O governo brasileiro optou por um modelo econômico que vem sendo chamado de desenvolvimentista agroextrativista exportador - alguns teóricos analistas chamam o governo de neodesenvolvimentista. Este modelo de “desenvolvimento” é altamente dependente da exploração e exportação de matérias-primas; em especial de commodities agrícolas e minerais, dentre elas soja, milho, carnes, madeiras, agro-combustíveis e minérios em geral.
Para viabilizar a exploração e exportação dessas matérias-primas, o governo busca implementar, a qualquer custo, as obras de infraestrutura na área de transporte e geração de energia, tais como, rodovias, ferrovias, hidrovias, portos, usinas hidroelétricas, linhas de transmissão, dentre outras.
A dependência quanto a uma produção e exploração sempre maior de commodities agrícolas e minerais e das condições de infraestrutura para o escoamento da produção potencializa sobremaneira a disputa pelo controle do território no país. É muito evidente que os setores político-econômicos anti-indígenas e antidemocráticos, representantes do agronegócio, das mineradoras, das grandes empreiteiras e o próprio governo brasileiro estão articulados e empenhados para ampliar o acesso, o controle e a exploração dos territórios indígenas, quilombolas, dos pescadores artesanais, dos camponeses, de preservação ambiental, dentre outros.
Para tanto adotaram uma estratégia que tem três objetivos centrais:
- O primeiro é o de inviabilizar e impedir o reconhecimento e a demarcação das terras indígenas que continuam usurpadas, na posse de não índios. Este objetivo também se aplica no caso da titulação de terras quilombolas, na desapropriação de terras para a reforma agrária, na criação de novas unidades de preservação ambiental e no reconhecimento do direito fundiário de outras populações tradicionais do Brasil;
- O segundo grande objetivo é o de reabrir e rever procedimentos de demarcação de terras indígenas já finalizados;
- O terceiro objetivo é o de invadir, explorar e mercantilizar as terras demarcadas, que estão na posse e sendo preservadas pelos povos indígenas, pelos quilombolas, por outros grupos tradicionais, pelos camponeses.
Para concretizar estes objetivos, declararam guerra e buscam desconstruir os direitos historicamente conquistados pelos povos. De maneira particular, no que tange aos direitos dos povos indígenas, os setores anti-indígenas vêm fazendo uso de diferentes instrumentos político-administrativos, judiciais e legislativos para cada um dos objetivos acima mencionados.
Na sequência, destacamos aqueles que consideramos os principais instrumentos de ataque, de acordo com o respectivo objetivo da estratégia anti-indígena em curso.
Instrumentos para inviabilizar e impedir o reconhecimento e a demarcação das terras indígenas que continuam usurpadas, na posse de não índios.
1) Proposta de Emenda Constitucional 215/00: de autoria do deputado federal Almir Sá (PPB/RR), a proposição legislativa teve sua Admissibilidade aprovada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados em março de 2012. No relatório da matéria apresentado e aprovado na CCJC, o deputado federal Osmar Serraglio (PMDB/PR), então vice-líder do governo na Câmara, apensou outras 11 PECs que tramitavam na referida Comissão. Com isso, a PEC 215/00, sendo aprovada, alterará os artigos 49, 225 e 231 da CF transferindo a competência das demarcações do Executivo para o Legislativo nacional e, em última instância, determinará: a) que toda e qualquer demarcação de terra indígena ainda não concluída deverá ser submetida à aprovação do Congresso Nacional; b) que as áreas predominantemente ocupadas por pequenas propriedades rurais que sejam exploradas em regime de economia familiar não serão demarcadas como terras tradicionalmente ocupadas por povo indígena; c) que as Assembléias Legislativas sejam obrigatoriamente consultadas em casos de demarcação de terras indígenas em seus respectivos estados; d) que a demarcação de terras indígenas, expedição de títulos das terras pertencentes a quilombolas e definição de espaços territoriais especialmente protegidos pelo Poder Público sejam regulamentados por uma lei e não mais por um decreto como ocorre atualmente; e) que será autorizada a permuta de terras indígenas em processo de demarcação litigiosa, ad referendum do Congresso Nacional.
A PEC 215/00 aguarda a criação de Comissão Especial Temporária na mesa diretora da Câmara dos Deputados. A proposição foi tema central no processo de negociação para a eleição do novo presidente da Câmara, deputado Henrique Alves (PMDB/RN). Para receber os votos da Bancada Ruralista, Alves teria assumido o compromisso de criar a Comissão Especial no decurso de seu mandato.
2) Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 038/99: de autoria do senador Mozarildo Cavalcanti (PMDB/RR), a proposição legislativa está aguardando inclusão na ordem do dia para ser votada pelo plenário do senado. Caso seja aprovada, tal como o voto em separado do senador Romero Jucá (PMDB/RR), alterará os artigos 52, 225 e 231 da Constituição Federal (CF) estabelecendo competência privativa do Senado Federal para aprovar processo sobre demarcação de terras indígenas.
