terça-feira, 2 de abril de 2013

“O desenvolvimentismo não combina com princípios éticos e humanitários”


A relação deste governo, e dos que o antecederam, está muito longe de ser comprometida com o projeto de vida, de justiça e dignidade dos povos indígenas, aponta Roberto Antonio Liebgott

Por: Graziela Wolfart

Liebgott: "Lideranças indígenas de todas as regiões do Brasil analisam que as opções dos governos petistas foram pelo boi, pela soja, pelo agronegócio, pelas empreiteiras e empresas de energia elétrica (os barrageiros)"

Na opinião de Roberto Antonio Liebgott, “a ‘esquerda’ que assumiu o poder se tornou volátil, ou seja, diante das contingências do momento e da ânsia por assumir o governo, ajustou muito rapidamente seus propósitos e bandeiras históricas. Tornou-se, portanto, volúvel, instável e inconstante, tanto foi assim que aderiu, mesmo antes da posse do presidente Lula, aos programas e projetos de setores e grupos da estrema direita. Em função disso, logo no início do primeiro mandato do ex-presidente Lula, a governança do país foi alicerçada no plano desenvolvimentista dos governos neoliberais de Fernando Collor de Mello-Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. No nosso entender não foi ‘a esquerda’ que assumiu o governo, e sim um partido que compôs com o poder existente”. Na entrevista que concedeu por e-mail para a IHU On-Line, Liebgott argumenta que “a demarcação das terras dos povos indígenas é a única alternativa concreta para que se coloque um ponto final nas atrocidades praticadas em diferentes regiões do país, nas quais também os povos indígenas sofrem com a precariedade das condições de vida e com a falta de terras”. Para ele, “o governo federal, ao impor ao país um modelo de desenvolvimento econômico fundamentado quase que exclusivamente na exploração da natureza, viola a premissa de que a terra não é um recurso à disposição dos interesses do homem, e sim o lugar de viver de inumeráveis seres, com os quais o homem compartilha o existir”.  

Roberto Liebgott é ex-vice-presidente do Conselho Indigenista Missionário – Cimi com atuação no Rio Grande do Sul, Regional Sul.
Confira a entrevista.

IHU On-Line - A partir da retrospectiva da política indigenista conduzida pela presidência da República nos últimos 10 anos, como o senhor analisa a relação da esquerda que está à frente do poder no Brasil com a problemática dos povos originários?

Roberto Antonio Liebgott - A relação deste governo, e dos que o antecederam, está muito longe de ser comprometida com o projeto de vida, de justiça e dignidade dos povos indígenas. Podemos exemplificar a falta de compromisso político dos governos petistas com a problemática indígena, em especial pelo contínuo e silencioso processo de genocídio a que os Guarani-Kaiowá estão sendo submetidos no Mato Grosso do Sul. Este estado lidera o ranking de violências contra os índios há anos, e o que tem feito, de concreto, o governo federal, que segundo a Constituição de 1988 é responsável pela proteção dos povos indígenas? Infelizmente não tem tomado mais do que medidas pontuais e paliativas. A demarcação das terras dos povos indígenas é a única alternativa concreta para que se coloque um ponto final nas atrocidades praticadas naquele estado e em diferentes regiões do país, nas quais também os povos indígenas sofrem com a precariedade das condições de vida e com a falta de terras.

Lideranças indígenas de todas as regiões do Brasil analisam que as opções dos governos petistas foram pelo boi, pela soja, pelo agronegócio, pelas empreiteiras e empresas de energia elétrica (os barrageiros). Vejamos como isso se processa: no âmbito político, devemos reconhecer que a "esquerda" que assumiu o poder se tornou volátil, ou seja, diante das contingências do momento e da ânsia por assumir o governo, ajustou muito rapidamente seus propósitos e bandeiras históricas. Tornou-se, portanto, volúvel, instável e inconstante, tanto foi assim que aderiu, mesmo antes da posse do presidente Lula, aos programas e projetos de setores e grupos da estrema direita. Em função disso, logo no início do primeiro mandato do ex-presidente Lula, a governança do país foi alicerçada no plano desenvolvimentista dos governos neoliberais de Fernando Collor de Mello-Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. 

