Por Arthur Soffiati
Ecohistoriador e Ambientalista
A separação entre o ser que pensa, que conhece e que nomeia e o ser que não pensa, não conhece e não nomeia já está bem definida no "Livro do Gênesis", o primeiro da "Bíblia". O ser pensante é o escolhido de Deus para conhecer e nomear os outros seres, que, por não pensarem, são nomeados. O ser eleito por Deus é o Homem e os seres nomeados são todos os outros seres, vivos e não-vivos. Assim, o Homem é o sujeito do conhecimento, e os demais seres, objeto desse conhecimento. Por suas singularidades, o Homem não apenas pensa, conhece e nomeia, senão que tem o direito de explorar os outros seres em seu benefício.
Judaístas, cristãos e muçulmanos afirmam, atualmente, que a interpretação acima está equivocada. Que o Homem não é o dominador da natureza, mas sim o seu mordomo e zelador. Trata-se de interpretação recente, influenciada pelas concepções do novo paradigma naturalista organicista e dos ecologistas. Mesmo assim, ela não foi assimilada pela esmagadora maioria dos seguidores das três religiões monoteístas abraâmicas. A bem dizer, ela se limita a pensadores e teólogos progressistas. A verdade é que o princípio religioso e filosófico do Homem dominador da natureza impregnou profundamente a filosofia ocidental. Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino, Francis Bacon, Isaac Newton, René Descartes, os pensadores liberais e Karl Marx banham-se nessa tão antiga concepção.
Descartes, por exemplo, aprofunda a separação entre Homem e natureza, sustent ando que os seres vivos, inclusive o Homem, são máquinas. Contudo, enquanto os seres vivos são máquinas não pensantes, o Homem é um autômato que pensa. O que garante a existência é a capacidade de pensar. E aquele que pensa ("res cogitans" ou a coisa que pensa) tem direito de dominar a coisa que não pensa ("res extensa"). Assim, o humanismo ocidental se transformou em antropocentrismo, concepção filosófica que situa o Homem no centro do Universo. Para os religiosos, ele é o centro, porém depois de Deus. Para os não-crentes, o Homem está acima de tudo. Portanto, religiosos, agnósticos e ateus têm um ponto em comum: o antropocentrismo. Falo aqui dos agnósticos e ateus clássicos.
Mas não suponha o leitor que, pelo simples fato de pensar, qualquer ser humano é sujeito. Segundo Descartes, o pensamento requer o conhecimento da matemática e a adoção de um método. Podemos assim concluir que só alguns privilegiados pensadores existem. Embora o filósofo francês tenha esclarecido que sua filosofia era válida para o europeu e para o turco, sendo esta segunda palavra sinônima de humanidade, a maioria dos seres humanos estava excluída da condição de sujeito por não pensar em consonância com a matemática e com o método correto.
Com Charles Darwin, no século XIX, a crítica à filosofia cartesiana se aprofunda. Uma sensação incômoda começa a invadir o antropocentrismo: se existe uma separação absoluta entre Homem e natureza, como o Homem tem raízes naturais em função do processo evolutivo? Antes mesmo que Darwin publicasse "A origem das espécies", em 1859, Voltaire já criticava a concepção dos animais como máquinas, e Jeremy Bentham, pensador liberal, escrevia que homem e animal têm algo em comum. O primeiro pode pensar e o segundo não, mas ambos sentem dor e sofrem.
No século XX, os avanços da biologia, notadamente na etologia, bombardeiam o antropocentrismo. Ernst Cassirer, filósofo alemão, ainda tenta salvar a condição singular da humanidade, afirmando que a diferença entre Homem e animal consiste no fato de que o primeiro é simbólico, ou seja, é capaz de produzir cultura, enquanto que o segundo é incapaz de atingir este patamar.
O paradigma mecanicista continua impregnado no ser humano ocidentalizado, agora de forma prática. Por outro lado, emerge um novo paradigma, que poderíamos chamar de naturalista organicista contemporâneo. Em lugar do "penso, logo existo", coloca-se agora o "computo, logo existo". Computar é processar as informações e transformá-las em conhecimento para a vida. Todos os seres vivos - unicelulares ou pluricelulares - computam. Logo, todos podem ser considerados sujeitos e objetos. Sujeitos pelo ato de computar; objetos por poderem ser conhecidos. Expoente do novo naturalismo, o pensador francês Edgar Morin escreve num de seus livros: "O que evidentemente Descartes ignorava, e o que des conhecem as filosofias do sujeito, é que é necessário trivializar esta noção de sujeito e atribuí-la democraticamente a todos os seres vivos, inclusive à bactéria."
A partir desta premissa, urgem uma nova epistemologia e uma nova ética. Os conceitos de próximo, de irmão e de sujeito se estendem a todos os seres vivos. E o grande salto consiste em estender o conceito de sujeito a todos os fenômenos da natureza, mesmo que se trate de um sujeito inconsciente e até irracional.
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