segunda-feira, 11 de abril de 2011

Hegemonias e emancipações no século XXI[1]

ANA ESTHER CECEÑA

INTRODUÇÃO

A Terra voltou a ser povoada com seus mortos mais antigos. Ressuscitaram de seus ossos, utensílios e pinturas rupestres e vivem em nossa imaginação como os egípcios e cartagineses viviam na dos homens do século passado.
Elias Canetti, 1981

Os HISTORIADORES apontam as mudanças de Século como importantes momentos de reajuste no funcionamento das sociedades. Se fosse assim, isso contribuiria para entendermos as profundas transformações que acompanharam a mudança de milênio. Em todo caso, a história dos últimos trinta anos efetivamente está marcada por uma simultaneidade de processos que, em conjunto, parecem abrir caminhos para uma série de bifurcações civilizatórias, como as chama Immanuel Wallerstein[2]. Na perspectiva histórica dos modos de organização social -ou dos modos de produção-, o capitalismo, apesar de suas incessantes realizações, parece estar entrando no ocaso; as culturas supostamente mortas ou sistematicamente arrasadas emergem com uma forca moral equiparável a deslegitimarão da sociedade do progresso (Berger).
Tendo em mente as experiências do passado, particularmente o doloroso nascimento da sociedade burguesa, é provável que o ocaso capitalista não somente continue sendo cenário de episódios violentos da maior crueldade, como também de momentos de renovado esplendor e de reconstrução relativa de uma legitimidade que, não obstante, cada vez tem menos substância. De qualquer maneira, a temporalidade deste ocaso é incerta e esta relacionada com a ação dos sujeitos ou, como diz Foucault, com o acaso da luta.
Se a luta de classes é o motor da história, como indicava Marx, não há determinismos. As condições objetivas são apenas o marco de possibilidade imediata dos sujeitos que, voluntariamente ou não, contribuíram para criá-las[3]. Assim, as condições para a manutenção de um sistema de dominação como o atual derivam não somente da concentração de meios que permitem organizar a modo a reprodução coletiva, mas, sobretudo, da convicção de que esses meios são alheios e sustentam um poder inapelável, além da conseqüente naturalização do modo de organização social. O poder e a dominação são expressões particulares de um certo tipo de relação intersubjetiva, evidentemente díspar, que tem de ser resolvida no terreno da interlocução. Enquanto existirem dominados continuarão existindo dominadores ou, nas palavras de Ret Marut e Bruno Traven:
O capitalista ri das tuas greves. Mas no dia em que envolveres teus pés com velhos trapos, em vez de comprar sapatos e meias, seus orgulhosos membros tremerão de medo (Marut e Traven, 2000: 126).
A terra nodal no terreno das hegemonias e emancipações não é somente a dominação, não é somente, nem sempre, a força física -que, afinal, pode ser enfrentada em seu próprio terreno- e sim, como indicava Gramsci, a capacidade de gerar uma concepção universal do mundo a partir dela mesma, de dominar através do consenso e de reproduzir as formas de dominação nos espaços dos dominados. Isto é o que faz Foucault dizer:
[O] poder, se o olhamos de perto, não e algo que se divide entre os que o retêm como propriedade exclusiva e os que não o têm e o sofrem. O poder é, e deve ser analisado, como algo que circula e funciona -por assim dizer- em cadeia (Foucault, 1996: 31).
O poder funciona e se exerce através de uma organização reticular. E nas suas malhas os indivíduos não apenas circulam, como estão postos na condição de sofrê-lo e exercê-lo; nunca são o alvo inerte ou cúmplice do poder, são sempre seus elementos de recomposição (Foucault, 1996: 32).
Dominação, hegemonia, legitimidade, sistema de poder, império, imperialismo, contra-hegemonia, emancipação, são referentes teóricos que é necessário ressignificar, precisar, enriquecer ou delimitar para que enfrentemos a realidade do conflito social no milênio que começa tanto com a irrupção do movimento zapatista em Chiapas -um dos lugares mais sulistas do Sul metafórico que Boaventura de Sousa situa como "o sofrimento que o ser humano padeceu sob o sistema capitalista globalizado" (Sousa Santos, 2003: 36)-, como com o ataque às torres gêmeas de Nova York ou as invasões do Afeganistão, Iraque, Timor Leste ou Haiti.
Uma das preocupações centrais do Grupo de Trabalho Hegemonias e emancipações do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais, CLACSO -e deste livro- é justamente contribuir para a reapropriação conceitual, que, ao mesmo tempo em que ressignifica velhas categorias, cria outras novas, ou novos modos de entender e interpelar a realidade. Segundo John Berger, "O ato de escrever [ou de investigar, como podemos dizer] não a nada mais do que o ato de se aproximar da experiência sobre a qual se escreve" (Berger, 2001: 23).
Se partimos do reconhecimento deste fim de milênio como o universal concreto no qual se unem, se cruzam e se dissociam processos, isto é, na qualidade de pondo crítico de síntese de uma realidade caótica e complexa, na qual se originaram os novos caminhos de uma história de histórias na qual os sujeitos em ação introduzem suas próprias pautas e epistemologias, qual é a pertinência de trabalhar com conceitos como hegemonia e estratégia? Que conteúdo especifico concedemos à hegemonia? Qual é a relação entre hegemonia e estratégia? Como lidar com as temporalidades históricas na análise da hegemonia? Quais são os critérios de avaliação do estado da hegemonia? Quais são seus suportes? Qual e a territorialidade da hegemonia e como se constrói? Quais são seus mecanismos privilegiados? É possível falar de projeto hegemônico? Que lugar ocupa o econômico na construção de hegemonia? E o militar? São criadores de uma concepção de mundo?
