Por Marcelo Charleo, Roberto Liebgott e Onir de Araújo*
Está na pauta de julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF), do dia 16 de agosto, o julgamento de três processos envolvendo terras indígenas demarcadas pelo Poder Executivo e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra decreto que regulamenta a demarcação de terras quilombolas. Serão, portanto, julgadas a Ação Civil Originária (ACO) 469, que teve pedido de vistas da ministra Carmen Lúcia, que trata de discussão sobre a nulidade de títulos sobrepostos à terra indígena Ventara, do Rio Grande do Sul; a ACO 362, com relatoria do ministro Marco Aurélio e que discute pedido de indenização do Estado do Mato Grosso alegando que a União definiu indevidamente os limites do parque e se apropriou de áreas do estado, mas que na prática discute a demarcação do Parque Nacional do Xingu; a ACO 366, também relatada pelo ministro Marco Aurélio, que discute pedido de indenização por desapropriação indireta de terras que teriam sido ilicitamente incluídas dentro do perímetro das reservas indígenas Nambikwára e Parecis e das áreas a elas acrescidas; e a ADI 3239/DF que trata da constitucionalidade do Decreto 4887/2013 que regulamenta as demarcações das terras quilombolas, julgamento que teve dois votos, o do relator do processo, do então ministro Cezar Peluzzo que se manifestou contra o decreto e o voto favorável a sua constitucionalidade proferido pela ministra Rosa Weber.
Todas as ações relativas às demarcações de terras indígenas discutem aspectos relativos à ocupação tradicional indígena assim como no caso dos territórios quilombolas. Significa dizer que os ministros podem, durante estes julgamentos, discutir a tese jurídica do Marco Temporal, supostamente decorrente da Constituição Federal de 1988, conceituando, por esse prisma, o que é ou não área tradicionalmente ocupada por esses povos ou comunidades. No caso das demarcações das terras quilombolas se questiona a constitucionalidade do decreto e já se iniciou, como apontado acima, o debate, tendo, pois, incluindo ainda a discussão para a fixação da marcação temporal com lastro na Constituição Federal de 1988.
Tendo presente que os ministros do STF pautaram os julgamentos relativos às demarcações de terras indígenas e quilombolas, a Frente Parlamentar da Agropecuária, comandada pelos deputados federais Nilson Leitão, Luis Carlos Heinze e Alceu Moreira, entre outros, decidiu se antecipar ao debate e propôs - de antemão - uma negociação – na verdade uma chantagem - exigindo que o governo federal adotasse medidas no sentido de inviabilizar demarcações de terras indígenas. Como contrapartida, a bancada ruralista garante o apoio de parlamentares contra o pedido, apresentado pela Procuradoria Geral da República, de abertura de processo de crime comum, no âmbito STF, contra Michel Temer. Vídeo do deputado Luis Carlos Heizen, que circula nas redes sociais, confirma as pressões da bancada ruralista sobre o governo Temer, especialmente sobre o Ministério da Justiça e a Advocacia Geral da União (AGU).
Medidas preparatórias e de legalidade e legitimidade duvidosas sob o ponto de vista jurídico já haviam sido tomadas em setembro do ano passado, no que se refere às comunidades quilombolas, através da Sub Chefia de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República, SAJ, de nº 2897/2016, que recomendava entre outras medidas em decorrência do resultado parcial com voto em favor da ADI a interrupção dos processos de demarcação e titulação, como medida para evitar “insegurança jurídica maior”. O órgão também justificou a devolução de todos os processos de demarcação de territórios quilombolas à Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário (SEAD/MDA) para revisão e ajustes, alegando que caberia ao órgão “decidir a ordem em que se dará a regularização”, tal medida, de flagrante ilegalidade levou a 6ª Câmara de Revisão a publicar uma Nota Técnica no dia 19 do corrente mês denunciando a flagrante ilegalidade da orientação da Casa Civil da Presidência da República, in verbis: A Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF) defende, em nota técnica divulgada nessa quarta-feira (19), o prosseguimento dos processos de demarcação e titulação de terras ocupadas por comunidades quilombolas. O documento dirigido à Casa Civil da Presidência da República pede que seja suspensa orientação recente do órgão para que demarcações sejam interrompidas até a conclusão de julgamento sobre a legalidade do processo no Supremo Tribunal Federal (STF).
