quarta-feira, 7 de março de 2012

Tião, um governo trapalhão... e déspota

Israel Souza[1]
Em anteriores análises, apontávamos que a hegemonia da FPA (Frente Popular do Acre) está em franco declínio. Valendo-nos dos ensinamentos de Gramsci, dizíamos que isso impunha à coalizão recorrer mais sistemática e ostensivamente ao uso da coerção. Interpretada em amplo sentido, esta requer o uso das estruturas estatais-militares-judiciais e envolve desde ameaças, constrangimentos, chantagens e retaliações ao uso da violência física. A recente barbárie ocorrida no bairro 6 de Agosto deu disso provas mais que cabais.
Tomando esse fato como algo mais que um caso isolado, o presente texto mostra serem mais fundas as raízes do despotismo ora explicitado pelo governo da FPA, sob o comando de Tião Viana. Dando seguimento a reflexões já iniciadas em textos outros (Eleições 2010: um olhar a partir “dos de baixo”, Hegemonia em declínio e subversivismo no governo da FPA e Amor nos tempos da cólera: notas sobre democracia no Acre), aqui se discute 1) a natureza e dinâmica do subversivismo florescente no estado e como ele embaraça os responsáveis pela governabilidade; 2) o perfil do quadro administrativo da FPA, bem como de alguns partidos que a compõem; e 3) a perda de capacidade de autocrítica por parte da coalizão em foco e suas consequências.
Nas considerações finais apontamos que, no seio da FPA, a força da razão cedeu lugar à razão da força. E ali, onde o ego hipertrofiou, a inteligência política atrofiou. Nesse contexto, a violência vira trapalhada - perigosa, diga-se - e a trapalhada, violência.

6 de Agosto: subversivismo popular; barbárie e trapalhada governamentais

A difícil relação governo-6 de Agosto não é de hoje. Começou em setembro do ano passado, quando o governo tentou tirar da região próxima à 4ª ponte algo em torno de 270 famílias. Já escrevemos vários textos sobre o caso, por isso não vamos retomá-lo aqui. Interessa dizer apenas que o processo de retirada das famílias, da maneira como vinha ocorrendo (sem transparência, com pressão, mentiras e omissão de informações), fez com que os moradores se organizassem e resistissem. Procuraram o Ministério Público (MP), a Assembleia Legislativa do Acre (ALEAC) e, por último, fecharam a 4ª ponte.
Por meses e sem sucesso, os moradores cobraram a presença de representantes do governo na comunidade. Queriam saber que projeto era aquele. Queriam que os representantes do governo falassem, mas também ouvissem. Os representantes do governo, por seu lado e sem nenhuma justificativa plausível, se negavam obstinadamente a ir à comunidade. Depois de fechada a ponte, eles se renderam. A ponte foi fechada no dia 20/12/2011. No dia seguinte, estavam no bairro. Ao que parece recuaram (provisoriamente?) em sua intenção.
A manifestação inspirou outras. O 6 de Agosto encarnou, como nenhum outro bairro de Rio Branco,  aquilo que chamávamos em textos anteriores de subversivismo, isto é, um rico e diverso conjunto de movimentos cuja “radicalidade” ou “moderação” varia caso a caso. Movimentos fragmentados, pouco articulados, sem coloração ideológica precisa ou mesmo nenhuma, espontâneos, autônomos, imprevisíveis. No bairro referido, eles atuaram por fora das organizações controladas pelo governo, como partidos, sindicatos e associação de moradores.
No calor do combate, surgiram lideranças. Verdes, como deve supor o leitor. Mas suficientemente capazes de evitar certas ciladas. Preferiam fazer toda negociação no seio da comunidade e não nos gabinetes. Quando a isso cediam, não decidiam nada pela comunidade. Apenas levavam suas reivindicações aos representantes do governo e, depois, traziam as propostas daqueles representantes à comunidade, onde discutiam tudo aberta e criticamente. Foi notável o embaraço que causaram aos responsáveis pela governabilidade.