Numa sociedade instável desde a origem, como a capitalista, é possível falar de hegemonia, ou temos que introduzir a competição e o conflito, recuperando os processos de disputa pelo poder e de construção de hegemonias alternativas? Seriam estas disputas internas, ou rupturas civilizatórias? Qual o estatuto teórico de cada uma delas? Que sentido e pertinência analítica e política têm os estudos sobre hegemonia? Quais as virtudes do enfoque geoestratégico para a apreensão do capitalismo contemporâneo? Em que medida a transformação do real apela para uma subversão do pensamento, dos esquemas conceituais e das perspectivas situacionais?
Isto significa que transferir o centro da análise das relações de exploração para as relações de dominação implica incorporar todas as dimensões da vida social e transcender a esfera do trabalho. Isto evidentemente tem fortes repercussões no terreno da análise, pois exige a construção de conceitos transdisciplinares (Morin, 1990) com uma capacidade explicativa de amplo espectro.
O Grupo de Trabalho Hegemonias e emancipações concebe as relações sociais como relações entre sujeitos, e busca delimitar em seu próprio âmbito suas expressões capitalistas objetivadas: capital, força de trabalho, etc. Isto obriga a colocar em primeiro plano a construção de subjetividades e a reprodução e/ou subversão das relações sociais: os limites da dominação capitalista estão marcados pela potência criativa e libertadora dos sujeitos num determinado contexto que, por outro lado, modifica-se com sua ação.
Por conseguinte, estudar a hegemonia tem um propósito mais do que acadêmico, que nos permite compartilhar de uma perspectiva emancipadora como a de Foucault:
A história, genealogicamente dirigida, não tem como fim reencontrar as raízes de nossa identidade, mas, ao contrario, se obstinar em dissipá-la; ela não pretende demarcar o território único de onde nos viemos, essa primeira pátria a qual os metafísicos prometem que nós retornaremos; ela pretende fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam (Foucault, 1979: 34-5).
Isto nos coloca em um novo terreno problemático. Se o eixo de reflexão é o espaço de interação dos sujeitos, o espaço de construção e desconstrução de intersubjetividades, é necessário desenvolver conceitos que permitam apreender as sínteses dominação-resistência, hegemonia-emancipação, poder-democracia ou indivíduo-comunidade. Isto é, conceitos que tornem possível pensar esta unidade contraditória pela sua essência unificadora, e não pela dissociação de seus componentes.
Um primeiro esforço nesse sentido consiste em trabalhar simultaneamente os conceitos de hegemonia e de emancipação como abstrações interpretativas e como experiências históricas. E indispensável, para este propósito, rever e reformular o conteúdo teórico concreto da emancipação: como entendê-la no mundo do século XXI? Seu conteúdo tem variado com o transcurso das lutas? Como lidar com suas temporalidades? Ela requer uma institucionalidade própria? É possível falar de emancipação num único campo? Por exemplo, falar de emancipação política, mas não necessariamente econômica ou cultural, etc.? Há diferença entre o que se chama comumente de movimentos sociais e movimentos políticos? Há algum movimento que não seja político? Hegemonia e emancipação são duas linhas diferentes? Quais são os lugares da hegemonia e da emancipação? Qual é o terreno de construção das concepções de mundo? Toda concepção de mundo traz em si um processo de dominação? Isto é, não pode existir uma concepção de mundo de dimensões universais que não implique dominação-submissão? Não pode haver uma concepção de mundo a partir da emancipação geral, que responda ao que alude Ret Marut quando afirma "minha liberdade somente está assegurada se todas as pessoas em meu entorno são livres"? (Marut e Traven, 2000: 50).
Trabalhar a emancipação - ou as emancipações - nos conduz a recolocar a concepção da política e da suposta clivagem entre sociedade civil e sociedade política (ou entre Estado e sociedade), assim como a delimitação de seus âmbitos, formas e modalidades. Exige, do mesmo modo, trabalhar na ressignificação dos conceitos de poder, revolução e democracia. Resolver teoricamente se realmente estamos hoje na presença de novas formas e conteúdos da luta, como propõem os estudiosos dos "novos movimentos", e se estes implicam algum tipo de desmarcação epistemológica relativamente ao passado das lutas e à legalidade capitalista. Reformular também o caráter do público como espaço de exercício político cotidiano, e muitas outras questões que necessariamente decorrem do questionamento epistemológico geral que isto supõe. Mas, sobretudo, implica repensar a sociedade como âmbito da intersubjetividade, e as relações intersubjetivas como espaço da comunidade democrática.
A análise crítica do que existe repousa sobre o pressuposto de que os fatos da realidade não esgotam as possibilidades da existência (Sousa Santos, 2003: 26).
A análise do mundo contemporâneo a partir desta perspectiva nos conduz ao reconhecimento de que a única possibilidade de prever o futuro consiste no delineamento de cenários e na identificação de estratégicas, sejam estas relativas à dominação hegemônica ou aos processos de emancipação. É nesta visão que se inscrevem os. trabalhos incluídos neste volume, alguns relacionados com a análise crítica do discurso hegemônico e da construção de sentidos a partir da objetividade e subjetividade do sistema de dominação (Ceceña), ou de planos de redesenho territorial e de controle espacial das condições de reprodução estratégica deste sistema (Estay, Caycedo, Ramírez López), e outros relacionados com diferentes discursos e experiências de emancipação ou de rejeição aos projetos hegemônicos (Bartra, Ornelas, Sader, Gomez, Lander).
A complexidade do mundo atual fez Berger afirmar que "de tanto vermos tudo, não distinguimos nada" (Berger, 2002: 26-27). Nos, modestamente, estamos tentando ver somente alguns fenômenos, mas a partir de nossa própria perspectiva.