Nessa esteira de ataques e medidas preparatórias com cunho categoricamente anti-indígenas e antiquilombolas foi editado o Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU e aprovado pelo presidente Michel Temer, estampando, portanto, a negociata estabelecida com a bancada ruralista. O parecer retoma a portaria 303/2012 da AGU, sobre a qual recaíram severas críticas do Ministério Público Federal, povos, comunidades e organizações indígenas e entidades indigenistas e, por consequência, acabou sendo suspensa pelo Poder Executivo. A referida portaria pretendia impor aos procedimentos de demarcação de terras, a tese do marco temporal e as 19 condicionante definidas durante o julgamento pelo STF da Pet 3388/2009, relativa à demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol. Na ocasião, os ministros da Suprema Corte decidiram que o procedimento de demarcação daquela terra era válido e que as condicionantes nele estabelecidas não se vinculariam a outras demarcações de terras. A AGU, não satisfeita, tentou em 2012 impor sua interpretação do julgamento com a pretensão de atender a interesses econômicos e políticos – como os da bancada ruralista – inviabilizando a demarcação, o reconhecimento e a proteção das terras indígenas.
O parecer atual, contudo, segue na mesma monta da portaria arquivada, ou seja, impor a vontade e os interesses dos exploradores sobre os direitos indígenas e quilombolas e na prática, se a reforma trabalhista nos faz retroceder a situação anterior a era Vargas, o objetivo e o foco desses setores é reconstituir a Lei de Terras de 1850. Essa é a estratégia. E pior, negociam com aqueles que se encontram na administração dos poderes públicos benesses e favores submetendo o direito a uma condição vulnerável, o qual vale apenas para os que detêm ou são os selecionados e acolhidos pelos interesses econômicos hegemônicos ou em disputa, transformando o direito num privilégio, como se vivêssemos num regime de exceção. Lamentavelmente é o que parece ocorrer no atual contexto político e jurídico em nosso Brasil.
Tanto a tese do Marco Temporal, que não se encontra entre as 19 condicionantes, mas apenas é referida em votos de ministros no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, como as condicionantes não encontram guarida no texto constitucional relativo às demarcações de terras. As interpretações jurídicas do direito não podem se pautar por interesses políticos e econômicos. O resultado do julgamento da ação popular contra Raposa Serra do Sol demonstra, em certa medida, que, para além da legitimidade da demarcação, se pretendia impor limites às demandas indígenas. O voto-vista apresentado pelo ministro Carlos Menezes Direito - no qual propôs as 19 condicionantes e o marco temporal ao procedimento demarcatório daquela terra - deve ser analisado com cuidado para que não sejam generalizadas as decisões daquele julgamento. Isso porque, sobre as condicionantes e o marco temporal foram interpostos vários embargos de declaração tanto com o intuito de rejeitar as condicionantes, ou para vinculá-las às demais demarcações de terras no país. Os embargos da Pet 3388/RR foram julgados e os ministros do STF, em sua maioria, se manifestaram no sentido de restringir – condicionantes e o marco temporal – ao caso concreto de Raposa Serra do Sol.