É isso o que sustenta falarmos em ensaios de outra “cultura política” em nosso estado. Mobilizações e protestos não apenas sem o PT (partido que mais fortemente marcou a cultura política “dos de baixo” em nosso estado), mas contra o PT e seus partidos aliados-subordinados. Ou, mais precisamente, contra os interesses e projetos que hoje eles encarnam no governo. Por isso, em certa ocasião, uma assessora do governo disse que os moradores do 6 de Agosto estavam a fazer “baderna”. Presenciando o fato, ficamos a pensar por que motivo uma pessoa como ela, de raso entendimento político, estava a assessorar o governo.
Obtivemos a resposta em 21/02/2012, último dia de carnaval. Era noite. Os moradores da rua principal reivindicavam o religamento da energia cortada pela Eletrobras. O trecho objeto da reivindicação é aquele que fica à esquerda de quem, usando a 4ª ponte, vai do 1º para o 2º distrito e à direita de quem faz o percurso em sentido inverso ao indicado. Não tendo sido coberto pela água aquele trecho de rua, os moradores, após ligarem para a companhia responsável pelo fornecimento de energia, resolveram fechar a ponte. Assessores do governo foram ao local e lá não passaram mais que 20 minutos. Coisa estranha. A partir daí a conversa (não negociação!) ficou por conta dos militares. Coisa estranha.
Capitão Giovani, provavelmente o oficial mais capacitado da PM do Acre para negociações, em algo em torno de 20 minutos de conversa, asseverou a os moradores: se não “desobstruíssem” a ponte, eles, os militares, o fariam, de uma maneira ou de outra. Coisa estranha. Depois chegou o comandante Anastácio. A COE já estava no local. Coisa estranha. Em pouco tempo de conversa, o comandante disse que “desobstruíssemos” a ponte, se não, eles, os militares, o fariam, de uma ou de outra maneira. O comandante é homem de inegável religiosidade. Como o capitão antes dele, porém, não estava lá para negociar nada. Tinha ido ali “desobstruir” a ponte, da maneira como fosse.
Bem sabemos o que daí se seguiu. A COE jogou bomba e atirou balas de borracha nos manifestantes, ferindo menores, mulheres e pessoas idosas (ver vídeo aqui). O 6 de Agosto tornou-se, assim, o palco do “dia D” da FPA. Vários tiros na população. Um tiro no pé do governo. Quem já viu um governo se queimar tanto por tão pouco? Uma trapalhada política de grande monta. Foi o que ele fez. Tião Viana maculou sua imagem, a imagem da FPA e do PT nacional.
Após tentar enquadrar a população com a força policial, agora o governo quer fazê-lo com a força da lei. Forçando a barra ao extremo, busca encontrar alguma ligação entre o movimento e a morte do trabalhador do Deracre, que morreu eletrocutado numa área muito distante da área objeto da manifestação. Quem conhece o 6 de Agosto sabe. Em verdade, o que o governo pretende é conseguir algo que lhe possibilite dar a aparência de legitimidade à barbárie que a polícia, sob seu comando, cometeu. Abordaremos esse fato em outra ocasião.
Agora tudo está claro. A assessora de que falamos acima, despreparada politicamente, foi escolhida por pensar como seu superior. Maquiavel estava certo ao afirmar que é pela escolha dos ministros (secretários e assessores, acrescentamos) que se pode formar justa ideia de um governante. A inclinação despótica é patente em ambos. Embora o momento atual acentue tal inclinação, seu processo de gestação é de mais longo tempo.