No nosso entender não foi “a esquerda” que assumiu o governo, e sim um partido que compôs com o poder existente. E é a partir dessa composição que podemos analisar a relação que se estabeleceu, nestes últimos 10 anos, do governo com os povos indígenas. Na nossa avaliação os governos petistas optaram por contemplar interesses de segmentos que fizeram e fazem parte de sua base de sustentação política e que se beneficiam de uma política indigenista protelatória e omissa,  muito aquém dos anseios, necessidades, expectativas e da efetiva aplicação dos preceitos constitucionais dos  povos indígenas.

IHU On-Line - O que o PT fez de mais significativo pelos povos indígenas ao longo desta década e o que ele deixou de fazer?

Roberto Antonio Liebgott - Para a governabilidade do país, o PT optou por estabelecer alianças com diferentes segmentos políticos e sociais. Recebeu, inegavelmente, muitos recursos para as campanhas eleitorais provenientes de forças econômicas e políticas que agora exigem retornos para seus “investimentos”. Significa dizer que o PT se tornou um partido refém das oligarquias econômicas vinculadas ao sistema financeiro, às empreiteiras e ao agronegócio. E, além disso, se tornou refém do PMDB, partido que hoje domina todas as ações parlamentares no Congresso Nacional e exerce funções importantes (ministérios, secretarias, autarquias, agencias reguladoras) no âmbito do Poder Executivo.

Como eu disse anteriormente, durante os dois mandatos do presidente Lula e nos dois anos de governo da presidente Dilma, as demandas indígenas relativas às demarcações, proteção e usufruto das terras foram negligenciadas. Portanto, no quesito mais importante do que deveria ser a base da política indigenista, que é a demarcação e garantia das terras, o PT pouco fez ao longo dos 10 últimos anos. O que ocorreu de mais relevante neste período foi o conjunto de decisões do STF nos casos das ações pendentes de julgamento acerca da manutenção da demarcação em área contínua de Raposa Serra do Sol e da nulidade dos títulos incidentes sobre a Terra do Povo Pataxó Hã-Hã-Hãe. Nos dois julgamentos mencionados, os ministros do STF decidiram as ações favoravelmente aos direitos indígenas. 

Recentemente ocorreu outra determinação judicial, também do STF, de que a terra indígena Marãiwatsédé, do Povo Xavante, fosse desintrusada. Ou seja, foi o Poder Judiciário que determinou que o Governo Federal retirasse da terra indígena todos os ocupantes – de boa ou má fé – que viviam sobre a terra indígena. Os três casos referidos, que tiveram grande repercussão midiática, não possuem um nexo direto com a política indigenista do Governo Federal, posto que foram resultantes da ação do Judiciário e de procedimentos que antecedem os 10 anos de governo petista. Ou seja, o Governo Federal foi intimado pelo STF a cumprir com suas funções de proteção, fiscalização e demarcação das terras ocupadas e reconhecidas como indígenas.

Políticas assistenciais de educação e saúde

No que concerne às políticas assistenciais, os povos indígenas enfrentaram grandes desafios, especialmente nas áreas de educação e saúde. No campo da educação, o governo decidiu pela implementação de um modelo de gestão da educação escolar estruturado na forma de territórios etnoeducacionais. Contudo, esse conturbado processo vem ocorrendo a passos lentos e as comunidades indígenas ainda não compreendem o funcionamento e as responsabilidades na oferta de serviços básicos, se estas são da União, dos estados, de municípios ou de prestadoras de serviço. Há ainda sérias denúncias, feitas por diferentes comunidades e povos indígenas, de que a audiência e consulta às comunidades não teria sido procedida de modo a envolver efetivamente os sujeitos a quem esta política se destina. No que se refere à saúde houve muita confusão e desencontros quanto à política a ser adotada. Num primeiro momento, o governo Lula deu seguimento à política de terceirização iniciada na era de Fernando Henrique Cardoso. Entretanto, a falta de consistência da política, principalmente no que se refere às responsabilidades pela gestão e execução das ações, que estavam pulverizadas entre os prestadores de serviços e a Funasa (Fundação Nacional de Saúde), gerou grandes descontentamentos, o que fez  com que o Tribunal de Contas da União realizasse uma auditoria em todos os aspectos da política de atenção à saúde indígena, coordenada pela Funasa. Além da má gestão dos serviços, havia má gestão dos recursos financeiros, gerando denúncias de que havia corrupção na gestão dos recursos da saúde indígena. Paralelo a isso houve uma determinação judicial, afirmando que era dever da União fazer a gestão e execução da saúde indígena e, assim sendo, o modelo de assistência realizado de forma terceirizada estava em desacordo com a legislação. Essas determinações judiciais obrigaram o governo e rever sua política e a criar a Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena.

