Quando decidi, ainda no final do mês de dezembro, escrever esta análise de conjuntura acerca da política indigenista do governo federal, não havia acontecido o cruel assassinato de Vítor Pinto, criança Kaingang de dois anos, degolada enquanto era amamentada por sua mãe na rodoviária de Imbituba, Santa Catarina. O Cimi Sul emitiu uma nota, da qual destaco o seguinte trecho: “Vítor faleceu em um local que a família Kaingang imaginava ser seguro. As rodoviárias são espaços frequentemente escolhidos pelos Kaingang para descansar, quando estes se deslocam das aldeias para buscar locais de comercialização de seus produtos. A família de Vítor é originária da Aldeia Kondá, localizada no município de Chapecó, Oeste de Santa Catarina. Trata-se de um crime brutal, um ato covarde, praticado contra uma criança indefesa, que denota a desumanidade e o ódio contra outro ser humano. Um tipo de crime que se sustenta no desejo de banir e exterminar os povos indígenas”.
Destaco ainda aspecto da nota do Cimi Sul que “manifesta preocupação com o clima de intolerância que se propaga, na região sul do país, contra os povos indígenas. Um racismo – às vezes velado, às vezes explícito – é difundido através de meios de comunicação de massa e em redes sociais. Ocorrem, com certa frequência, manifestações públicas de parlamentares ligados ao latifúndio e ao agronegócio contrários aos direitos dos povos indígenas e que incitam a população contra estes povos. Em todo o país registram-se casos de violência e de intolerância contra indígenas e quilombolas, manifestadas concretamente nas perseguições, nas práticas de discriminação, na expulsão e no assassinato de indígenas. Nestes últimos dias – de 26 a 30 de dezembro de 2015 – pelo menos cinco indígenas foram assassinados no Maranhão, Tocantins, Paraná e Santa Catarina”.
Após esse registro, retomo a análise de uma política que é, em meu sentir, responsável por fatos como os acima relatados. A política, não fossem rastros de violências que ela deixou, poderia defini-la como um imenso vazio. Quase nada se fez, em 2015, no tocante às demarcações de terras, à exceção de sete áreas homologadas, sendo seis no estado do Amazonas, sob as quais não havia conflitos e litígios, e uma área no estado do Pará. Esta última só foi assinada porque se tratava de condicionante imposta para a construção da usina de Belo Monte. No que se refere a outros aspectos da política pode-se, igualmente, constatar a falta de ações estratégicas e de investimentos para a consolidação dos direitos indígenas.
A política indigenista foi, evidentemente, afetada pela crise econômica, jurídica e política que se impôs no Brasil ao longo de todo o ano. As instituições públicas acabaram, em alguma medida, implicadas, uma vez que as principais autoridades do país foram colocadas sob suspeição – presidente da República e seu vice, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Investigações da Polícia Federal e do Ministério Público dão conta da existência de um amplo esquema de corrupção, do qual participam centenas de parlamentares e servidores públicos.
Como em anos anteriores, verificou-se em 2015 a omissão do governo federal com a questão indígena, dada a baixíssima execução orçamentária nas ações voltadas para os povos indígenas. Na ação denominada “Delimitação, Demarcação e Regularização de Terras Indígenas”, até o início do mês de novembro, dos pouco mais de R$ 18 milhões previstos no orçamento, só foram liquidados pouco mais de R$ 2 milhões e 600 mil. Não foi usado nenhum centavo dos R$ 5 milhões previstos para “Indenização aos atuais possuidores de Títulos das áreas sob Demarcação Indígena”, nem dos R$ 30 milhões previstos para “Indenização para Solução de Conflitos Indígenas”.
A crise gerou insegurança política, jurídica, na governabilidade e afetou drasticamente a economia, impondo, especialmente aos trabalhadores e às camadas mais pobres e vulneráveis da população, a insegurança quanto ao cotidiano da vida, refletida em ameaças de desemprego, preços dos alimentos e dos vestuários em elevação, inflação crescente, o aumento de impostos, a recessão e a precariedade na assistência em educação, saúde e segurança.