3) Portaria 2498/11: de autoria do Poder Executivo, foi publicada no dia 31 de outubro de 2011, pelo Ministério da Justiça, e determina a intimação dos entes federados para que participem dos procedimentos de identificação e delimitação de terras indígenas. Esta portaria tem como pano de fundo uma interpretação equivocada, por parte do Executivo, de Condicionante estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Petição 3388, única e exclusivamente relativa ao caso da Terra Raposa Serra do Sol, cujo julgamento não transitou em julgado.
4) Inoperância nas demarcações: politicamente deliberada pelo Poder Executivo, a inoperância quanto às demarcações de terras indígenas é praticamente absoluta. A Fundação Nacional do Índio (Funai) “não tem autorização”, ou seja, está proibida pela Presidência da República, de criar novos Grupos de Trabalho para estudos de identificação e delimitação de terras. Isso se constitui, sem sombra de dúvidas, em mais um ato de subserviência do governo brasileiro às demandas do agronegócio em nosso país, que vem pedindo, em audiências com Ministros de Estado, uma moratória nas demarcações sob o pretexto de se aguardar a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a Petição 3388.
5) Judicialização das demarcações: iniciativa articulada pela Confederação Nacional da Agricultura (CNA) e pelos sindicatos a ela filiados, incentiva os não-indígenas invasores de terras indígenas a questionarem judicialmente todo e qualquer procedimento administrativo que visa o reconhecimento e a demarcação de terras indígenas. O julgamento desses processos por parte do judiciário é extremamente demorado, o que, no mínimo, vem resultando em atrasos ainda maiores nas demarcações das terras indígenas.
Instrumento para reabrir e rever procedimentos de demarcação de terras indígenas já finalizados.
6) Portaria 303/12: de iniciativa do poder Executivo, por meio da Advocacia Geral da União (AGU), publicada no dia 17 de julho de 2012, a Portaria 303/12 manifesta uma interpretação extremamente abrangente, geográfica e temporal quanto às condicionantes estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do caso Raposa Serra do Sol (Petição 3388), estendendo a aplicação delas a todas as terras indígenas do país e retroagindo “ad eternun” sua aplicabilidade. A portaria determina que os procedimentos já “finalizados” sejam “revistos e adequados” aos seus termos.
Além disso, determina que sejam “revistos” os procedimentos de demarcação em curso e impõe limites severos aos direitos de usufruto exclusivo dos povos sobre suas terras, previsto na Constituição Federal, e de consentimento livre, prévio e informado, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A aplicação da Portaria 303/12 está suspensa, mas prevista para entrar em vigor no dia seguinte à publicação do acórdão do julgamento dos Embargos de Declaração da Petição 3388 pelo STF. Em função disso, uma eventual decisão do STF que corrobore os termos estabelecidos pela Portaria, ampliaria profundamente a instabilidade jurídica e política vivida pelos povos indígenas e, na prática, significaria a conflagração de conflitos fundiários ainda mais graves envolvendo a posse das terras indígenas, inclusive a reabertura de conflitos solucionados com o ato demarcatório.
Consideramos tudo isso grave, uma vez que das 1046 terras indígenas, 363 estão regularizadas; 335 terras estão em alguma fase do procedimento de demarcação e 348 são reivindicadas por povos indígenas no Brasil, mas até o momento a Funai não tomou providências a fim de dar início aos procedimentos de demarcação.
Instrumentos para invadir, explorar e mercantilizar as terras demarcadas, que estão na posse e sendo preservadas pelos povos indígenas.
7- Decreto nº 7.957/13: de autoria do Poder Executivo, publicada no dia 13 de março de 2013, cria o Gabinete Permanente de Gestão Integrada para a Proteção do Meio Ambiente, regulamenta a atuação das Forças Armadas na proteção ambiental e altera o Decreto nº 5.289, de 29 de novembro de 2004. Com esse decreto, “de caráter preventivo ou repressivo”, foi criada a Companhia de Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública, tendo como uma de suas atribuições “prestar auxílio à realização de levantamentos e laudos técnicos sobre impactos ambientais negativos”. Na prática isso significa a criação de instrumento estatal para repressão militarizada de toda e qualquer ação de comunidades tradicionais, povos indígenas e outros segmentos populacionais que se posicionem contra empreendimentos que impactem seus territórios.
8- Portaria Interministerial 419/11: de autoria do Poder Executivo, a Portaria, publicada em 28 de outubro de 2011, regulamenta a atuação de órgãos e entidades da administração pública com o objetivo de agilizar os licenciamentos ambientais de empreendimentos de infraestrutura que atingem terras indígenas. Neste sentido: a) concede prazo irrisório de 15 dias para que a Funai se manifeste em relação a determinada obra que atinge terra indígena no país; b) determina que o governo só irá considerar como Terra Indígena atingida por uma determinada obra de infra-estrutura aquela que tiver seus limites estabelecidos pela Funai, ou seja, cujo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação tenha sido publicado nos Diários Oficiais da União e do respectivo estado federado. Este último ponto é especialmente danoso aos povos indígenas - reconhecidamente inconstitucional -, uma vez que desconsidera o fato de que o procedimento administrativo de demarcação de terra indígena é ato apenas declaratório do direito dos indígenas sobre suas terras tradicionais. Com a portaria 419, para efeito de estudo de impactos causados pelos empreendimentos, o governo desconsidera a existência de aproximadamente 370 terras indígenas ainda não identificadas e delimitadas no Brasil.