Comissão Nacional de Política Indigenista e Funai

É importante considerar também que ao longo dos 10 anos de governo petista os povos indígenas não foram tratados como protagonistas de suas histórias ou como portadores de direitos a serem reconhecidos. Houve uma iniciativa que até poderia ter se constituído em efetivo espaço de diálogo, de debates e de proposições sobre as demandas e realidades indígenas: a criação da Comissão Nacional de Política Indigenista – CNPI. No entanto, ela acabou sendo esvaziada logo no início do governo Dilma. Os líderes indígenas, integrantes da CNPI, convidaram a presidente Dilma para dialogar sobre as grandes questões que estavam afetando as terras e os direitos indígenas, a exemplo do complexo hidroelétrico de Belo Monte, a mortalidade indígena no Vale do Javari, as violências praticadas contra os Guarani-Kaiowá, a morosidade nos procedimentos de demarcação, a reestruturação da Funai, entre outros temas. A presidente se recusou ao debate e disse que não iria até a CNPI. Desde então, a Comissão foi esvaziada e não houve mais o cumprimento do cronograma de reuniões.

A Funai, órgão do governo que deveria responder por toda a política para os povos indígenas, tem como responsabilidade primeira a realização dos procedimentos demarcatórios, bem como a proteção e garantia do usufruto exclusivo das terras pelos povos indígenas, tem se mostrado absolutamente incapaz e acabou sucateada, sem recursos orçamentários suficientes para exercer suas funções. Pior ainda, esse órgão indigenista do governo tem se limitado a um tipo de atuação que, em muitos casos, avaliza e busca convencer os índios a aceitarem supostos benefícios e compensações decorrentes de empreendimentos e obras que afetarão suas terras, a exemplo das barragens, duplicações de rodovias, gasodutos, linhas de transmissão, hidrovias.

É necessário referir que, no âmbito das políticas governamentais para os povos indígenas, um dos desafios principais é o reconhecimento e o respeito às diferenças étnicas e culturais. Os que comandam os órgãos de governo não se preocuparam em qualificar os agentes e servidores públicos para as demandas advindas das relações inter-étnicas, ou resguardar os espaços de participação efetiva dos índios na proposição e planejamento destas políticas.

IHU On-Line - Como a cultura do desenvolvimentismo e do crescimento econômico protagonizada pelo governo federal se choca com a cultura do bem-viver indígena? 

Roberto Antonio Liebgott - O governo federal, ao impor ao país um modelo de desenvolvimento econômico fundamentado quase que exclusivamente na exploração da natureza, viola a premissa de que a terra não é um recurso à disposição dos interesses do homem, e sim o lugar de viver de inumeráveis seres, com os quais o homem compartilha o existir. Esse modelo unilateral viola o princípio da vida em plenitude, e a noção de igualdade de direitos entre as pessoas, posto que algumas têm acesso privado a certos recursos econômicos, ambientais, culturais e sociais e outras estão absolutamente excluídas ou marginalizadas. Tudo isso compromete as possibilidades de futuro de toda a humanidade, do planeta e dos povos que não compartilham esses mesmos imperativos do lucro e da produção em larga escala. O desenvolvimentismo não combina com princípios éticos e humanitários. 

Todos os seres e todas as coisas somente tem valor quando transformados em mercadoria, quando adequados ao consumo – como consumidores potenciais ou como objetos de consumo. Não se encaixando neste modelo de sociedade de consumo, os povos e comunidades tradicionais são tratados como obstáculos ao desenvolvimento e, necessariamente, os planos para eles são a remoção, a adequação ou o confinamento em locais onde não sejam inoportunos. É nesta lógica que se estabelecem os vínculos e as relações daqueles que governam o Estado com aqueles que têm nas mãos o capital e os recursos para explorar os bens existentes na natureza (terras, águas, matas, animais, a biodiversidade, os minérios, o turismo).