É também a partir deste contexto que se deve avaliar a atuação do governo federal no que tange às políticas para indígenas, quilombolas e outros grupos ou comunidades tradicionais. Com a crise institucional, o governo, que já era omisso no que tange aos direitos indígenas e quilombolas, tornou-se ainda mais omisso. Em função disso, as violências praticadas contra os povos indígenas intensificaram-se em todo o país. Na ausência do poder estatal, a orientação política acabou sendo dada por aqueles setores da economia que ambicionam a exploração das terras. Terras que para os povos indígenas e quilombolas são base de sustentação física e cultural, enquanto que para esses setores são atrativas em função de suas potencialidades, tendo em vista a geração de energia hidráulica, exploração de minérios, expansão da agricultura – especialmente de soja, milho, cana-de-açúcar – e da pecuária.
As terras indígenas têm sido vistas como uma nova fronteira para a expansão da produção de grãos e de carne e aqueles que as habitam tradicionalmente são considerados entraves, no entendimento dos setores dominantes. Os povos indígenas são vistos como um “problema”, na medida em que atrapalham os planos de expansão produtiva e de um suposto desenvolvimento econômico.
O governo federal, dobrando-se à concepção desenvolvimentista, tomou a decisão de paralisar as demarcações das terras reivindicadas pelos povos ainda no ano de 2013 e manteve-se, em 2015, inoperante.
A ausência do Estado e a falta de regularização das terras são geradores de conflitos e violências, em especial nos estados do nordeste, sudeste e sul do Brasil. De acordo com o Cimi, há 1.044 terras indígenas no Brasil, dentre as quais apenas 361 estão registradas, outras 154 estão “a identificar” e 399 estão classificadas como “sem providências”. A ação política dos ruralistas motiva, fomenta e legitima as mais variadas práticas de violência contra indígenas e quilombolas. No período de 2003 a 2014, foram assassinados no Brasil 754 indígenas, sendo 390 no Mato Grosso do Sul.
No âmbito do Congresso Nacional estão sendo propostos projetos de lei e de emendas à Constituição Federal com o claro objetivo de inviabilizar as demarcações e de possibilitar a exploração dos recursos naturais das áreas homologadas. Só para se ter uma ideia da articulação e da força que se volta contra os povos indígenas no âmbito Legislativo, tramitam na Câmara dos Deputados e Senado Federal mais de 100 proposições que visam alterar artigos concernentes aos direitos indígenas na Constituição Federal.
Dentre as propostas legislativas mais perigosas encontra-se o Projeta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000 que visa alterar o texto constitucional para colocar sob responsabilidade do Poder Legislativo as demarcações de terras indígenas no país. O projeto prevê a autorização da esfera legislativa para se promover qualquer demarcação de terra, restringindo a ação administrativa do Poder Executivo. Com isso, todas as demarcações de terras indígenas e quilombolas passariam pelo crivo e aval dos parlamentares e cada demarcação exigiria a aprovação de uma lei específica. Os direitos indígenas, assegurados na Lei Maior do país, estariam suscetíveis aos interesses políticos de ocasião.
Além disso, terras demarcadas ao longo de décadas poderiam ser revisadas, caso a PEC fosse aprovada. A proposta aprovada na Comissão Especial, que segue para o Plenário da Câmara dos Deputados, inclui dispositivos que viabilizariam o arrendamento das terras indígenas – que são bens da União – possibilitando a terceiros a exploração e a obtenção de lucros. Inclui-se ainda outro dispositivo que rompe com a autonomia e o protagonismo dos povos ao restituir a categorização de distintos “estágios de desenvolvimento” e ao apregoar a gradativa inserção dos “índios” na sociedade nacional. Tal dispositivo colide com o disposto no Artigo 231 da Carta Magna, que reconhece aos povos indígenas suas organizações sociais, seus costumes, línguas, crenças e tradições. A proposição sinaliza um retrocesso nas formas como se estabelecem as relações do Estado brasileiro para com os povos indígenas.