Adite-se: os atuais estudos demarcatórios realizados pela Funai – no caso dos povos indígenas – e pelo Incra – relativo aos quilombolas –, seguem ritos definidos por normatizações administrativas, já apresentadas: o Decreto 1.775/96, a Portaria 14/96 e o Decreto 4887/2003, onde se prevê investigações históricas, antropológicas, arqueológicas, sociais, fundiárias e ambientais necessárias para avalizar ou rejeitar uma demarcação administrativa. O marco temporal - que ora se pretende ilegalmente e ilegitimamente resgatar - propõe a exclusão desses estudos e rompe com o que está expresso na Carta Magna de que “os índios tem o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, ou seja, aquelas condicionantes e aquele marco temporal, como então definidos STF, referem-se efetivamente a um conjunto de condições vinculadas ao caso específico da terra indígena Raposa Serra do Sol, e, portanto, não podem e nem devem ser extensivos a outros procedimentos. Sobre isso, o jurista José Afonso da Silva, declarou:
"A decisão do Supremo diz respeito a um caso específico. Não criou jurisprudência geral coisa nenhuma. Pode ser que, no futuro, o STF afirme alguma outra coisa, mas, até lá, um caso único e específico pode até criar um precedente, mas não uma jurisprudência. O que a AGU está fazendo é, a partir da sua própria interpretação do que os ministros decidiram em 2009, estender para todos os outros casos a decisão (Agência Brasil, 20/07/2012)".
Com o julgamento a Pet 3388/RR (DJe de 01/07/2010), o STF deixa evidente que o Art. 231, § 1º, da CF/88 não cria marco temporal vinculando as demarcações futuras, mas estabelece que no caso concreto da terra indígena Raposa Serra do Sol havia que se estabelecer, não somente um delimitador para reconhecimento da demarcação, mas acima de tudo para dizer que ao longo da história os povos daquela terra foram esbulhados. Justifica-se, neste caso, a argumentação do renitente esbulho. Segundo o STF, “o renitente esbulho se caracteriza pelo efetivo conflito possessório iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal da data da promulgação da Constituição de 1988, materializado por circunstâncias de fato ou por controvérsia possessória judicializada”.
Portanto, a polêmica estabelecida no âmbito do Poder Judiciário – através de decisões de desembargadores e ministros – utilizando-se da tese do marco temporal e do renitente esbulho serve, em essência, para estabelecer limites aos direitos indígenas e também quilombolas relativos às demarcações de suas terras, pois impõem que estes devem provar que estavam sobre a terra, ou em conflito e/ou em disputa processual pela área pleiteada naquele período – comprovando o renitente esbulho. Há, todavia, que se dizer que o esbulho contra indígenas e quilombolas é comprovado pela história passada e recente de nosso país. São fartas as bases documentais que comprovam terem ocorrido intensos conflitos, esbulhos e expulsões dos indígenas das terras onde habitavam tradicionalmente. Também são fartas as fontes que mostram que os povos eram impedidos de voltar às terras ou de pleiteá-las, dadas às pressões políticas e as violências sofridas. O renitente esbulho não deve e não pode ser caracterizado pelo conflito evidente, aparente ou de fácil caracterização, mas, sobretudo, deve ser investigado aquele que se prolongou ao longo do tempo em função de um leque interminável de circunstâncias, que não apenas os conflitos físicos, armados e/ou judicializados.
A presença contemporânea dos povos indígenas e das comunidades quilombolas em luta pela terra é, em essência, a comprovação do renitente esbulho. Eles não sucumbiram ao passado, vivem no presente e são eles – povos e comunidades de hoje – com quem o Estado e o Poder Judiciário devem se preocupar.
O jurista José Afonso da Silva acresce, a partir do julgamento da Pet 3388, quanto à ilegitimidade de algumas das condicionantes expressas naquele julgamento, de modo especial do “marco temporal de ocupação das terras indígenas pelos índios” . Para o Constitucionalista, o referido marco é questionável:
"Fixado pretorianamente de modo arbitrário como sendo a data da promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988. Questionável também por ter dado ao conceito uma dimensão normativa com aplicação geral a todos os casos de ocupação de terras indígenas".