Os povos indígenas têm, em sua maioria, concepções de vida vinculadas ao inter-relacionamento dos seres tanto na dimensão física, quanto na espiritual. Assim, os vínculos entre as pessoas e seres da natureza são inseparáveis e estas é que asseguram o equilíbrio e o bem viver. Na medida em que essas redes de relações (das diferenças e das diversidades) são atacadas, agredidas e violadas rompem-se os elos que constituem o bem viver. O desenvolvimentismo a qualquer custo é, portanto, um decreto de morte aos modos diferentes de pensar e de construir a vida na terra. 

IHU On-Line - O que representa, do ponto de vista da posição do governo federal do PT em relação aos povos indígenas, a escolha de Marco Feliciano na presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados? 

Roberto Antonio Liebgott - Esse é um dos acontecimentos mais paradoxais e vergonhosos de nossa política atual. No Brasil e no exterior assistimos a uma justificada onda de protestos contra esse verdadeiro disparate – a escolha de Marco Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. As declarações públicas desse parlamentar demonstram a mais absoluta falta de sensibilidade e abertura para as questões que concernem a esta Comissão. 
Como explicar essa escolha, se não por critérios exclusivamente político-partidários? No Congresso Nacional as definições não se coadunam com a vida e com os interesses da população. Parece haver um pacto para acomodar cada partido e cada sujeito em um lugar, seguindo interesses individuais do parlamentar, ou dos partidos e de governo. Não se justifica, sob nenhum pretexto, a escolha de um parlamentar acusado de homofobia, que utiliza uma retórica machista e discriminatória em seus discursos recentes, para presidir uma comissão parlamentar que pretende acolher demandas, denúncias, inquietações e reivindicações dos segmentos menos favorecidos da sociedade. Não se admite, sobretudo, que diante das seguidas manifestações de descontentamento e os atos de protesto da população, esta escolha não tenha sido reavaliada pelo Congresso Nacional e pelo governo.
Aliás, essa escolha, assim como a escolha de Blairo Maggi (conhecido pelas suas posições contrárias à proteção dos recursos ambientais e por promover desmatamento no Mato Grosso) para presidir a Comissão de Meio Ambiente do Senado, parece muito mais um reconhecimento público de que o país está definitivamente sob o comando dos partidos considerados de direita e vinculados aos interesses do latifúndio, do agronegócio, da mineração e da exploração energética.

Concessão

Lamentavelmente se constata que os partidos que mantinham certos vínculos com as demandas sociais e com as questões relacionadas aos direitos humanos (PT, PC do B, PSB) dos povos indígenas, quilombolas, dos sem tetos, dos atingidos por barragens, dos pequenos agricultores, dos homossexuais, das mulheres vítimas de violência, fizeram uma concessão e entregaram duas comissões estratégicas a parlamentares e partidos que primam, historicamente, pelo distanciamento dos segmentos sociais marginalizados. Os partidos da base do governo Dilma contribuirão, com essa postura, para o aprofundamento das violações aos direitos humanos em nosso país. 

Em nossa opinião, ao abrir mão dessas comissões permanentes, o Partido dos Trabalhadores confirma que as demandas sociais e os direitos humanos não estão na pauta dos assuntos que realmente interessam. Para os povos indígenas, obviamente, essa escolha se constitui em afronta e será um verdadeiro desastre.

IHU On-Line - Qual a contribuição para os povos indígenas que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados já deu ao longo dos últimos 10 anos, de forma efetiva?

Roberto Antonio Liebgott - A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados se constituiu, ao longo das últimas décadas como um dos poucos espaços do parlamento onde os segmentos sociais menos favorecidos tinham possibilidade de apresentar suas demandas e onde conseguiam debater suas questões e propostas. No âmbito da CDH inúmeros projetos de lei, que afetavam ou afetam a vida dos povos indígenas, seus direitos e interesses foram debatidos e inclusive rejeitados. Com as decisões da Comissão de Direitos Humanos alguns projetos de lei que visavam exclusivamente desfazer atos do Poder Executivo quanto às demarcações de terras, os chamados PDCs, que tentavam, como último caminho, impugnar procedimentos demarcatórios, não prosperavam e eram retirados das pautas de votação e de tramitação em outras comissões parlamentares que também deveriam se manifestar sobre o assunto.

IHU On-Line - Como o senhor percebe a conjuntura indigenista brasileira, de modo geral, pensando na cultura de nosso povo em relação aos povos indígenas? Há alguma mudança de foco, de olhar, nos últimos 10 anos? 