Não bastassem os dispositivos inconstitucionais inseridos na PEC 215/2000, há ainda a incorporação das 19 condicionantes que o Supremo Tribunal Federal estabeleceu por ocasião do julgamento da ação popular que pretendia impugnar o procedimento de demarcação da terra Raposa Serra do Sol, em Roraima, o que, na prática, se constitui num grosseiro equívoco, uma vez que aquela decisão se restringiu à constitucionalidade da demarcação daquela terra e, portanto, não se vincularia aos procedimentos demarcatórios futuros, nem deveria ser generalizada e aplicada a outras.
A PEC 215/2000 também incorpora o que vem sendo denominado, no âmbito do Poder Judiciário, de marco temporal, tese sustentada no julgamento do caso Raposa Serra do Sol. Isso significa dizer que, se os povos ou comunidades indígenas não estivessem na posse da terra em 1988 ou não estivessem postulando a terra judicialmente ou em disputa física – o chamado renitente esbulho – eles perdem o direito à demarcação de áreas atualmente reivindicadas.
Esta interpretação é mais uma afronta aos direitos originários dos povos indígenas, pois ao impor esta tese descolada da história de resistência dos povos e comunidades indígenas, constitui-se uma grave contradição, impondo aos indígenas uma responsabilidade que não lhes competia antes da Constituição de 1988, qual seja, a de ingressarem em juízo, uma vez que eles eram tutelados pelo Estado. Atualmente, com o fim da tutela expressamente estabelecido em nossa lei maior, o Poder Judiciário não procede ao chamamento dos povos, quando da discussão de processos que lhes dizem respeito. Por isso, é necessário reafirmar que o entendimento dos ministros sobre o tema (renitente esbulho), no contexto da terra Raposa Serra do Sol, serviu para legitimar a demarcação, assegurando a posse indígena sobre terras onde se constituíram fazendas desde o início do século passado.
Muitos julgadores, desde aqueles de primeira instância, têm dificuldade em interpretar adequadamente as garantias expressas na Constituição Federal acerca das diferenças étnicas e culturais. Alguns juízes desconhecem concepções e modos de ser dos povos indígenas, bem como as formas como eles se relacionam com os “bens” materiais, culturais, imemoriais, históricos e com a terra. Os povos estabelecem vinculações ancestrais com seus espaços, são orientados por valores coletivos, pelo pertencimento étnico, pelas distintas religiosidades, ontologias e cosmologias. Por não entenderem estas diferenças, algumas decisões são equivocadas e podem restringir o direito à terra e, consequentemente, comprometer a qualidade de vida destes povos.
Parece-me haver três elementos jurídicos que têm gerado controvérsias nos julgamentos de tribunais referentes às demarcações e que tomam como base o marco temporal: há, nos julgados dos tribunais, insuficiente entendimento conceitual acerca da aplicação do marco temporal nos processos que envolvem a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas; há divergências entre os magistrados no tocante aos conceitos de direito indígena à terra – posse, ancestralidade, usufruto e bens da União – em relação a posse e propriedade oriundos do direito civil; há desconhecimento quanto à aplicabilidade do direito em relação às diferenças étnicas, culturais e ao fato dos povos indígenas terem sido considerados sujeitos de direitos individuais e coletivos - plenamente capazes (Art. 232 CF/1988).
Infelizmente, no contexto de adversidades econômicas e de crise política, vivida ao longo de 2015 em âmbito nacional, os setores conservadores ligados especialmente ao latifúndio, às mineradoras e ao agronegócio encontraram espaço profícuo para a promoção de uma intensa campanha contra os direitos indígenas e quilombolas. Como resultado, se pode acompanhar uma série de ações violentas contra as comunidades indígenas, suas lideranças e contra os bens indígenas, que são patrimônio da União. Em Mato Grosso do Sul, foi imposta por fazendeiros e parlamentares uma brutal ofensiva –especialmente difundida em meios de comunicação – contra as demarcações de terras. Como consequência, muitas pessoas foram espancadas, ameaçadas, baleadas, assassinadas e comunidades inteiras acabaram submetidas à tortura e perseguição, como ocorreu nas áreas de Kurusu Ambá, Pyelito Kue, Serro Marangatu, Tey Kue, Tey Jusu, Potrero Guassu. No Maranhão, além das violências contra as comunidades e suas lideranças, os madeireiros protagonizaram ações de depredação e crimes ambientais, atendo fogo nas matas da terra indígena Awá Guajá, incêndio que consumiu centenas de milhares de hectares de floresta. Também no Maranhão, na divisa com o estado do Pará, madeireiros sequestraram e torturam dezenas de pessoas do povo Ka’apor e feriram à bala várias lideranças que se opunham à exploração madeireira.