O enunciado do acórdão do julgamento da Pet 3388 referindo que a “Constituição Federal trabalhou com data certa - a data da promulgação dela própria (5 de outubro de 1988) – como insubstituível referencial para o dado da ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia, ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários sobre as terras que ocupam” é entendido pelo jurista José Afonso da Silva como espoliador dos direitos fundamentais dos índios porque junta dois conceitos: o marco temporal em 05/10/1988 e o renitente esbulho”. O jurista pergunta:
"Onde está isso na Constituição? Como pode ela ter trabalhado com essa data, se ela nada diz a esse respeito nem explícita nem implicitamente? Nenhuma cláusula, nenhuma palavra do art. 231 sobre os direitos dos índios autoriza essa conclusão. Ao contrário, deve- se ler com a devida atenção o caput do art. 231, ver-se-á que dele se extrai coisa muito diversa. Vejamos: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, língua, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer espeitar todos os bens”.
Se são “reconhecidos... os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, é porque já existiam antes da promulgação da Constituição. Se ela dissesse: “são conferidos, etc.”, então, sim, estaria fixando o momento de sua promulgação como marco temporal desses direitos.
Conclui, assim, que são equivocadas as interpretações do Poder Judiciário no tocante ao marco temporal, pois a atual Constituição não limita os direitos ordinários dos povos indígenas às suas terras ao dia 05 de outubro de 1988, impedindo demarcações de terras para os povos que apenas conseguiram regressar a elas depois do advento da atual Carta Magna.
Adverte o afamado professor que:
"O termo “marco” tem sentido preciso. Em sentido espacial, marca limite territorial. Em sentido temporal, como é o caso, marca limites históricos, ou seja, marca quando se inicia algum fato evolutivo. O documento que marcou o início do reconhecimento jurídico-formal dos direitos dos índios foi a Carta Régia de 30 de junho de 1611, promulgada por Fellipe III, que firmou o princípio de que os índios são senhores de suas terras, “sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se lhes fazer moléstias ou injustiça alguma".
Acerca do instituto do renitente esbulho, observa que não é correto interpretar, à luz da Constituição Federal, que os conflitos envolvendo terras indígenas tenham um caráter tipicamente possessório na forma caracterizada pelo direito civil. Para o jurista, a ocupação indígena de suas terras não é uma mera posse, pois eles as ocupam com fundamento no indigenato. Para ele, a ocupação é fundada em direitos originários, de sorte que quando o não-índio se apossa dessas terras, ele não retira apenas a posse dos índios sobre elas, mas um conjunto de direitos que integram o conceito de indigenato.
Alerta ainda, de modo enfático, que a interpretação restritiva de esbulho renitente como controvérsia possessória judicializada é absolutamente inaceitável porque:
"A controvérsia não é tipicamente possessória..., ou seja, não é uma disputa individual em que um possuidor retira a posse do outro, pois os direitos ordinários dos índios sobre a terra, como visto no correr deste parecer, não pertence a eles como indivíduos, mas às comunidades indígenas; demais os índios e as comunidades indígenas antes da Constituição de 1988 não tinham legitimidade processual, pois estavam sujeitas ao regime tutelar, de sorte que exigir deles o cumprimento de ônus, qual seja a defesa das terras que ocupam, que são de propriedade da União, e que, pela sua situação de tutelado, não podem cumprir, é desconhecer que o direito se interpreta em relação ao contexto em que incide, sem levar em conta que a Constituição lhes garante também sua organização social, costumes e tradições. Demais, os direitos constitucionais dos índios são de natureza protetiva de minorias, e como tal devem ser interpretados sempre de modo favorável aos beneficiários, não se lhes impondo ônus fora de sua situação vivencial".
Ademais, sobre o renitente esbulho, há que se ressaltar, como já observou o ilustre professor, que até 1988 os povos indígenas eram tutelados pelo Estado, portanto, não poderiam pleitear seus direitos autonomamente (essa função era da União, através de seus órgãos de assistência). E há que se considerar as frequentes denúncias de que os próprios órgãos de assistência foram responsáveis pelo esbulho e exploração das terras, tendo alguns servidores públicos atuado para coibir e reprimir as comunidades e lideranças indígenas. No mesmo sentido, o Relatório Figueiredo traz com nitidez, atrocidades praticadas contra as comunidades indígenas nos anos de 1950 a 1970.