9- Projeto de Lei (PL) 1610/96: de autoria do senador Romero Jucá (PMDB/RR), o Projeto dispõe sobre a exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas, de que tratam os arts. 176 e 231 da Constituição Federal. Em fase final de tramitação, aguarda parecer da Comissão Especial. Relatório preliminar divulgado, no segundo semestre de 2012 pelo deputado federal Édio Lopes (PMDB/RR), é extremamente maléfico aos interesses dos povos indígenas. Caso a lei seja aprovada na forma do relatório em questão, dentre muitos outros aspectos problemáticos, destacamos: a) Não será admitido o direito de veto dos povos. Com isso, o direito de consulta livre, prévia e informada será transformado em mero ato formal, denominado “consulta pública”. A vontade dos povos não terá qualquer influência sobre a continuidade do processo de exploração mineral na própria terra. Nesse caso, inclusive, recupera o princípio da tutela, abominado pela Constituição, ao definir que uma comissão formada por não-índios decidirá sobre o que é melhor para os povos indígenas; b) Nenhuma salvaguarda constitucional é explicitada. Com isso, a exploração mineral poderá ocorrer em todo e qualquer espaço no interior da terra indígena. Não há qualquer referência que proíba a lavra de recursos minerais incidentes sob monumentos e locais históricos, culturais, religiosos, sagrados, de caça, de coleta, de pesca ou mesmo de moradia dos povos. Isso, como é evidente, oferece risco incalculável à sobrevivência física e cultural dos povos.
10- Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 237/13: de autoria do deputado Nelson Padovani (PSC/PR), busca alterar o art. 176 da Constituição, permitindo a posse de terras indígenas por produtores rurais. A PEC 237/13 acrescenta parágrafo à Constituição para determinar que a pesquisa, o cultivo e a produção agropecuária nas terras tradicionalmente ocupadas pelos índios poderão ocorrer por concessão da União, ao agronegócio. Aguarda designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados.
11- Projeto de Lei (PL) 195/11: de autoria da Deputada Rebecca Garcia (PP/AM), prevê a instituição de sistema nacional de redução de emissões por desmatamento e degradação (REDD+). Em flagrante desrespeito ao princípio constitucional que prevê usufruto exclusivo das terras pelos próprios povos indígenas, o PL elege, dentre outras, as terras indígenas como objeto de projetos de REDD+. Aguarda constituição de Comissão Temporária Especial na Mesa Diretora da Câmara dos Deputados.
12- Substituição do Direito pela Compensação/Mitigação: a omissão do governo brasileiro na efetivação de políticas públicas, tais como de saúde e educação, dentre outras, vem influenciando dezenas de povos a aceitarem projetos de exploração de seus territórios como forma de obter compensações/mitigações para responder as demandas criadas pelo abandono do Estado. Entendemos que isso é extremamente grave e prejudicial aos povos indígenas, uma vez que o direito tem caráter permanente, enquanto as compensações têm caráter efêmero e perduram tão somente enquanto perdurar a exploração do território. Com a aplicação deste instrumento, chegará o tempo em que povos terão seus territórios exauridos, não receberão mais as compensações/mitigações e não mais terão o direito ao atendimento nas diferentes áreas.
O desenvolvimento econômico do Brasil não beneficia indistintamente toda a população nacional, como a tese falaciosa do governo brasileiro quer fazer crer a sociedade nacional e internacional. O que efetivamente vem ocorrendo é que esse propagado “desenvolvimento brasileiro” é viabilizado devido à violação de direitos humanos, econômicos, políticos, sociais, culturais e ambientais de populações amplas e diversas, dentre elas, os povos indígenas.
Diante de tudo isso, fica evidente a urgência dos desafios a serem enfrentados pelos povos indígenas e seus aliados. Julgamos de extrema necessidade que sejam ampliadas as articulações, as mobilizações, as lutas e os enfrentamentos políticos por parte dos povos indígenas, em todos os espaços possíveis, a fim de:
1) que sejam mantidos os direitos conquistados pelos povos na Constituição Federal, evitando assim que ocorram os retrocessos históricos almejados pelos setores anti-indígenas;
2) que o governo brasileiro assuma a responsabilidade que tem no cumprimento dos direitos dos povos indígenas para um atendimento qualificado quanto às políticas públicas de saúde e educação, bem como, à demarcação e à proteção das terras indígenas conforme prevê a Constituição Brasileira.
Conselho Indigenista Missionário – Cimi
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