Outra estratégia dos setores contrários aos direitos às demarcações de terras foi o da criminalização dos defensores e apoiadores dos povos indígenas. Em Mato Grosso do Sul parlamentares criaram uma CPI para investigar a atuação do Cimi e promoveram uma intensa campanha de perseguição aos missionários e seus familiares. Em âmbito nacional, foi criada uma CPI para investigar a Funai e o Incra, órgãos responsáveis pela demarcação de terras indígenas e quilombolas. A intenção das bancadas ruralistas – em âmbito estadual e federal – é desqualificar os direitos indígenas e quilombolas e intimidar todos aqueles que lutam pela sua defesa.
Diante desse contexto, como dar segmento às lutas pela garantia dos direitos povos originários e as comunidades tradicionais? Como enfrentar as adversidades, numa conjuntura absolutamente desfavorável à grande maioria da população pobre e excluída de nosso país?
Certamente estes povos e comunidades deverão manter um processo de mobilização pela garantia de seus direitos e convocar os demais setores da sociedade que sofrem a violência da discriminação, da falta de segurança, da falta de políticas que lhes assegurem moradia, saúde, educação, terra e emprego a somarem forças contra o projeto capitalista desenvolvimentista posto em curso em nosso país.
A lógica desenvolvimentista vai de encontro à ideia do bem viver indígena. A primeira apregoa que tudo deve se converter em recurso – ambiental, territorial, humano – e a segunda prioriza a vida. A lógica desenvolvimentista baseia-se na concorrência e incentiva as pessoas a gerir suas vidas como se estivessem gerindo uma empresa, a lógica do bem viver indígena fundamenta-se numa visão de compartilhamento de espaços e de solidariedade entre as pessoas. A lógica desenvolvimentista faz com que vejamos em um rio um potencial de exploração hídrica, enquanto que a lógica do bem viver indígena põe no foco do olhar as possibilidades de interação com o rio e com tudo o que nele habita (incluindo os seres que não podemos ver).
A garantia dos direitos sociais passa necessariamente pela transformação do modelo de sociedade em que vivemos – marcadamente competitiva, individualista e consumista – pois neste modelo dificilmente ganham relevância as lutas mais amplas e nele os coletivos que não regem suas vidas pela lucratividade são vistos como obsoletos. O imediatismo e o individualismo degeneram as condições de vida compartilhada, e nos coloca, a todos, numa condição de insegurança e de instabilidade permanente.
Se temos a oportunidade de vislumbrar um futuro diferente, é porque existem lutas coletivas – de indígenas, de quilombolas, de grupos sociais vinculados na defesa de direitos das comunidades tradicionais, das crianças, das mulheres, dos homossexuais, dos negros, dos chamados “deficientes”. Esses coletivos de luta vislumbram um mundo melhor, acreditam que é possível construirmos uma sociedade na qual se resguardem os direitos de todos.
O bem viver (para todos nós) não pode ser conquistado sem que haja uma radical mudança nas concepções e políticas destes tempos em que vivemos. Precisamos, então, permitir que as concepções indígenas permeiem e reconfigurem as prioridades que temos assumido e as formas como temos lidado com o ser humano, com a terra, lugar comum sem o qual não temos futuro, nem esperança.
Porto Alegre, RS, 06 de janeiro de 2016
Roberto Antonio Liebgott / Cimi Sul - Equipe Porto Alegre.
Fotos: Marcello Casal/Agência Brasil
Tiago Miotto/Cimi
Fábio Nascimento/Mobilização Nacional Indígena
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