Roberto Antonio Liebgott - Os povos indígenas ainda são vistos pela sociedade, de uma maneira geral, como “seres vinculados ao passado”. As imagens, os estereótipos, os acontecimentos e até as celebrações ou eventos culturais veiculados sobre os povos indígenas têm geralmente uma referência a estes sujeitos como pertencentes ao passado, embora presentes na contemporaneidade, de tal modo que se pretende que suas culturas sejam fixas e voltadas para um tempo remoto. Assim, estranha-se, por exemplo, o fato de que os indígenas portem ou consumam bens tecnológicos, ou que vivam em espaços próximos ao que chamamos de mundo urbano. Há ainda uma representação de primitivismo que marca o olhar para os povos indígenas. Deseja-se encontrar neles um perfil que se encaixa com essa representação e espera-se deles uma vida inserida apenas nas florestas e matas, enquanto que, na realidade, estes habitam espaços variados e estão presentes no cenário político, apresentando suas lutas e reivindicações. Pensá-los como povos do passado e com primitivos justifica, por exemplo, a noção de que seriam signos de atraso, em um país que vislumbra o desenvolvimento. E essa visão contribui para que os direitos indígenas também sejam negligenciados pelos governantes, autoridades judiciárias e pelo parlamento brasileiro. Demarcar terras para eles, quando há sobre essas mesmas terras interesses mercantis, empresariais e exploratórios, parece absurdo a quem os imagina como entraves, obstáculos e signos de atraso. 

É em função a dessa visão equivocada que as políticas do Estado brasileiro são desconectadas das diferentes realidades indígenas no Brasil. Há no país 240 povos, que falam pelo menos 180 línguas diferentes e com uma população superior a 800 mil pessoas. Eles ocupam 1064 terras indígenas, das quais apenas 364 estão regularizadas. Muitos grupos indígenas, mais de 90, vivem em situação de isolamento na Amazônia, ou seja, eles não estabelecem contato e nenhum tipo de relacionamento com a nossa sociedade. Mas também existe uma expressiva parte da população indígena que vive em centros urbanos e desfruta muito precariamente dos direitos resguardados na Constituição Federal.

Respeito à diversidade

Essas realidades exigem uma compreensão que ultrapassa as normas e regras administrativas dos poderes públicos, portanto requer que sejam pensadas políticas que respeitem a diversidade de povos e culturas e que os proteja das violências impostas pelos setores da sociedade que buscam explorar a terra, os recursos hídricos, minerais e ambientais. Exige também que os direitos indígenas, expressos na Constituição Federal (artigos 231, 232, 215, 210) sejam assegurados como os demais direitos, a exemplo do tão referido direito de propriedade (comumente utilizado pelos defensores do agronegócio para se contrapor à demarcação das terras e a reforma agrária) e não relativizados em função de interesses econômicos.

É preciso registrar que hoje, especialmente através das redes sociais, uma parcela importante da população brasileira tem manifestado posições favoráveis aos povos indígenas. Foi assim, por exemplo, que se espraiou recentemente uma onda de protestos virtuais em favor dos Guarani-Kaiowá, um movimento designado Somos Todos Guarani. Nas redes sociais e nas ruas as pessoas protestaram e especialmente os jovens se inseriram nesta campanha em favor da vida. Também merece referência o apoio à luta contra a expulsão dos indígenas da Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro. Vemos que os povos indígenas são, na atualidade, um dos importantes segmentos a gerar mobilizações no país, especialmente no meio da juventude. Isso nos dá esperança.

IHU On-Line - Como a defesa pelo agronegócio por parte do governo do PT se contrapõe à luta dos povos indígenas pela demarcação de terras? 

Roberto Antonio Liebgott - Ao analisar a questão indígena no Brasil não se pode deixar de considerar a influência ideológica dos setores econômicos que exploram a terra através do que se denomina agronegócio. E para ilustrar, lembro uma expressão usada pelo ex-presidente Lula “nunca antes na história deste país” se viveu um período em que a pecuária e a agricultura (setor agrário) esteve tão fortemente articulado em âmbito nacional. Nunca, como agora, os maiores latifundiários, os grandes arrendatários e grileiros de terras situadas no Centro-Oeste e Norte do Brasil tiveram tanto poder e influência política. Eles pressionam e atuam decisivamente, pela defesa do agronegócio e do latifúndio, junto aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Os ruralistas, como são chamados no Congresso Nacional têm a maior bancada parlamentar, mais de 240 deputados e senadores e, para além, conquistaram a simpatia da quase totalidade dos congressistas.