La méthode n’est pas séparable du contenu, et leur unite, c'est-a-dire la théorie, nest pás à son tour séparable des éxigences d'une action revolutionnaire.
Castoriadis, 1975: 21
BIBLIOGRAFIA

Berger, John 2001 Puerca tierra (España: Punto de lectura).
Berger, John 2002 La forma de un bolsillo (México: ERA).
Canetti, Elías 1981 La conciencia de las palabras (México: FCE).
Castoriadis, Cornelius 1975 L'institution imaginaire de la société (Paris: Seuil).
Sousa Santos, Boaventura de 2003 La caida del Ángelus novus: ensayos para una nueva            teoría social y una nueva práctica política (Colombia: ILSA-Universidad Nacional       de Colombia).
Foucault, Michel 1996 (1979) Microfísica do poder (Rio de Janeiro: Graal).
Foucault, Michel 1996 Genealogía del racismo (Argentina: Altamira).
Huntington, Samuel P. 1997 El choque de civilizaciones y la reconfiguración del orden mundial (Buenos Aires: Paidos).
Marut, Ret e Traven Bruno 2000 En el estado más libre del mundo (Barcelona: Ali-Kornio).
Morin, Edgar 1990 Introducción al pensamiento complejo (España: Gedisa).



[1] Hegemonia e emancipações no século XXI. Compilado por Ana Esther Ceceña – 1ª. ed. – Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO, 2005.
[2] Huntington, ideólogo do Pentagono, já havia percebido a mudança quando falou do "choque de civilizações" em meados da última década do século XX. Em resposta à visão reducionista com a qual pretende resolver" os conflitos do mundo contemporâneo, Tariq Alí corrige sua ambígua fórmula para colocá-la em termos mais adequados: não se trata de um "choque de civilizações", que em todo caso teria uma conotação muito diferente daquela pretendida por Huntington, e sim de um "choque de fundamentalismos" (Huntington, 1997).
[3] "O conhecimento totalizador é o conhecimento da ordem sobre o caos. A este respeito, o que distingue a sociologia funcionalista da sociologia marxista é que a primeira orienta-se para a ordem da regulação social, enquanto que a segunda dirige sua atenção para a ordem da emancipação social. No começo do século XXI temos que afrontar uma realidade de desordem, tanto na regulação social como na emanciparão social. Fazemos parte de sociedades que são autoritárias e libertárias ao mesmo tempo" (Sousa Santos, 2003: 29).

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