Portanto, se, no âmbito do Poder Judiciário, os indígenas não agiam porque eram impedidos, agora eles são considerados sujeitos de direitos individuais e coletivos – Artigo 232 da CF: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo” – e não podem mais ser ignorados. E, igualmente, não devem ser punidos porque não ingressaram com reclamatórias na justiça em um contexto no qual tal ação não lhes era facultada. Ainda hoje, observa-se que, na maioria das demandas contra as demarcações de terras, os povos e suas comunidades não estão sendo intimados ou citados para responder e se fazer representar. Isso implica, segundo a Constituição Federal, na nulidade das ações em que os povos não foram chamados para responder – sendo eles partes legítimas tanto no polo passivo como no ativo das ações.
Acerca das 19 condicionantes, a Suprema Corte foi enfática em dizer que a sua aplicabilidade é limitada, restringindo-se ao caso concreto de Raposa Serra do Sol. Na história brasileira há outras decisões que não podem ser generalizadoras. Podemos lembrar, por exemplo, de um marco da historiografia cearense, o Relatório da Província, escrito em 1863, no qual se decretava a extinção dos índios no estado do Ceará e a anexação dos territórios destes às glebas destinadas à colonização. Naquele, e em quase todos os estados, a ordem era favorecer os interesses dos setores regionais e nacionais dominantes, exterminando (ou extinguindo oficialmente) os indígenas para, assim, liberar as terras. Um século mais tarde, já não se decretava a inexistência dos povos indígenas e sim, a necessidade de promoção de sua “gradativa e harmoniosa integração”, através de um aparato jurídico e de ações assistenciais que visavam obter, pela via da integração da população indígena, a liberação das terras por eles ocupadas para os projetos de desenvolvimento nacional.
As condicionantes retomam argumentos reacionários em relação aos povos indígenas e contrariam os direitos constitucionais destes povos em aspectos cruciais. Um primeiro aspecto diz respeito ao direito de pleitear ampliação ou revisão de limites de terras já demarcadas. Embora, em geral, se utilize a expressão “ampliação de terras”, na grande maioria dos casos se trata de uma reivindicação justa de revisão dos limites estabelecidos pela Funai em um contexto de conflito, no qual o órgão indigenista aconselhou que os índios aceitassem uma redução da área para possibilitar a sua demarcação sem maiores embates (e tais procedimentos ocorreram em desajuste com o que determina a Constituição Federal). São muitas as terras indígenas demarcadas, sobretudo nos estados do Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, que demandam revisão de limites, pois tiveram uma drástica redução nas dimensões apontadas pelos grupos técnicos e não correspondem à área de ocupação tradicional de povos e comunidades indígenas. Citando um caso concreto, no estado de Santa Catarina, a área indígena Toldo Pinhal, do povo Kaingang, foi identificada pelo grupo técnico e recomendada para demarcação com uma extensão de 9.800 hectares, considerando a ocupação tradicional e as necessidades do grupo em questão. Contudo, a Funai demarcou apenas 980 hectares, portanto, uma área dez vezes menor. Como este, há dezenas de outros casos.
Sobre a interpretação de que não há possibilidade de se ampliar terras já demarcadas, o jurista José Afonso da Silva argumenta:
"O que é fundamental é que a Constituição, no caput do Art. 231, garante aos índios os direitos originários sobre as terras que ocupam. Então onde houver terras indígenas nessas condições, a demarcação é obrigatória. Os índios têm direito à demarcação de suas terras na sua totalidade. Esses direitos preexistem ao ato de demarcação, por isso mesmo a demarcação é reconhecida até pelo próprio Supremo Tribunal Federal como meramente declaratória. Ora, então, se forem indígenas as terras confinantes com terras já demarcadas, corre-lhes o direito à ampliação da demarcação até cobrir as áreas que ficaram fora da demarcação original".
