quinta-feira, 22 de setembro de 2011

ÉTICA E POLÍTICA


Publicarei em três post algumas reflexões de Marilena Chauí sobre Ética e Política. São reflexões que vale a pena ler e entender no contexto atual. A seguir a primeira parte.

 Por Marilena Chauí

A Política foi uma coisa inventada pelos gregos. Isto não quer dizer que antes dos gregos, antes dos romanos não houvesse o exercício do poder, não houvesse governo, não houvesse autoridade. Claro que havia, nos grandes impérios que existiram antes e depois do mundo grego e do mundo romano. Mas qual era a marca do poder nestes grandes impérios antigos. A marca era a identidade entre o poder e a figura do governante. O governante era a encarnação do poder. Como pessoa encarnava nele a autoridade inteira, o poder inteiro. Ele era o autor da lei, o autor da recompensa, o autor do castigo, o autor da justiça. Ou seja, a vontade do governante, a vontade pessoal, individual dele era a única lei existente. O que nós podemos dizer não é que não houvesse o poder, a autoridade antes dos gregos e dos romanos. Pelo contrário, a imensidão dos grandes impérios antigos mostra que o poder estava lá. Qual é a diferença entretanto dos gregos e romanos face a estes grandes impérios, a este grande poder que havia na antigüidade? Antes dos gregos e dos romanos, a característica do poder era a identificação entre o ocupante do poder e o próprio poder. Ou seja, o governante era o próprio poder. Isto quer dizer uma coisa muito simples: a vontade do governante, a sua vontade privada, pessoal, sua vontade arbitrária, caprichosa, o que lhe desse na telha, era a lei. E era ela o critério para a guerra, para a paz, para a vida, para a morte, para a justiça, para a injustiça. Que fizeram os gregos e os romanos?

Eles inventaram a Política.

Ou seja, eles criaram a idéia de um espaço onde o poder existe através das leis. As leis não se identificam com a vontade dos governantes, elas exprimem uma vontade coletiva. Essa vontade coletiva se exprimia em público, nas assembléias, através da deliberação, da discussão e do voto. Ou seja, os gregos e os romanos submeteram o poder a um conjunto de instituições e a um conjunto de práticas que fizeram dele algo público, que concernia à totalidade dos cidadãos, e que era discutida, deliberada e votada por eles. E, portanto, eles criaram a esfera pública. Aquilo que nós chamamos de esfera pública. Ou seja, ninguém se identifica com o poder, a vontade de ninguém é lei, e portanto a autoridade é coletiva, pública, é aquilo que constitui o cidadão. Os gregos puderam e depois deles os romanos distinguir com muita clareza a autoridade política ou autoridade pública e a autoridade privada. Não por acaso a autoridade privada tem um nome muito especial. Em grego o chefe de família, que é aquele que detém a autoridade do espaço privado (e detém esta autoridade exclusivamente por sua vontade - a vontade dele é a lei), o chefe de família se chama “despotes”. E é porque a autoridade privada do espaço privada da família é a autoridade do “despotes” (a autoridade absoluta de vida e morte sobre todos os membros da família), é que a autoridade no espaço privado se chama despótica. E os gregos diziam: quando a autoridade for despótica, o espaço público foi tomado pelo espaço privado e a Política acabou. A condição da Política é que não haja despotismo.

Cristianismo: público x privado

O cristianismo vai criar um problema no campo da Política. Por que? Porque se para os antigos era no espaço público que a Ética melhor se realizava, no momento em que com o Cristianismo o espaço público é recusado em nome do espaço privado, do recinto, do coração e da consciência, o que acontece? O que acontece no momento em que surgem as autoridades cristãs? Ou seja, como é que vai haver um espaço público cristão? Já que a autoridade e a Ética são pensadas de maneira privada? Ou seja, Deus é o Pai, Deus é o Senhor, os cristãos são a sua família. Ele é o pastor de um só rebanho. Todas as metáforas e todas as palavras que indicam a autoridade no mundo cristão pertencem ao espaço privado: é o pai, é o senhor, é o pastor, o rebanho. Como é que isto vai se constituir como um espaço público? Não há como constituir como espaço público. Nós poderíamos ir enumerando uma série de características do poder medieval e portanto do poder cristão ou daquilo que agente pode chamar o poder teológico-político pelo qual o governante é uma figura privada. O espaço do poder é um espaço privado. E a Ética é a Ética da pessoa do governante. É ele que tem que ser educado para as virtudes. É ele que não pode ter vícios. É ele que tem que cumprir o dever porque das qualidades dele dependem as virtudes ou os vícios, a felicidade ou a corrupção do rei. Não existe portanto a esfera Política propriamente dita. Existe a esfera do poder mas não a esfera da Política.

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