sábado, 24 de setembro de 2011

Ética e política terceira parte

 Marilena Chauí
Ética, Política, Liberdade, Igualdade

A primeira dificuldade é a seguinte: o homem, os seres humanos, são diferentes de todas as outras coisas que existem. Que diferença é esta? Todas as coisas que existem estão submetidas às leis necessárias da natureza. A natureza é um enorme sistema de causas e efeitos. Aquilo que a gente chama de Determinismo. Na natureza tudo tem causa, tudo produz um efeito, e a relação entre a causa e o efeito é uma relação necessária. Na natureza não existe acaso. Na natureza não existe jogo. Na natureza não existe Liberdade.

Ao contrário, a marca dos seres humanos é a Liberdade. Os seres humanos não pensam, não agem segundo relações de causa e efeito. Eles agem por escolha. Por deliberação. Por decisão. Eles agem por Liberdade. Eles agem escolhendo os Fins. Fins das ações que eles realizam. Eles agem escolhendo os Fins das ações que eles realizam, das práticas que eles tem, dos comportamentos que eles tem.

E portanto o reino humano ou a esfera humana é diferente do resto da natureza. Esta separação entre a natureza e os humanos se deu a partir de um critério que é fundamental na Ética: que é a liberdade, e a Finalidade. Se a Política vai operar com o critério da Liberdade, da Justiça, das Finalidades Humanas, então há na raiz da Política um valor que é ético. Este valor pode ser chamado de liberdade. Pode ser chamado de Justiça, ele pode ser chamado de responsabilidade. Mas este valor é ético. Então ao mesmo tempo em que há todo este trabalho para separar a Ética e a Política, há toda uma elaboração teórica de separação entre o homem e a natureza que coloca para a Ética e para a Política os mesmos fundamentos. Ou seja elas estão baseadas, as duas, nas mesmas coisas. Elas estão baseadas na Liberdade, na Finalidade, na Temporalidade Humana, no fato de o homem ser um Ser Cultural. Então, a Política vai ter que se dar no interior deste campo comum, que é o campo da cultura, o campo da história, o campo da civilização. Essa é a primeira dificuldade para separar Ética e Política já que elas possuem o mesmo fundamento.

Só que o aparecimento deste fundamento comum entre a Ética e a Política que é a Liberdade vai ao mesmo tempo introduzir um complicador. Que vai explicar afinal porque é tão difícil esta relação entre a Ética e a Política. E este complicador é um complicador para a Ética, para a Política, e para relação entre elas. Que complicador é este?

É o seguinte: ao afirmar que todos os homens, todos os seres humanos são livres é afirmado simultaneamente que por causa disto todos eles são iguais. A igualdade deles é a liberdade. Mas de fato, na prática, esta igualdade não existe muito. Pelo contrário, a sociedade é feita por uma divisão social entre os desiguais. E esta desigualdade, ferindo portanto a liberdade, ferindo aquilo que seria a igualdade, introduz para a Ética e para a Política o problema da Violência. Ou seja a desigualdade real faz com que falar da liberdade como o critério da vida Ética torna a Ética uma coisa irreal porque a igualdade pela qual ela poderia funcionar não existe e torna a Política incapaz também de realizar a liberdade.

(chamo de Violência todo ato pelo qual um ser humano é tratado desprovido de sua humanidade e é tratado como se ele fosse uma coisa). E é assim que nós podemos dizer que há pelo imenso três critérios pelos quais nós podemos dizer que a Ética e a Política se relacionam uma sendo subsídio para a realização da outra.

Primeiro critério: a relação entre meios e fins na Ética é uma relação na qual não há exercício da violência. Que é a violência? É tratar um ser humano como se ele fosse uma coisa. Como se ele fosse um objeto. Tratar um ser humano como um sujeito e não como um objeto é tratá-lo eticamente. Se a Política na esfera pública for capaz de tratar os fins políticos através de meios não violentos, não tratando os seres humanos como coisa nós temos uma Política Ética.

Segundo critério - embora a Ética se realize no campo da vida privada, o que a Ética busca nesta esfera que lhe é própria é a idéia de que nenhuma autoridade é legítima se ela for despótica, se ela for arbitrária, se ela se realizar como expressão da vontade individual, injustificada de alguém. Neste caso é a Política que vai ajudar a Ética na medida em que o próprio da esfera pública é afastar a autoridade despótica, isto é, aquela autoridade que se exerce como uma vontade pessoal, individual, arbitrária, acima de todas as outras. Assim agora a relação vem da Política para a Ética em que a Ética auxilia na luta contra as formas arbitrárias de autoridade no interior da vida privada. Isto significa, por exemplo, que a posição do pai, da mãe, do avô, da avó, do patrão, do chefe, não é tão simples. Não basta a vontade deles para que a autoridade deles seja eticamente legítima. A Política nos ajuda portanto a melhorar a própria Ética.

Terceiro critério: é o critério que pode valer para a Ética e para a Política que é a redefinição da idéia de liberdade. Em vez de pensarmos a liberdade como o direito de escolha vale a pena pensar a liberdade como o poder de criar o possível. Ou seja, a liberdade é esta capacidade dos seres humanos de fazer existir o que não existia. De inventar o possível. De inventar o novo. E se a liberdade for pensada desta maneira, a relação entre a Ética e a Política pode se dar como criação histórica na esfera privada e na esfera pública. Estou convencida de que há uma única forma da Política compatível com a Ética e uma única modalidade da Ética compatível com a Política. Essa forma Política é a democracia. E esta forma Ética é a liberdade através dos direitos. Então como a democracia é o campo da criação dos direitos e como a Ética é a afirmação de direitos através do direito fundamental que é o direito à vida e à liberdade, a compatibilidade entre a Ética e a Política só pode ocorrer quando o campo da Política permite o tratamento dos conflitos e quando o campo da Ética permite a divulgação dos seus princípios.

Então eu diria que é a possibilidade de dar à Ética um conteúdo público e de dar à Política um conteúdo moral que ocorre na democracia. Acho que não foi por acaso, indo lá no meu ponto de partida, não foi por acaso que os inventores da Política, os gregos, considerassem que era só na Política que a Ética se realizava e por Política eles entendiam a democracia como igualdade perante a lei, (a isonomia). E o direito a expor, a discutir e votar a opinião em púbico que é a isegoria.

Então se nós considerarmos que o campo da Ética é o campo da liberdade e o campo da Política é também o campo da liberdade, só uma forma Política na qual esse princípio possa se realizar é que torna viável uma relação entre a Ética e a Política. O que significa que o ideal ético da visibilidade só pode se realizar na prática Política da democracia, e vice-versa. Evidentemente isto seria um ponto de partida. Isto não é uma conclusão. Pelo contrário se assim for nós precisaremos começar tudo de novo. Pois nós temos que recomeçar a discutir a desigualdade, a violência, a mentira, a corrupção, a privatização e a oficialização estatal de nossas vidas.

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