Não bastasse essa força no parlamento eles conduzem o governo e suas políticas para a direção que melhor lhes convier. Não é a toa que a senadora Katia Abreu, apesar das denúncias de grilagem de terras e de que em suas propriedades ou de seus familiares há a exploração de trabalho análogo à escravidão, tem trânsito livre em todas as instâncias dos poderes, especialmente junto à Presidência da República. Também na grande mídia ela tem espaço garantido, inclusive com coluna semanal no jornal Folha de S. Paulo, onde ocupa o espaço para divulgar as ambições do agronegócio e ao mesmo tempo para questionar e responder aos que fazem oposição ao modo de produção agrícola, suas consequências e o método autoritário de impor suas ideias. 

A força ideológica do agronegócio

A força do agronegócio é mais do que econômica, ela é ideológica. O pensamento daqueles que defendem que a terra deve ser útil na medida em que ela tem capacidade de gerar lucro, ou seja, enquanto ela tiver condições de ser economicamente viável, é difundido como uma verdade absoluta através da mídia, do parlamento e nas políticas públicas. Está nesta lógica de pensamento o grande “nó” entre os direitos indígenas e as decisões que o governo vai tomando. O desenvolvimentismo concebido neste governo pela presidente Dilma e pelos que a cercam e a assessoram é uma confissão de fé ao capitalismo predatório. Portanto, eles não têm intenção e nem interesse em discutir e observar alternativas que não a que confessam como um fundamentalismo religioso. Como afirma Iara Tatiana Bonin, no artigo intitulado “Premissas Universais do Reino do Agronegócio” , “vemos emergir também aqui um tipo particular de fundamentalismo – vinculado a um único ponto de vista sobre o desenvolvimento nacional, tomado então como absoluto, inquestionável, verdadeiro e bom em si mesmo. Esse novo ‘desenvolvimentismo’ emerge como uma urgência, que deveria ser assumida como prioridade política e pública, acima de qualquer outro aspecto da vida social ou, melhor ainda, submetendo tudo o que é social ao plano das métricas e equações econômicas”.

Os direitos indígenas, os direitos ambientais, dos quilombolas são os entraves a essas concepções. Não é por acaso que o ex-presidente Lula se posicionava, em diversas circunstâncias, favorável ao agronegócio, desafiando inclusive os pequenos agricultores e o MST a produzirem em quantidade e “qualidade” compatível com a de fazendeiros de Mato Grosso (como se isso fosse possível, considerando-se a desigualdade em termos de proporção de terras, de financiamento e de concessões públicas). Também não foi por acaso que ele questionou os militantes e ambientalistas, tentando ridicularizar suas lutas em defesa do meio ambiente e contra as barragens. Não foi por acaso que ele, também em discurso público, recomendou que os “índios deveriam deixar de pescar e caçar com arco e flecha e passassem a pescar em tanques e açudes”, numa clara referência de que o governo não quer e não vai demarcar terras indígenas.

Demarcações paralisadas

A presidente Dilma, através de seus ministros, assessores e servidores, especialmente da Funai, tem deixado claro que as demarcações de terras vão continuar paralisadas. A presidente não quer problemas com sua base de sustentação, especialmente com “a turma” do PMDB e “a turma” da CNA, coordenada pela senadora Kátia Abreu. É por conta dessas decisões que as terras do Povo Guarani-Kaiowá não estão sendo demarcadas e muitas famílias continuam submetidas a uma vida de riscos e violências à beira de rodovias ou em áreas de confinamento populacional. É também por isso que os fazendeiros e latifundiários daquela região se sentem cada vez mais empoderados e autorizados a declarar seu desprezo e aversão aos povos que habitam tradicionalmente as terras que muitos deles são proprietários e exploram.