Perfil do quadro administrativo da FPA

Em anos que já longe se vão, o quadro administrativo da FPA era consideravelmente formado por militantes. De modo destacado, aquele quadro era marcado pela militância do PC do B e do PT. Não raro, os membros de tais partidos militavam em suas estruturas partidárias e nas organizações populares, assumindo, efetiva e afetivamente, suas causas.
Por um bom tempo, isso permitiu aos membros daquela coalizão reconhecerem e serem reconhecidos pelos movimentos sociais. Chamemos isso de reconhecer e serem reconhecidos de empatia política. De igual modo, permitiu àqueles sujeitos entenderem o modo de pensar (o universo simbólico) e agir das forças populares, seus protestos e manifestações. Tal entendimento dava-lhes intuição política e forte influência sobre as forças populares. Fortalecê-las era se fortalecer, pois os interesses eram convergentes.
Após mais de uma década no comando da máquina estatal, o quadro administrativo é bem outro. Muitos de seus membros nunca militaram em movimentos sociais e nunca lutaram por causa popular nenhuma. Técnicos e burocratas desde o nascimento. Ignoram o modo de agir e pensar das forças populares. E, se muito militam, é em favor do partido que lhes garante o cargo. Somem-se a esses aqueles que, em nome da governabilidade e por meio de acordos partidários, vieram das fileiras antipopulares das oligarquias locais.  
Outros tantos, que militaram nos movimentos sociais, deles se afastaram. Numa conjuntura em que os interesses são divergentes, quando deles se aproximam novamente, é na intenção de desorganizá-los e submetê-los, dobrá-los à vontade governamental. Hoje, enfraquecê-los é se fortalecer. Deixaram de ser militantes. Agora são “gestores estatais”. Nesse sentido, reconhecendo-se mais como governo, perderam a empatia e a intuição políticas. Afastados das bases populares mas bem instalados e remunerados na máquina estatal, elitizaram-se. Defendem a ordem que tanto lhes convêm, e são hostis àqueles que - mesmo que legitimamente - abalam seu sossego e ameaçam seus privilégios.
Pelo mesmo processo também passaram alguns dos partidos da coalizão. Isso vale, sobretudo, para os de base popular, como PT e PC do B. A exemplo do que ocorreu com o Partido Comunista Russo e com a Socialdemocracia na Europa Ocidental, também estes, à medida que ocupavam mais e mais os espaços no poder estatal, se afastavam das bases populares, seguindo uma tendência já apontada por Robert Michels através de seu conceito de “lei de ferro das oligarquias”.
Ao afastamento das bases populares, seguiam-se a profissionalização, a burocratização e a estratificação interna de tais partidos. Nobres no topo; plebeus na base. Como os demais partidos, tornaram-se espaços de afirmação e ascensão social. Responsáveis pela manutenção da ordem, acentuou-se seu caráter conservador. Em quadro assim, à militância restava cada vez mais e apenas o papel de massa a manobrar em favor dos objetivos eleitorais dos partidos.
Contudo, sejamos justos. Há também nesse quadro aqueles que perceberam a mudança apontada, que lutam para voltar aos velhos ideais. Mas sejamos também honestos e precisos. Estes são poucos e, no geral, se encontram ou ridicularizados ou isolados e impotentes. O tratamento dispensado aos candidatos saídos da militância é disso mais que um sinal. Alguns sequer conseguem sair a candidato. Alguém realmente chegou a acreditar que Sibá Machado desbancaria Marcos Alexandre como pré-candidato do PT à prefeitura da capital acreana? Mesmo considerando a notável covardia de seu partido, a recentemente abortada candidatura de Perpétua Almeida (PC do B) à prefeitura de Rio Branco obedece à mesma tendência.
Também nesse caso último o atual governo mostrou-se despótico e trapalhão. Impôs o nome de Marcos Alexandre à FPA. Mas a que preço? Nem mesmo a saída de Petecão causou tantos danos, cujas proporções é sensato não subestimar.  Pode-se dizer que, por enquanto, a coalizão segue unida como sempre, mas desarmônica como nunca.

Perda de capacidade de autocrítica

            O conjunto de tudo o que foi aqui discutido mostra que a FPA perdeu a capacidade de autocrítica. É isso que faz com que seus membros reajam tão desarrazoados às críticas; que não reconheçam erros, podendo repeti-los ou a radicalizá-los até, como quem crê que pela força pudesse extrair acertos de erros, virtudes de vícios. Infelizmente, para eles, a força e a estupidez não têm poder alquímico.
A questão da hora oficial do Acre - outro caso a mostrar um governo, a um só tempo, despótico e trapalhão - é lapidar a esse respeito. Caso assumisse o erro de ter mudado a hora do estado sem ter consultado a população, o governo poderia ostentar a aparência de humilde e democrático. Mas, em vez disso, resolveu deixar as coisas correrem da pior maneira possível, criando obstáculos à volta da hora, atacando a oposição por ter “politizado a questão”.

FPA: hipertrofia do ego, atrofia da inteligência política

O lançamento da pré-candidatura de Marcos Alexandre mostrou-nos incrível espetáculo de discursos e intenções beligerantes. Referindo-se à oposição, um disse que a lógica da disputa seria do “Bateu, levou!”. Outro afirmou: “Do pescoço pra baixo é tudo canela”. Como se vê, a beligerância é não apenas indisfarçada, mas exibida como um virtuoso diferencial.
Os desafios enfrentados por Tião Viana são maiores que os enfrentados por seus antecessores e seu ritmo de trabalho, mais intenso. Reconhecemos. Todavia, em que pesem seus esforços para recuperar a legitimidade da FPA e para se fazer presente em todos os municípios em que a água mostrou sua força devastadora, coisas como as acima refletidas denotam que, no seio daquela coalizão, a força da razão cedeu lugar à razão da força. E ali, onde o ego hipertrofiou, a inteligência política atrofiou. Nesse contexto, a violência vira trapalhada - perigosa, diga-se - e a trapalhada, violência.
Um misto pitoresco assim, de trapalhadas e violência, sequer permite considerar o atual governante como déspota esclarecido. Resta-nos concluir desejando que a poesia de Zé Geraldo seja-nos alento e inspiração para a luta:

Não se deixe intimidar pela violência
O poder da sua mente é toda sua fortaleza
Pouco importa esse aparato bélico universal
Toda força bruta representa nada mais do que um sintoma 
de fraqueza
O importante é você crer nessa força incrível que existe 
dentro de você
Meu amigo meu compadre meu irmão
Escreva sua história pelas suas próprias mãos (
Como Diria Dylan).


[1] Cientista Social, Membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental (NUPESDAO) e do Movimento Anticapitalista Amazônico (MACA).

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