O segundo aspecto diz respeito à restrição do usufruto exclusivo sobre as terras pelos índios, conforme estabelece o Art. 231 da Constituição Federal. As condicionantes limitam aos indígenas o usufruto de recursos existentes em suas terras restringindo as possibilidades apresentadas por outras normas legais. Além disso, determinam que seja dispensada a consulta prévia às comunidades quando houver interesse da União na implantação de empreendimentos em terras indígenas. Nesse sentido, a expansão da malha viária ou a geração de energia (via construção de hidrelétricas, por exemplo) poderia ser entendida como estratégica, dispensando a prévia consulta às comunidades que vivem nas terras afetadas? Tal aspecto afronta premissas da Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) para os Povos Indígenas e da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, esta última ratificada pelo Estado brasileiro, que determinam a realização de consulta prévia, livre e informada às populações indígenas sobre qualquer empreendimento que as afetem. A aplicação das condicionantes articuladas ao marco temporal parecem alinhadas ao desejo de colocar um ponto final nos procedimentos democráticos, que pressupõem consultas, debates, diálogos com a população envolvida.
Ao longo dos séculos, as terras indígenas acabaram servindo e/ou sendo utilizadas por diversos povos em função do direito originário. Direito anterior a outros direitos que possam incidir sobre terras indígenas. Neste sentido a demarcação tem a função de estabelecer os limites espaciais de uma determinada terra e assegurar aos povos ou comunidades o direito de usufruir delas dentro de uma perspectiva de futuro. Segundo Marco Antônio Barbosa, a Constituição assegura os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam numa perspectiva de esclarecer que a utilização e relacionamento dos povos com as terras são de outra natureza:
"Visou o legislador constituinte deixar claro que o Estado brasileiro reconhece aos índios direitos territoriais preexistentes ao próprio Estado brasileiro, por isso a utilização das expressões: reconhecidos e direitos originários. Redigida de forma pouco precisa, a Súmula 650-STF deve ser aplicada tão-somente às hipóteses a que ela se refere - usucapião de terras mencionadas no art. 1º, alínea "h", do Decreto nº 9.760/1946 -, devendo os operadores do direito atentar para as peculiaridades e as circunstâncias constantes dos precedentes que embasaram a edição do enunciado, sob pena de violação ao disposto no Art. 231 da Constituição e ao art. 14 da Convenção 169 – OIT".
Diante de todo o exposto, e tendo em vista que estão em disputa poderosos interesses políticos e econômicos, que visam essencialmente a exploração e espoliação das terras e seus recursos naturais e ambientais e, como consequência, pretendem a aniquilação dos direitos indígenas e quilombolas, requer-se, depois dessa discussão, que o Supremo Tribunal Federal mantenha a coerência com decisões proferidas por ocasião do julgamento do caso Raposa Serra do Sol, e pacifique, em definitivo, afastando a tese do marco temporal, do renitente esbulho, bem como as 19 condicionantes vinculadas ao caso concreto daquela decisão, e que os ritos demarcatórios, tanto no que se refere às demarcações de terras indígenas como das comunidades, afastando, por conseguinte essas malfadadas teses, consolidando a constitucionalidade do Decreto 4887/2003, dos direitos originários e tradicionais dos povos indígenas, tudo pautado pelo espírito da Constituição Federal, regulados por normas que assegurem que as ações sejam realizadas pelos órgãos da administração pública federal, como efetivamente ocorre.
Se assim o decidir, por uma questão de justiça, a Suprema Corte evitará que medidas extremas, com características de uma justiça de exceção, contra povos e comunidades originárias e tradicionais, se consolidem.
Porto Alegre, 31 de julho de 2017.
* Marcelo Charleo, advogado, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ e membro da Comissão Americana de Juristas
* Roberto Antonio Liebgott, filósofo, bacharel em Direito e missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul.
* Onir de Araújo, advogado, integrante da Frente Nacional em Defesa dos Territórios Quilombolas, Rio Grande do Sul
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