Neste contexto, o direito à terra tem sido não apenas negligenciado, mas veementemente contestado, especialmente em estados que afirmam ter vocação para a produção agropecuária e que, por isso, buscam estender ao máximo os limites dos latifúndios. É o que ocorre hoje, por exemplo, em Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Os principais argumentos utilizados para colocar em questão o direito dos povos indígenas – e particularmente dos Guarani-Kaiowá e dos Guarani – às terras tradicionais podem ser resumidos em quatro enunciados, sendo dois deles herança do ideário ditatorial dos anos 1970, reeditados hoje com uma nova roupagem: o primeiro é o de que seria muita terra (produtiva) para pouco índio – tese retomada para dizer que não haveria interesse em assegurar o direito de usufruto exclusivo sobre as terras, posto que estas são pretendidas para a produção em larga escala. A menção a dados estatísticos e quantificações é uma das principais estratégias usadas para conferir legitimidade aos discursos de setores ruralistas, que tem na senadora Kátia Abreu uma das principais porta-vozes. Em seus últimos pronunciamentos, a parlamentar, que é também presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, faz questão de divulgar dados sobre a população indígena brasileira e extensão de terras demarcadas e a demarcar, reativando a tese de que se trata de “muita terra para pouco índio”. 

Direito originário e inalienável

O segundo argumento usado para contestar o direito indígena apregoa que os procedimentos de demarcação das terras destes povos ferem o estado democrático de direito e criam insegurança jurídica, já que os títulos de propriedade sobre certas terras (indígenas) foram adquiridos por terceiros antes da promulgação da Constituição. Vale lembrar que os povos indígenas têm direito originário e inalienável sobre suas terras, e mesmo que tal direito tenha sido reconhecido na Constituição de 1988, diz respeito a algo que antecede a formação do Estado nacional. O terceiro argumento é o de que os indígenas estariam sendo manipulados por ONGs e pela Funai, o que reacende a tese da incapacidade destes povos para definir suas demandas e reivindicações e para traçar com autonomia as estratégias de luta pela garantia de seus direitos. Por fim, o quarto argumento é o de que a Fundação Nacional do Índio seria incapaz de interpretar os “verdadeiros” anseios destes povos e comunidades, que reivindicariam assistência e benevolência e não a demarcação de suas terras. Tal reivindicação se fosse real, seria equivalente a dizer que os índios abrem mão do controle de seus territórios para viver do assistencialismo e das migalhas deixadas para eles.

Os povos indígenas têm sido, mais do que nunca, considerados entraves ao modelo desenvolvimentista que se pretende implantar. Não é à toa que, há anos, no Mato Grosso do Sul são registrados os maiores índices de assassinatos, atropelamentos com mortes e lesões corporais e suicídios. Aliás, um dos efeitos mais visíveis da precarização das condições de vida dos Guarani-Kaiowá é o alarmante aumento no número de suicídios, praticados por uma parcela muito jovem da população. Para além da questão dos suicídios há suspeitas de casos que aparentemente foram suicídios, na verdade são assassinatos. Sobre os atropelamentos, que ocorrem quase que cotidianamente, o Conselho da Aty Guasu denuncia que são assassinatos disfarçados. Normalmente os atropelamentos ocorrem com a fuga do condutor do veículo.
Enquanto eu respondia a essa entrevista, fomos comunicados pelos Guarani-Kaiowá que uma criança de quatro anos foi atropelada e morta na BR-463, km 06, em Dourados-MS, nas proximidades da terra Apikay , onde nos últimos dois anos cinco pessoas morreram vítimas de atropelamentos. A terra referida é utilizada para o plantio de cana de açúcar e onde há constantes ameaças às lideranças da comunidade que reivindicam a demarcação da terra, que está em estudo pela Funai há mais de cinco anos. 

A escassez de terra e a morosidade nos procedimentos de demarcação são a causa principal das violências praticadas contra os indígenas. Nos governos petistas dos últimos anos registram-se os menores investimentos e ações para a garantia desse direito. Especificamente para os Guarani-Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, entre 2004 e 2009 o governo Lula demarcou apenas quatro áreas, correspondendo apenas a 17.164 hectares. Nos quase dois anos do governo Dilma, nenhuma área foi demarcada. Isso demonstra, por um lado, a conduta do Governo Federal de desrespeito sistemático aos direitos indígenas e, por outro lado, a tendência de fortalecimento do agronegócio, que se esparrama sobre as áreas indígenas que o mesmo governo recusa-se a demarcar. O resultado dessa relação governo-agronegócio é o agravamento dos conflitos e das violências.  
IHU On-Line - O que os dados da execução do orçamento indigenista, ao longo da última década, demonstram sobre a posição do PT em relação aos povos em questão?

