa forma de falar? É aí que afloram as heranças culturais, as marcas
indígenas e negras, ao lado das europeias.
"No
Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é” – disse um grande antropólogo
brasileiro, Eduardo Viveiros de Castro. Ele disse isso num contexto em que os
arrozeiros que ocuparam a terra indígena Raposa Serra do Sol queriam que os
índios Makuxi, Wapixana, Taurepang Ingarikó provassem que eram índios.
Vou concluir
lembrando um fato real que me foi contado pelo escritor português Antônio
Alçada. Ele estava fazendo turismo na Grécia com um grupo de amigos
portugueses, lá numa daquelas ilhas gregas. Estava em pé, parado, conversando
com esses amigos, quando passou um grupo de turistas japoneses, carregados de
máquinas fotográficas. Até aí nada demais, porque tem turista japonês em
qualquer biboca do mundo. Enquanto os turistas japoneses prosseguiram seu
caminho, um deles parou diante do grupo lusitano, ficou olhando e ouvindo os
portugueses por alguns minutos, depois se aproximou e perguntou num perfeito
português com sotaque paulista: "Desculpa. Eu sou brasileiro. Vocês são
portugueses?” O Antônio Alçada respondeu: "Somos”. O "japonesinho” de
São Paulo, então, deu um logo e estridente assobio para o grupo dele que havia
se distanciado. Todo mundo virou a cabeça para trás e ele gritou: "Ei,
pessoal! Venham aqui que eu encontrei um grupo dos nossos antepassados”. O
escritor português contou que sentiu uma sensação estranha e pensou: "Eu?
Antepassado desses japoneses? Como? Se os pais deles deviam estar numa ilha, lá
no Japão, na geração anterior, e não têm nada que ver comigo”. Acontece que
tem, porque nesse caso o imigrante que chega aqui no Brasil acabou assumindo
acultura e a história do país, embora muitos deles mantenham suas ‘pátrias chicas’.
Desta forma, assumiu um passado que não é dele individualmente, nem de sua
família, mas é coletivo, da nação, do povo ao qual ele agora pertence, mesmo
mantendo algumas das particularidades da cultura de origem. Nesse sentido, é
claro que o imigrante, muitas vezes bilíngue, que fala a língua de seus pais, mas
aprendeu o português e se tornou brasileiro, pode ver num português o seu
antepassado histórico. A questão que se coloca é se esse mesmo
"japonesinho de São Paulo” teria a mesma reação diante de um grupo de
índios ou de negros. Ele costuma reivindicar apenas a matriz europeia, que nos
deu a língua que falamos e que marcou inapelavelmente nossa cultura, e da qual
temos motivos para nos orgulhar. No entanto, seria recomendável que ele
conhecesse e tivesse orgulho da contribuição dos povos indígenas e das
diferentes culturas africanas que também e tão bem marcaram a nossa forma de
ser. Mas ele está marcado pelo discurso dominante, ignorante e boçal, como o de
Paulo de Frontin, que se envergonha dessas matrizes e pretende eliminá-las.
O que deve
ser eliminado é esse tipo de discurso. Esses não são os únicos equívocos que
cometemos em relação aos índios e a nós mesmos, mas, talvez sejam aqueles que
mereçam urgentemente ser discutidos. Então, vamos ao debate. Muito obrigado.
Notas:
(1) Palestra
proferida no dia 22 de abril de 2002 no curso de extensão de gestores de
cultura dos municípios do Rio de Janeiro, organizado pelo Departamento
Cultural. Parte dela havia sido tema de uma conferência em 22 de março de 2000,
gravada e transcrita pelo Centro de Estudos do Comportamento Humano (Cenesch),
de Manaus (AM). Decidimos manter, no texto escrito, as marcas da oralidade,
para preservar a estrutura do texto original. As duas instituições – UERJ e
CENESCH – publicaram o artigo em suas respectivas revistas. FREIRE, J.R. Bessa.
Cinco idéias equivocadas sobre o índio. In Revista do Centro de Estudos do
Comportamento Humano (CENESCH). Nº01 – Setembro 2000. P.17-33. Manaus-Amazonas.
FREIRE, J.R. Bessa. A herança cultural indígena: quem são os herdeiros?. In
CONDURU, R. e SIQUEIRA, V. B – Políticas públicas de Cultura do Estado do Rio
de Janeiro.Rio. Sirius/FAPERJ. 2003. Esta última versão, preparada em 2009, com
algumas mudanças e acréscimos, é o resultado das oficinas realizadas com
professores da rede pública de ensino para a implementação da Lei 11.645 de
março de 2008, uma delas em Japeri, em parceria com o professor Aloísio
Monteiro da UFRRJ.
*José Ribamar Bessa Freire, Professor da Faculdade de Educação da UERJ e coordenador,
desde 1992, do Programa de Estudos dos Povos Indígenas. Professor do Programa
de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro –UNI-Rio - Adital
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