Roberto Antonio Liebgott - A análise dos dados orçamentários dos últimos dez anos tem demonstrado uma diminuição de rubricas importantes do Orçamento Indigenista, aliada à baixa execução dos recursos aprovados, o que revela que os direitos indígenas não são prioridades para o governo federal. Há rubricas do orçamento indigenista que apresentam, ao final de cada ano, uma execução menor que 50%, a exemplo daquela que se destina à demarcação das terras indígenas e, no quesito da atenção à saúde indígena, também deixam de ser aplicadas parcelas significativas de recursos no tópico saneamento básico. Enquanto isso, as 1.060 terras indígenas, apenas 364 estão devidamente regularizadas, portanto não se justifica a falta de execução orçamentária. Além disso, povos como os Xavante tem sido vítimas de epidemias e mortalidade infantil decorrente de desnutrição e desidratação, aspectos que poderiam ser adequadamente tratados com recursos de saneamento básico.

A falta de execução do orçamento destinado à temática indígena – que fica contingenciado – tem conduzido ao sucateamento do órgão indigenista, que funciona de forma precária em várias regiões do país, até mesmo em sua sede nacional, em Brasília, onde já esteve ameaçado de interdição pela Defesa Civil. Em várias localidades nos chegam informações de funcionários do órgão indigenista que deixam de visitar as comunidades indígenas por falta de combustível. Além do sucateamento através do enxugamento orçamentário, vimos também a Funai sofrer um intenso processo de “restruturação” sem nenhum tipo de consulta aos mais interessados, os povos indígenas. Até hoje, as chamadas CTLs (Coordenações Técnicas Locais) estão desestruturadas e sem orçamento.

IHU On-Line - Quais os caminhos para se discutir políticas públicas aos povos indígenas, para que não sejam tratados como "entraves" no modelo de desenvolvimento capitaneado pelo governo federal?  

Roberto Antonio Liebgott - Inicialmente é preciso destacar que muitos caminhos já foram pensados e propostos pelo movimento indígena nestas últimas décadas. Em suas mais variadas manifestações, em diferentes contextos e regiões brasileiras, os povos indígenas tem reiteradamente afirmado que o primeiro passo é a garantia das terras, via demarcação – o que implica numa firme posição do poder público em direção ao cumprimento de determinações constitucionais sem subterfúgios e sem ceder a pressões políticas contrárias a esta determinação. Em relação a uma atenção diferenciada em educação, saúde, subsistência, entre outros aspectos, também os povos indígenas tem apresentado proposições contextualizadas e condizentes com as diversas realidades socioculturais existentes, nas quais o respeito à diferença é sempre fundamental. 

Para que uma verdadeira política de respeito aos povos indígenas seja construída neste país, é preciso rever a forma como se tem investido na “participação indígena”.  Nestes dez anos de governo petista, a participação indígena se deu na criação de instâncias nas quais as decisões governamentais são comunicadas aos representantes indígenas, portanto como fatos consumados (para que acatem e se beneficiem das ações compensatórias de obras ou políticas que seriam implementadas com ou sem a concordância das comunidades e povos afetados). É necessário, portanto, assegurar a estes povos uma efetiva participação na definição e no controle social de políticas e ações que lhes dizem respeito. O que se espera, afinal de contas, desse governo, é que respeite o sólido conjunto de princípios estabelecidos tanto na Constituição, quanto em convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, a exemplo da 169.

O que precisa mudar também é o lugar social atribuído aos povos indígenas, aos quilombolas e outras comunidades tradicionais – não podem mais ser vistos como residuais, não podem ser entendidos como obstáculos a algo maior. Qualquer projeto econômico, político e social precisa incluir essas comunidades e povos por seu potencial sociocultural, com respeito e consideração aos seus modos de viver. Enfim, é a premissa de um modelo único de desenvolvimento, que somente olha para os aspectos econômicos, que precisa ser problematizada e desconstruída. E se essa é uma tarefa que compete ao governo, não é de sua exclusiva responsabilidade, posto que é a valorização social de certos aspectos da vida que avalizam ou desautorizam ações do governo. Cabe a todos nós, portanto, um envolvimento na discussão e definição de princípios para um governo respeitoso para com todos os segmentos sociais, incluindo os povos indígenas. Cabe também a todos nós manifestações veementes de desaprovação e de descontentamento para com os rumos das políticas públicas, das quais todos participamos, como contribuintes, arcando, portanto com os custos.

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